
Portugal ainda resiste, mas EUA e Japão vacilam: o impacto da dívida pública e das obrigações nos fundos de pensões
Com a desvalorização das obrigações nos últimos quatro anos, os fundos de pensões em muitas economias avançadas têm vindo a ser pressionados, e os governos dispõem de cada vez menos margem de manobra.
Algumas economias avançadas, sobretudo Japão e EUA, enfrentam crescente instabilidade no refinanciamento da sua dívida de mais longo prazo. Nos EUA, os rendimentos das obrigações do Tesouro a 30 anos têm vindo a aumentar, superando os 5%, sinalizando um crescente desconforto dos investidores com a trajetória orçamental do país. Ao elevado défice das contas públicas em 2024, que se situou nos 6,3% do PIB, soma-se um agravamento no atual ano fiscal de 2025. Nos primeiros sete meses deste ano fiscal, o défice orçamental já ronda os 4%. Além disso, a necessidade de refinanciar uma grande quantidade de dívida que vence no segundo semestre de 2025 e ao longo de 2026 está a gerar preocupações crescentes quanto à capacidade de os EUA honrarem os seus compromissos no muito longo prazo — nomeadamente a partir de 2050, 2060 ou nas décadas seguintes.
No passado dia 21 de maio, o leilão de obrigações do tesouro norte-americano a 20 anos registou uma quebra invulgar na procura, apesar do rendimento elevado — um fenómeno até agora pouco comum nesse segmento, embora já observado pontualmente nos leilões a 30 anos desde 2022.
O rendimento obtido no leilão foi elevado, situando-se nos 5,047%, enquanto a relação procura/oferta (bid-to-cover) desceu para 2,46. Embora esse valor ainda represente uma procura significativa — geralmente considerada aceitável acima de 2 — é já vista como fraca face aos padrões históricos e, em particular, quando comparada com o leilão do mês anterior: nessa ocasião, o Tesouro dos EUA vendeu 13 mil milhões de dólares em títulos a 20 anos com uma yield mais baixa (4,810%), mas obteve uma relação procura/oferta superior, de 2,63.
Nos dez leilões anteriores de obrigações a 20 anos, a relação média de cobertura foi de 2,58, e com rendimentos mais baixos do que os atuais. Este enfraquecimento da procura revela que a habitual facilidade com que o governo dos EUA colocava dívida nos mercados tem vindo a diminuir, refletindo um crescente nervosismo dos investidores quanto à solvência do tesouro norte-americano no muito longo prazo. O mais preocupante é que esses receios, que inicialmente se concentravam nas maturidades a 30 anos, parecem agora alargar-se às emissões a 20 anos, alastrando o problema a toda a parte mais longa da curva de rendimentos.
Segundo o CBO (Congressional Budget Office), caso o atual rumo orçamental não seja corrigido, a dívida pública dos EUA poderá atingir entre 150% e 200% do PIB nas próximas décadas. Um nível tão elevado de endividamento poderá diminuir a procura por dívida pública, devido ao acréscimo de risco percebido pelos investidores, e simultaneamente aumentar a oferta, em resultado da maior necessidade de financiamento por parte do governo. Este desequilíbrio entre oferta e procura tenderá a impulsionar significativamente as yields do tesouro norte-americano, exigindo uma base de investidores mais alargada para mitigar esse efeito.
Como resposta, e em caso de agravamento, poderá ser necessária, nos EUA, uma ação coordenada entre o governo e a Reserva Federal para estabilizar o mercado de dívida.
Uma das soluções propostas poderia ser a exclusão das obrigações do tesouro do denominador do SLR (Supplementary Leverage Ratio), medida que permitiria aos bancos aumentar a sua exposição à dívida pública sem penalizar os seus rácios de capital.
No entanto, se os bancos se manifestarem reticentes perante o acréscimo de risco percebido — como sucedeu em determinados períodos históricos — poderia colocar-se a hipótese de uma intervenção mais direta. Um exemplo citado recorrentemente é o da Segunda Guerra Mundial, altura em que os bancos foram obrigados a adquirir dívida pública para financiar o esforço orçamental.
Paralelamente, o Japão enfrenta uma crise muito semelhante — mas numa fase mais avançada. Os rendimentos das obrigações do governo japonês (JGBs), especialmente nos prazos muito longos (30 e 40 anos), subiram acentuadamente devido à fraca procura dos investidores tradicionais, como as seguradoras de vida e fundos de pensões. Como consequência, o governo japonês viu-se forçado a agir rapidamente e anunciou que está a considerar a redução da emissão de dívida de longo prazo, transferindo parte do financiamento para prazos mais curtos, numa tentativa de aliviar a pressão nos mercados e atenuar os receios quanto à sustentabilidade fiscal.
O impacto foi imediato: as yields das JGBs dos prazos mais longos caíram, o iene desvalorizou e os mercados reagiram positivamente. Contudo, os analistas alertam que esta medida oferece apenas um alívio temporário, sem resolver o problema estrutural da dívida japonesa — a mais elevada do mundo desenvolvido.
