Renegociar em Estado de Incerteza

  • Ricardo Saraiva
  • 24 Julho 2020

Mas tanta incerteza traz, pelo menos, uma certeza: é necessário repensar a forma como as pessoas e as empresas reagem às adversidades nos negócios, nomeadamente às situações de incumprimento.

A incerteza chegou e veio para ficar. Pelo menos por algum tempo, não sabemos quanto. É incerto, ainda, quando irá esta incerteza terminar.

Mas tanta incerteza traz, pelo menos, uma certeza: é necessário repensar a forma como as pessoas e as empresas reagem às adversidades nos negócios, nomeadamente às situações de incumprimento ou de dificuldade no cumprimento dos contratos e, de forma geral, à frustração das expectativas criadas no momento da celebração dos seus negócios.

Em momentos de incerteza o temor passa a medo e este se transforma em pânico. Perante a falta de cumprimento atempado seguimos de forma instintiva o caminho tradicional: primeiro a carta de interpelação e, na falta de resposta ou cumprimento, damos início ao procedimento de resolução de litígios ficando, deste modo, cristalizada a litigância. De forma simplista: a preocupação é centrada em assegurar que o cliente tem um título executivo. Se já tiver, melhor, seguimos para a execução. Nas situações limite, requer-se a insolvência.

Mas este momento tão estranho e distinto que vivemos exige uma abordagem diferente e nós, os Advogados, não temos um papel secundário, mas principal, neste novo episódio das nossas vidas.

Os Governos europeus – como, de resto, um pouco por todo o Mundo – rapidamente, ou não, compreenderam – umas vezes melhor, outras pior – que não podíamos responder de forma tradicional e instintiva a este novo momento: havia que (re)criar mecanismos que impedissem que tudo isto desabasse. Vieram os lay offs, as moratórias, as suspensões de prazos e de processos e de procedimentos, os perdões de penas.

Está tudo preso por finos fios, dirão uns. Mas não podem dizer que tudo desabou. E a verdade é que pode não desabar. A tal incerteza.

Quanto às adversidades no cumprimento das obrigações as palavras de ordem devem ser negociação e conciliação, com razoabilidade. Aqui está o nosso (dos Advogados) papel principal.

Primeiro, há que compreender que nem sempre a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso criam um litígio. Depois, tendo-se, de facto, criado uma divergência entre as partes – decorrente, nomeadamente, da falta de consenso quanto ao enquadramento ou solução para aquelas situações – há que procurar o melhor caminho para a resolução.

O atual momento requer soluções fruto de concertação, dentro da razoabilidade. Por outras palavras, a tradicional solução de “rompimento” do contrato e consequente recurso à litigância pode não ser o caminho que melhor serve o interesse de qualquer das partes.

Isto porque, por um lado, encontramo-nos num “estado de incerteza” em que o cumprimento que hoje se apresenta como impossível ou improvável pode em pouco tempo ser viabilizado; por outro, o imediato recurso à resolução contratual num momento de generalizada dificuldade e incerteza tem, o mais das vezes, um efeito nefasto na vida de uma pessoa ou empresa e tem um eco de contaminação que vai muito além daquela relação contratual ou da atividade daquela pessoa ou empresa.

Não pretendo com isto dizer que se devem remir cegamente os incumprimentos e internalizar os prejuízos dali decorrentes em prol de um bem maior; antes, que devem neste período de exceção ser procuradas soluções excecionais que impeçam que tudo isto desabe.

O Advogado desempenha um papel que vai muito além do mero aconselhamento jurídico e execução da solicitação do cliente. A nossa profissão tem exigências de cariz ético, moral e social que, na atual conjuntura e mais do que nunca, nos tornam corresponsáveis (socialmente, entenda-se) por determinadas decisões dos nossos clientes quanto à condução de determinadas relações contratuais.

A renegociação dos contratos – prazos, preço, escopo, condições – pode ser a solução que melhor serve os interesses de ambas as partes. A experiência de crises recentes demonstrou-nos que a opção pela simples inviabilização da manutenção dos contratos pode acarretar prejuízos maiores na medida em que conduza a uma situação de insolvência onde se mostre inviável a cobrança dos créditos. Numa escala macro assistimos à massificação de insolvências de pessoas e empresas com impacto nocivo na atividade dos credores colocando-os, em muitos casos, também em situação de insolvência.

A renegociação implica sempre concessão, mas será mais razoável ganharmos todos e perdermos todos um pouco do que poucos ganharem alguma coisa e muitos perderem tudo ou quase tudo.

Apesar de em “estado de incerteza” a renegociação ser o melhor remédio, claro está que ela não é a solução para tudo: haverá que saber reconhecer quando uma relação contratual não é suscetível de ser salva. Nestas situações, e persistindo a divergência entre as partes, os mecanismos de resolução alternativa de litígios deverão desempenhar um papel preponderante na resolução, de forma célere e equilibrada, daquelas divergências devendo, em particular, ser dada uma oportunidade real à mediação cujos benefícios são ainda ignorados por muitos de nós.

  • Ricardo Saraiva
  • Associado sénior na Miranda & Associados

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