Quem tem medo de Tomás Correia?

Tomás Correia tem responsáveis públicos “no bolso”? Há poderes que estão por ele capturados por alguma razão? Tem poder para fazer implodir alguma coisa? Sabe demasiado de demasiada gente?

Sobre Tomás Correia está tudo dito mas o essencial está por fazer. E o essencial é isto: avaliar se uma pessoa com o seu perfil e com o rol de acusações e de suspeitas criminais que foi acumulando pode continuar a dirigir a Associação Mutualista Montepio Geral (AM Montepio Geral) e tomar a decisão em função desse escrutínio.

O assunto regressa novamente à mesa – apenas três meses após a sua reeleição para o cargo, coisa que num país que se respeitasse já nem teria acontecido – porque esta semana o Banco de Portugal decidiu sobre um dos vários processos que têm Tomás Correia como protagonista e deu como provadas as suspeitas de irregularidades, aplicando-lhe uma multa de 1,5 milhões de euros. Outros então responsáveis foram também condenados pelo regulador bancário.

Deixámos então de estar apenas no terreno das suspeitas, das investigações em curso e da sua constituição como arguido (como é noutro processo) e temos uma condenação por entidade capaz para o fazer. Vão seguir-se os recursos para os tribunais mas o essencial é isto: como resulta da decisão do Banco de Portugal, Tomás Correia não tem idoneidade para ocupar cargos dirigentes no sector financeiro.

Pergunta: mas pode manter-se como presidente de uma entidade mutualista que tem activos de quase 4.000 milhões de euros, que gere poupanças de 600 mil portugueses, que recebe cerca de 720 milhões de euros de quotizações por ano e que é a dona do banco Caixa Económica Montepio Geral, o sexto maior do país com activos 20 mil milhões de activo e cerca de um milhão de clientes que lhe confiam poupanças?

Foi a propósito da necessária resposta a esta pergunta que assistimos nos últimos dias a um degradante espectáculo oferecido por entidades públicas, que nos faz colocar as mãos na cabeça por percebermos a quem estamos entregues em algumas destas coisas da regulação.

Quando o cheiro a esturro da gestão de Tomás Correia começou a ser impossível de disfarçar e ignorar publicamente descobriu-se que a supervisão das associações mutualistas pertencia ao Ministério da Segurança Social. Ora, nenhum governante gosta de ter uma bomba-relógio destas debaixo da secretária, por mais cumplicidades que haja ou “jeitinhos” que essa função de supervisão permitam.

E Vieira da Silva decidiu, e bem, que ter um órgão político, como é um Ministério, com funções directas de supervisão económica e financeira num sector que é cada vez mais complexo não é uma boa ideia e tratou de mudar o regime.

Nasceu assim, em Agosto de 2018, o novo Código das Associações Mutualistas, que entre outras coisas quis resolver a questão da supervisão regulatória e financeira do sector, entregando-a à Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF).

Mas para que tudo se passasse de forma suave e sem sobressaltos, a lei estabelece um período de transição de 12 anos – sim, 12 anos e não 12 meses – entre o regime que estava em vigor e o novo.

Tomás Correia dormiu descansado porque, nas suas contas, só daqui a 12 anos é que iria ficar sujeito às novas regras que prevêem a avaliação prévia da idoneidade dos dirigentes das entidades mutualistas. Mas como já vai no terceiro mandato à frente da AMMG, é pouco provável que queira manter-se por mais três depois deste. Mais provável será que a sua carreira seja interrompida pela Justiça, como se está a ver.

Na sede da discreta ASF – que tem para o sector dos seguros e fundos de pensões funções idênticas às que o Banco de Portugal tem para o sector bancário – a leitura que se fez foi a mesma: só daqui a 12 anos este será um assunto nosso e até lá vamos continuar discretos.

Mas a lei foi tão bem ou tão mal feita que nos últimos dias descobrimos que o Governo, que a escreveu, tem uma interpretação contrária a essa.

E assistimos em público a uma surreal troca de argumentações contraditórias.

De um lado, José Almaça, presidente da ASF, a dizer que não vai avaliar a idoneidade de Tomás Correia porque ainda não tem a supervisão da AMMG.