As obrigações desempenham um papel central nos sistemas de pensões. Todavia, toda esta dinâmica desfavorável afeta diretamente os fundos de pensões, que dependem fortemente das obrigações para garantirem rendimentos estáveis a longo prazo. No caso do Japão, a valorização dos JGBs é crucial para a saúde financeira das seguradoras e dos fundos de pensões, num país marcado por uma das populações mais envelhecidas do mundo.
Nos EUA, a situação é ligeiramente diferente, mas a pressão sobre os fundos de pensões é igualmente real. Com a subida das yields, o valor de mercado das obrigações cai, penalizando os portefólios destes fundos.
As obrigações do Tesouro dos EUA com vencimentos em 2050 (ISIN US912810TD00), 2052 (ISIN US912810SN90) e 2054 (ISIN US912810TX63) apresentam fortes desvalorizações, reflexo da sua elevada sensibilidade às taxas de juro. A de 2050, com cupão de 1,25%, perdeu cerca de metade do valor. A de 2052, com cupão de 2,25%, desvalorizou para cerca de 60%. Mesmo a de 2054, com um cupão elevado de 4,25%, já recuou para 88%. Quanto mais longo o prazo e mais baixo o cupão, maior a penalização num contexto de subida das taxas. Estas obrigações demonstram claramente como os títulos de dívida de longa duração reagem negativamente à subida das taxas de juro. Os fundos de pensões com forte exposição a estas obrigações registam perdas significativas no valor dos seus ativos, comprometendo a sua solvência e sustentabilidade a longo prazo. Se o agravamento das contas públicas persistir, com aumento das necessidades de financiamento e custos de emissão mais elevados, poderá minar a confiança, impulsionado ainda mais a subida dos juros exigidos pelos investidores e a um risco acrescido de instabilidade no mercado obrigacionista. Os fundos de pensões com forte exposição a estas obrigações estão a registar perdas significativas no valor dos seus ativos, comprometendo a sua solvência e sustentabilidade a longo prazo, caso o agravamento das contas públicas continue, aumentando as necessidades de emissão de dívida e a custo mais elevados, podendo gerar perda de confiança, subida dos juros exigidos pelos investidores e risco de instabilidade no mercado obrigacionista.
Em Portugal, por exemplo, o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social tem mais de 70% dos seus ativos investidos em obrigações (e 22% em ações), totalizando quase 36 mil milhões de euros — o equivalente a cerca de 22 meses de pagamento de pensões. O objetivo é alcançar uma cobertura de dois anos.
Com a desvalorização das obrigações nos últimos quatro anos, os fundos de pensões em muitas economias avançadas têm vindo a ser pressionados, e os governos dispõem de cada vez menos margem de manobra.
Em 2024, o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social reforçou a aposta em obrigações, que passaram a representar cerca de 73,5% da carteira, ligeiramente acima de anos anteriores. Este aumento ficou a dever-se sobretudo à aquisição de dívida empresarial, numa tentativa de melhorar a rentabilidade sem elevar o risco. A liquidez, que tinha sido aumentada em 2022 como medida de proteção, foi reduzida.
A exposição a ações subiu para 22,7%, refletindo tanto a recuperação dos mercados como uma aposta ativa em setores com potencial, como as empresas tecnológicas de menor dimensão, impulsionadas pelo crescimento da inteligência artificial. Este segmento teve um impacto positivo no desempenho global.
A dívida pública portuguesa manteve-se estável nos 51,8%, em linha com o mínimo legal de 50%.
No entanto, o gráfico acima evidencia a desvalorização das obrigações do tesouro portuguesas, não por deterioração das contas públicas — pelo contrário, as finanças públicas portuguesas têm seguido uma forte trajetória de consolidação. O spread da dívida portuguesa a 10 anos face à alemã ronda atualmente os 50 pontos base, sinal de confiança por parte dos mercados. Isto significa que a queda no valor das obrigações não está relacionada com o risco de crédito, mas sim com o risco taxa de juro. É legítimo questionar o elevado peso das obrigações na carteira, mas no caso português há que ter em conta o envelhecimento da população. As exigências de liquidez para o pagamento regular de pensões são permanentes, o que justifica uma alocação mais conservadora. Uma exposição mais acentuada ao mercado acionista seria mais adequada a uma população jovem, com tempo para recuperar de eventuais crashs dos mercados acionistas. Todavia, o peso das obrigações poder-se-á considerar relativamente elevado para usufruir dos ganhos do crescimento económico, do potencial das empresas e dos ganhos seculares dos índices acionistas.
Voltando aos EUA e ao Japão, os respetivos bancos centrais — a Reserva Federal e o Banco do Japão — poderão vir a intervir de forma mais direta. Uma das estratégias possíveis seria a desinclinação da curva de rendimentos, através da compra de dívida de longo prazo e venda de dívida de curto prazo, com o objetivo de reduzir as yields a 10, 20 e 30 anos e estabilizar as expectativas dos investidores.
Em suma, tanto os EUA como o Japão enfrentam uma crise de confiança nos seus mercados de dívida pública de longo prazo, motivada por níveis elevados de endividamento, envelhecimento demográfico (aqui um particular do Japão) e riscos fiscais crescentes. A estabilidade dos fundos de pensões e a capacidade de financiamento dos governos dependem, cada vez mais, de decisões estratégicas dos bancos centrais e de uma gestão prudente das finanças públicas.
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