O nanismo dos gigantes digitais

Os donos dos maiores negócios do mundo foram testemunhar ao Congresso e o que mais se ouviu foram variantes da expressão “não sei”.

Foram precisos trinta anos, mas o sistema político americano finalmente decidiu começar a olhar para abusos na economia digital. Depois de partirem a Microsoft em 1990, forçando a reinvenção da empresa e libertando a inovação digital, os congressistas dos EUA decidiram que o melhor para o modelo capitalista seria a não-intervenção. E isso levou, como se sabe, a todo o tipo de abusos, incluindo uma crise financeira global cujos efeitos de choque ainda se fazem sentir. Levou também basicamente à transformação do mundo digital num far-west onde as leis pura e simplesmente não se aplicavam – o que conduziu a uma concentração de poder que é má para a economia, má para o desenvolvimento e desastrosa para a democracia. A audição na quarta-feira dos líderes do mundo digital foi uma tímida intervenção no sentido de mudar o estado das coisas.

Há três dados fundamentais a retirar deste acontecimento.

O primeiro é que, finalmente, a inocência destes líderes desapareceu. Homens que se sujeitam a aparecer em frente aos aos representantes democráticos e responder a perguntas com “não sei”, “vou mandar a minha equipa olhar para isso” ou “não tenho a certeza se entendo aquilo a que se refere” são figuras menores. No banco de testemunhas não estavam génios inovadores, estavam cobardes preocupados com processos judiciais e incapazes de defender as mudanças que provocaram no mundo. Definitivamente, estas não são personagens que mereçam figurar como heróis em nenhum livro de história contemporânea.

A segunda é que, do ponto de vista capitalista, estas empresas são más para o mercado. O monopólio não serve nem os seus cidadãos nem o mercado em geral. A crise económica que nasceu com a pandemia não afetou estas empresas, antes pelo contrário, dando-lhes hoje um poder inédito há meio século: os cinco gigantes tecnológicos dominam mais de 20% do mercado bolsista americano, deixando toda a economia nas mãos destes senhores e aumentando o risco sistémico de forma dramática. Já a inovação, que construiu estas companhias, é hoje uma miragem distante – estas empresas jogam simplesmente na defensiva tentando manter o sistema que criaram e esmagar qualquer concorrência, o que significa uma economia criativa estagnada. As cinco maiores empresas da economia americana gastaram nos últimos anos mais de 200 triliões de dólares a comprar empresas e serviços concorrenciais, tendo muitas delas sido destruídas imediatamente a seguir. Não é por acaso que a economia chinesa tem feito tantos progressos no digital…

A terceira conclusão importante a retirar é que ainda falta cair o mito final sobre estas empresas e a relação com os consumidores. A visão dominante continua a ser que, se um serviço é gratuito, ele não pode nunca prejudicar o consumidor. É falso, como estes tempos digitais demonstram bem. Já não se trata sequer do velho adágio que repete que “se não estamos a pagar por algo, então é porque somos o produto”. Hoje o produto é o pacote de dados que os humanos produzem, transformado em previsões sobre o nosso comportamento futuro que são vendidos junto com formas de o condicionar. O produto não é quem somos hoje, é quem nos vão deixar ser amanhã – e isto ainda não foi percebido pela maioria dos políticos que devem legislar sobre o tema, quanto mais pela maioria da população. A este nível, ainda está quase tudo por fazer.

Nos EUA, não são de esperar grandes mudanças. O congresso irá apresentar um relatório lá para o final do ano, mas dificilmente terá qualquer iniciativa política sem a mudança de poder. As eleições de novembro podem mudar o cenário, mas será preciso mais do que uma vitória de Biden para mudar a perceção da necessidade de intervenção do poder político.

Na União Europeia, felizmente, pensa-se de maneira diferente. Depois da estratégia falhada das multas, prepara-se novo esforço regulatório: a primeira ação deverá tomar forma com o tão aguardado Digital Services Act, que visa reduzir o impacto dos serviços preferenciais oferecidos pelas grandes tecnológicas e permitir alguma concorrência por parte de empresas mais pequenas – podendo, no limite, obrigar a uma reconstrução do mercado de publicidade digital. E soluções com a lei francesa para censurar o conteúdo podem bem avançar a nível europeu, embora aí os riscos sejam imensos.

Ler mais: Quem se interesse por estas questões de concorrência, defesa do consumidor e crescimento económico fará bem em ler o paper de Lina Khan sobre a Amazon. A investigadora olhou para o crescimento da Amazon como o paradoxo da dificuldade em aplicar as leis da concorrência ao digital e todos os males que isso traz.

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