Do outro, o Governo, a querer forçar o regulador a fazer essa avaliação através, imagine-se, de um comunicado conjunto emitido pelos ministérios das Finanças e da Segurança Social.

Isto só não é anedótico porque é demasiado grave.

Confirma, antes de mais, a pobre qualidade legislativa que se faz no país. A lei, discutida, escrita e publicada há meio ano, suscita dúvidas de interpretação básicas entre as entidades protagonistas das responsabilidades que é suposto exercerem: o Ministério da Segurança Social diz que já não é nada com ele; a ASF diz que só daqui a 12 anos é que o assunto será com ela. E não se entendem nisto, sobre quem é o “dono” do assunto nestes 12 anos.

Depois, havendo dúvidas de interpretação, seria mais eficaz que o governo utilizasse um instrumento legislativo apropriado para as desfazer, em vez da fórmula jurídica do “comunicado conjunto enviado às redacções” que (ainda?) não tem força de lei, por mais respeitáveis que sejam as entidades signatárias.

Feitas assim as coisas, legitima-se a dúvida em muitas cabeças: a ambiguidade da lei é obra de incompetência ou de conveniência? Foi má técnica jurídica ou boa manha política?

Mas como foi seguramente uma redacção infeliz que permite todas estas dúvidas, o Governo deverá já ter pronto um instrumento legal interpretativo que acabe com elas e que atribua imediatamente à ASF a função de avaliação de idoneidade dos dirigentes de associações mutualistas. E, como está toda a gente bem intencionada e a querer resolver o problema sem demoras, isso vai acontecer já nos próximos dias.

Depois saberemos como é que o Governo pode obrigar um presidente da ASF cujo mandato terminou há 15 meses e se encontra em gestão desde essa data, à espera que alguém indique um sucessor, a fazer uma diligência que ele, convictamente, acha que não deve fazer – e estes 15 meses dizem também muito sobre a forma como a regulação é desprezada pelos governos.

Mas há uma questão prévia, mais preocupante ainda: quem tem medo de Tomás Correia?

Há anos que as suspeitas se avolumam, que as investigações arrancaram e que a mais elementar prudência aconselharia a que se tivesse afastado da gestão do universo Montepio.

E o que vimos? O que vimos é que o Banco de Portugal cumpriu, neste caso, a sua função, obrigando a um separar de águas entre o banco (responsabilidade sua) e a associação mutualista (responsabilidade do Ministério da Segurança Social). Afastou assim Tomás Correia da gestão do banco e prosseguiu com as investigações, como agora se confirmou.

De resto, tivemos um governo a tomar decisões fiscais para ajudar a maquilhar contas da Associação Mutualista.

Tivemos uma boa vontade enorme da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e sua tutela, que quiseram meter 200 milhões no banco Montepio. Só a péssima publicidade dada levou ao recuo num negócio que tresandava e não tinha ponta por onde se lhe pagasse.

Tivemos uma eleição para a AMMG em que Tomás Correia apresentou uma Comissão de Honra cheia de gente influente, políticos, ex-governantes e artistas.

E temos agora este temor em fazer alguma coisa que possa incomodá-lo ou indispô-lo para salvaguardar património de centenas de milhares de cidadãos que ali colocaram poupanças.

O que se passa? Tomás Correia tem responsáveis públicos “no bolso”? Há poderes que estão por ele capturados por alguma razão? Ele tem poder para fazer implodir alguma coisa? Sabe demasiado de demasiada gente?

Só a este nível se pode encontrar alguma racionalidade – perversa e pornográfica mas ainda assim racionalidade – para explicar isto. É uma sucessão demasiadamente surrealista de acontecimentos para pensar que é apenas incompetência e distracção. Depois do BPN, do BPP, do BES e da Caixa isto não pode estar a acontecer.

Até por uma questão de prudência política, haveria toda a conveniência em não acumular lixo debaixo do tapete onde se possa tropeçar em ano eleitoral. Tomás Correia escalda, como se está a perceber, e ninguém quer ficar com ele nas mãos para não se queimar.

Não sabemos até quando vai durar a passagem da “batata quente”. Mas sabemos quem pagará a factura se alguma coisa correr mesmo mal e houver poupanças para salvar. Essa é a única certeza que temos nestes casos.

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