O PSD, os sapos e os ciganos

Tapar a cara do André Ventura com uma mão e votar no PSD com a outra. Inspirados em Cunhal, é mais ou menos isto que Rui Rio e Miguel Albuquerque estão a pedir aos portugueses.

Nas últimas duas legislaturas, foram derrubados dois muros no Parlamento. À esquerda, como gosta de lembrar António Costa a propósito da geringonça, foi derrubado o “último resquício do muro de Berlim”.

À direita, foi André Ventura a derrubar um muro que servia de tampão à entrada da extrema-direita no Parlamento. Paulo Portas costumava comentar que “à direita do CDS, só há uma parede”, que é como quem diz que o partido democrata-cristão agregava várias direitas, de modo a não deixar espaço aos extremismos. Só que hoje, o CDS é um partido quase irrelevante e o Chega não só elegeu um deputado como aparece nalgumas sondagens a disputar o terceiro lugar com o Bloco de Esquerda.

Há duas semanas, Rui Rio resolveu derrubar os resquícios desse muro à direita ao admitir, em entrevista à RTP 3, “conversar” com o Chega “se” o partido evoluir “para uma posição mais moderada”, ou seja, “se” abandonar a “linha de demagogia e populismo”.

Há uma frase imortalizada por Manuela Ferreira Leite na política portuguesa que expressa bem a indignação que este “se” de Rui Rio provoca: “Se a minha avó não tivesse morrido ainda hoje era viva”. Se Mário Machado não fosse racista, talvez fosse um tipo porreiro.

Manuela Ferreira Leite, apoiante de Rio, afirmou há pouco tempo que preferia ver o PSD perder eleições do que ficar com o “rótulo de direita”. O próprio Rio tentou inicialmente centrar o partido, ao defender que é “tanto do centro-direita, como do centro-esquerda”. Há um ano, em entrevista à Antena 1, instado a comentar sobre se o PSD deveria encostar-se à direita, Rui Rio discordou totalmente dessa estratégia, já que, explicava, “perdendo o centro e essa componente moderada da sociedade, temos mais dificuldade em crescer”.

Um ano volvido e depois de umas eleições perdidas, Rui Rio parece ter mudado de opinião e de estratégia, abrindo uma porta para aquilo que Miguel Albuquerque, no Público este sábado, chamou de “uma federação dos partidos à direita e ao centro-direita”.

Se Rui Rio ao menos tenta disfarçar o constrangimento de convidar o Chega para uma aliança atrás de um embaraçoso e envergonhado “se”, o líder do PSD Madeira não tem qualquer rebuço e nem precisa do “se”. Para Miguel Albuquerque, o Chega “é um partido nacionalista, conservador, como existem vários a nível europeu. Nós não temos que ter estigmas relativamente a isso. A aliança deve ser instrumental e deve iniciar-se, do meu ponto de vista, com tempo, conversações e abertura, para se chegar a um programa comum, e esse programa comum ter um desígnio para Portugal”.

Albuquerque já fala num programa de governo com o Chega. Só faltou convidar André Ventura para ministro, talvez para a pasta da Igualdade e da Cidadania. Ao convidar o Chega para uma aliança “instrumental”, o que os social-democratas estão a pedir é que os portugueses façam como certo dia sugeriu Álvaro Cunhal aos comunistas quando, numa segunda volta das presidenciais, tiveram de escolher entre Mário Soares e Freitas do Amaral: “Se for preciso tapem a cara [de Soares no boletim de voto] com uma mão e votem com a outra”. É mais ou menos isto que a palavra “instrumental” significa: “tapem a cara do Ventura com uma mão e votem no PSD com a outra”.

Se os comunistas na altura tiveram de optar por votar no “menor de dois males”, também os social-democratas são chamados hoje por Rio e Albuquerque a decidir, do ponto de vista da direita, “o menor dos males”: manter a aliança tradicional só com o CDS e, eventualmente, com o Iniciativa Liberal e arriscar a não chegar ao poder; ou juntarem-se a um partido de ultradireita para conseguir os votos necessários para formar uma maioria no Parlamento. Parafraseando Ferreira Leite, diria que é preferível o PSD perder eleições do que contribuir para esta tentativa de higienizar e normalizar a imagem e as ideias do Chega e de André Ventura.

Em 1986, nessas eleições em que o próprio Rui Rio confessou ter apoiado a “esquerda moderada” de Soares contra Freitas, Álvaro Cunhal disse aos comunistas que teriam “de engolir um sapo”. Os social-democratas prepararam-se hoje para abrir a porta a um partido que tem gente que coloca sapos à porta de casa ou de lojas para afastar os ciganos. Isto é um sapo que nenhum social-democrata deveria estar disposto a engolir.

Nem isso, nem saudações nazis em comícios, nem castrações químicas, nem discursos populistas, nem mensagens xenófobas contra os emigrantes e minorias étnicas e nem manifestações a defender que em Portugal não há racismo. Neste último ponto, André Ventura e Rui Rio parecem estar de acordo. O líder do PSD disse numa entrevista recente à TVI que “não há racismo na sociedade portuguesa” e “ainda ficamos é racistas com tanta manifestação antirracista”. Que frase infeliz Dr. Rui Rio. Que ideia infeliz esta de admitir conversas com o Chega.

Como escrevia este domingo Manuel Carvalho no Público, “o PSD parece querer desistir de si próprio, transforma-se numa entidade calculista e desalmada e confronta-nos com a possibilidade de se aliar a uma excrescência da democracia”.

Num outro texto este fim de semana no Expresso, Pedro Duarte escreveu que o PSD “abriu a porta a entendimentos com partidos antissistema, de inspiração nacionalista e totalitária” e que “se arrisca a viver dependente do socialismo ou da extrema-direita emergente”.

É reconfortante ver que no PSD ainda existem militantes como Pedro Duarte ou José Eduardo Martins que não estão dispostos a engolir sapos, nem estão dispostos a colocá-los à porta da social-democracia.

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