
O papel das stablecoins na nova ordem monetária
A 17 de junho, o Senado dos EUA aprovou o GENIUS Act para regulamentar este setor em rápido crescimento, decisão que sustenta a contínua subida da capitalização de mercado das stablecoins.
As stablecoins são criptomoedas que mantêm um valor estável, geralmente equivalente a uma moeda fiduciária como o dólar dos EUA. A principal utilidade é oferecer estabilidade num ambiente digital onde a volatilidade é comum, permitindo transferências rápidas, baratas e globais, 24 horas por dia, sem necessidade de bancos ou intermediários tradicionais.
Estas moedas digitais são acessíveis a qualquer pessoa com internet, mesmo sem conta bancária. São amplamente utilizadas em plataformas de finanças descentralizadas (DeFi), servindo para investir, emprestar ou poupar, proporcionando um rendimento. Oferecem ainda controlo direto sobre os fundos, maior privacidade e a possibilidade de integrar contratos inteligentes, automatizando pagamentos e outros serviços digitais.
No entanto, há uma diferença fundamental que não pode ser ignorada, uma vez que as garantias são diferentes. Enquanto o dólar fiduciário dos EUA tem a garantia da própria Reserva Federal norte-americana, que tem em seu poder a máquina de fazer dólares, ou seja, pode imprimir moeda e garantir liquidez em situações de crise, as stablecoins têm o risco associado ao balanço das empresas que estão por detrás delas. A sua fiabilidade depende inteiramente da boa gestão e transparência dessas entidades privadas.
Existem três tipos principais de stablecoins. As garantidas por moeda fiduciária, como a USDC, emitido pela Circle, ou a USDT, emitido pela Tether. Neste caso, a promessa é que cada unidade da stablecoin esteja suportada por reservas reais em dólares guardadas por essas empresas. O USDC, em particular, é geralmente considerado mais fiável, uma vez que é sujeito a auditorias financeiras completas e regulares, apresenta maior transparência na gestão das suas reservas e mantém uma composição conservadora dos ativos. A Tether, por seu lado, também é auditada regularmente por uma firma independente — a BDO Italia — que verifica mensalmente as suas reservas, embora não realize auditorias financeiras completas ao conjunto da empresa.
Existem também as stablecoins suportadas por criptomoedas, como a DAI, que é emitida pelo protocolo descentralizado MakerDAO. Aqui, a stablecoin é criada com base em reservas de criptomoedas como o Ethereum, e normalmente o valor dessas reservas é superior ao valor da stablecoin emitida, precisamente para oferecer uma margem de segurança adicional.
Por fim, existem as stablecoins algorítmicas, ou seja, moedas digitais que mantêm o seu valor através de mecanismos automáticos que ajustam a oferta em função da procura, sem reservas reais que as sustentem. São mais experimentais e têm um risco elevado de colapso caso o sistema falhe.
Apesar das vantagens práticas, as stablecoins apresentam riscos de contraparte, caso a empresa emissora enfrente dificuldades, assim como o risco de perda da paridade com a moeda real em momentos de crise, e incerteza regulatória, devido à evolução constante das leis que regem a sua emissão e utilização. Em suma, as stablecoins são ferramentas úteis para quem quer estabilidade dentro do universo cripto. Todavia, devem ser utilizadas com consciência, nunca esquecendo que, ao contrário do dólar, não há uma máquina para fazer stablecoins. Depende muito da saúde financeira e da honestidade das empresas que as emitem.
Desde o início de 2025, as stablecoins têm valorizado e crescido significativamente, tendo a sua capitalização de mercado ultrapassado os 250 mil milhões de dólares (um aumento de 25%), representando quase 1,2 % da massa monetária M2 dos EUA. O volume de transações com stablecoins já rivaliza com sistemas tradicionais como a Visa e a Mastercard, e o USDC, por exemplo, duplicou o seu valor em circulação desde o início do ano. Os pagamentos com stablecoins tornaram-se uma realidade prática, sobretudo em transferências internacionais e no contexto empresarial, graças à rapidez, baixo custo e eficiência destas moedas digitais.
Porém, o seu crescimento levanta questões importantes sobre o impacto na massa monetária e na inflação. Se o uso de stablecoins se generalizar no quotidiano, pode haver um aumento da liquidez global, impulsionando o M2? O impacto depende sobretudo da forma como as empresas emissoras gerem as reservas que garantem essas moedas. Quando essas reservas são investidas em títulos do tesouro dos EUA (sobretudo bilhetes do tesouro, isto é, T-Bills), o efeito inflacionista tende a ser reduzido ou mesmo nulo. Por outro lado, se as reservas permanecerem nos bancos, podem contribuir para o efeito multiplicador do crédito, aumentando a massa monetária. Até agora, o efeito na inflação não é visível, mas o cenário pode mudar se o uso generalizado das stablecoins continuar a crescer sem uma regulação clara.
A crescente popularidade das stablecoins indexadas ao dólar, como a Tether e a Circle, poderá contrariar a tendência global de desdolarização promovida por alguns bancos centrais, sobretudo do denominado Sul Global, ou seja, aqueles países que não pertencem ao grupo das economias avançadas do Ocidente. Estas moedas digitais estão a impulsionar a procura por obrigações do tesouro dos EUA no mercado cripto, podendo compensar a pressão vendedora vinda de outros setores, geografias e investidores, seja por motivos geopolíticos, seja por receios quanto à sustentabilidade das contas públicas norte-americanas.
Atualmente, Tether e Circle detêm em conjunto mais de 135 mil milhões de dólares em dívida pública norte-americana, nomeadamente de curto prazo, como T-Bills. A Tether, sozinha, possuía cerca de 98,5 mil milhões de dólares em bilhetes do tesouro no final de março de 2025, ou seja, quase 2% de todo o mercado de bilhetes do tesouro dos EUA.
Segundo o Secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, a capitalização de mercado das stablecoins poderá atingir os 2 biliões de dólares nos próximos anos, isto é, quase decuplicar dos atuais valores, o que levaria a uma procura proporcional por títulos da dívida pública dos EUA, dado que esses ativos são usados como colateral para manter a paridade com o dólar.
Contudo, as stablecoins continuam sujeitas a riscos de liquidez, como a dificuldade em garantir a conversibilidade imediata ao valor nominal, e podem ser vulneráveis a corridas bancárias e a vendas massivas em períodos de aversão ao risco.
Entretanto, este fenómeno representa uma transformação histórica, com empresas privadas cripto a tornarem-se grandes detentoras institucionais de dívida pública norte-americana, um papel antes reservado a bancos centrais e fundos soberanos.
No debate sobre o papel das stablecoins na economia global, o foco recai frequentemente sobre aquelas indexadas ao dólar norte-americano (USD), como a Tether (USDT) ou a Circle (USDC), as quais têm ajudado a reforçar a procura por dólares e ativos do Tesouro dos EUA, contrariando, em parte, a tendência de desdolarização. No entanto, Hong Kong tem vindo a desenvolver um quadro regulatório próprio para stablecoins, criando espaço para a emissão de stablecoins indexadas ao dólar de Hong Kong (HKD). Estas moedas digitais, ligadas a uma moeda que por sua vez está indexada ao dólar dos EUA através de um regime de câmbio fixo, levantam novas questões sobre o papel das stablecoins na ordem monetária global. Ao contrário das stablecoins USD, as stablecoins HKD não contribuem diretamente para a manutenção do dólar americano como moeda dominante, uma vez que exigem reservas em HKD, e não em dólares. Se o regime de paridade cambial entre o HKD e o USD for alterado, as stablecoins HKD podem tornar-se ainda mais independentes do dólar.
Assim, embora Hong Kong promova estas stablecoins com o objetivo de se afirmar como hub de inovação financeira e Web3, o efeito pode ser paradoxal. Em vez de reforçar o papel do dólar, pode acelerar a transição para um sistema monetário digital mais multipolar e menos centrado nos EUA, sobretudo se o HKD passar a ser indexado a outras moedas ou a um cabaz cambial.
No passado dia 17 de junho de 2025, o Senado dos EUA aprovou o projeto de lei GENIUS Act, visando regulamentar este setor em rápido crescimento, uma decisão que sustenta a contínua subida da capitalização de mercado das stablecoins.
O GENIUS Act representa um passo importante na legitimação deste segmento, anteriormente considerado um nicho. Caso seja sancionado, exigirá que os emissores mantenham reservas em ativos líquidos, como dólares e título da dívida pública norte-americana de curto prazo, e que divulguem mensalmente a composição das suas reservas.
A entrada em vigor da legislação poderá acelerar ainda mais o crescimento do mercado de stablecoins, aproximando o universo cripto do sistema financeiro tradicional, embora persistam preocupações quanto à crescente interligação entre ambos. No entanto, tudo parece indicar que as stablecoins possam ser a ponte entre as moedas fiduciárias e as criptomoedas, sobretudo aquelas que se destacam quando se separa o trigo do joio, como é o caso da primeira e principal delas, a bitcoin, que continua a beneficiar do seu caráter finito e da sua natureza deflacionista.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
O papel das stablecoins na nova ordem monetária
{{ noCommentsLabel }}