Neste Verão, os portugueses fazem o que não querem, sonham o que não podem, guardam o que não têm, como se o Mundo fosse um grande relógio parado.

Este é o Verão do desassossego. Esta é a estação do calor em que o Verão foi cancelado. Os portugueses estão cansados da pandemia, mas o Mundo fecha-se em círculos concêntricos e deixa os portugueses de fora. Sem poderem ir, sem quererem ficar, as férias possíveis são um roteiro interior feito de um slogan em que o ir para fora é ficar cá dentro. É como se as férias fossem uma imitação limitada de um tempo que parece distante. Em casa fechados, na rua fechados, é como um passeio calado feito de uma conversa contínua perante a ameaça de uma pequena multidão. Máscaras, distância social, etiqueta respiratória, o novo normal tem a marca asséptica da solidão. Há uma fadiga que pertence a um filme de ficção, uma espécie de pesadelo em que todos habitamos um Sanatório isolado nos Alpes da Suíça, sem saber como lá chegámos e sem conhecer o caminho de volta. Neste Verão, os portugueses fazem o que não querem, sonham o que não podem, guardam o que não têm, como se o Mundo fosse um grande relógio parado.

No entanto, o Verão é a estação das memórias. Quando procuramos o país distante que ficou no passado, surge quase sempre a fluidez de um dia de Sol iluminado por horas felizes, parentes bem próximos, praias a perder de vista, sonhos sem preocupação, paisagens sem nuvens, tardes intermináveis que acabam no limite do Mundo, os prazeres da vida numa fotografia confusa, os prazeres da mente num livro manchado com marcas de gelado e de café, a suspensão da vida normal por onde viajam aviões, comboios, automóveis, navios, que não nos deixam dormir nem nos permitem acordar. O romantismo de um Verão com cidades perfeitas e ruínas com alma e fachadas com sonhos e que são fragmentos da nossa autobiografia.

Gosto de viajar. Habituei-me a viajar. Viajar não é apenas interromper a rotina, fugir de um quotidiano que se detesta num misto de amor e ódio, escapar por um momento a uma condição que transporta o nosso lugar na sociedade e nos eleva ao lugar magnífico em que as manobras do coração nos levam a conhecer gente que nunca mais voltaremos a ver. Por mais banal que possa parecer a viagem, existe sempre a possibilidade do desconhecido, o mistério do imprevisível quando algo de intemporal invade os nossos passos e permanece na nossa vida e persiste para todo o sempre. Viajar é percorrer a vida ao som estridente de uma “História do Mundo em 10 Capítulos e ½”, viajar é uma anotação luminosa nas margens do que sabemos que pensamos sobre o que pensamos que sabemos.

Viajar hoje é percorrer o labirinto de linhas vermelhas que o vírus vai desenhando pelo Mundo, um jogo de tabuleiro num mapa verdadeiro, onde se contam casos e probabilidades, estatísticas e confinamentos, e onde sobra sempre a geografia do desejo, a caligrafia da saudade, a nostalgia dos lugares fechados aos quais não sabemos quando poderemos regressar. O vírus ergue fronteiras em cima de fronteiras, separa no papel os planos de viagem e reserva um lugar para cada um de nós que cada um de nós simplesmente recusa. O vírus é violento e revolucionário e procura com perícia a persistência da vulnerabilidade humana.
Viajar é também o exercício errante de ir pelo Mundo e observar nos outros aquilo que também existe em cada um de nós. Ver para nos vermos. Conhecer para nos conhecermos. Nesta aventura, se numa noite de Verão um viajante chegar, chega também a observação das grandes e pequenas coisas que preenchem a aparente banalidade de um gesto inconsciente e repetido – a colecção de gestos que nos fazem humanos na sequência secular e diária das interacções codificadas no comportamento da espécie. Esta colecção de gestos é como um frágil castelo de cartas construído com o critério, com a consciência, com a inteligência que se expande em cada momento e em cada século. Este património de práticas tem uma fragilidade constitutiva, ameaçado por todas as contingências e por todos os cataclismos. A sua sobrevivência deve-se ao simples facto de que cada carta é suportada por todas as cartas, a sobrevivência deve-se à propagação da vulnerabilidade partilhada que se transforma num edifício concreto que suporta e sustenta uma identidade. Na esquina mais próxima de uma cidade finita, no horizonte mais distante de um império infinito, a fragilidade do castelo de cartas é a marca de uma estrutura complexa que designamos por civilização. Para o verdadeiro viajante o Mundo é um escritório involuntário onde se esconde toda a filosofia e uma breve notícia do fim.

O vírus rasga-nos com um dilema sem solução – partir ou ficar. Partir não é sinal de vitória tal como ficar não é sinal de derrota. O acto de viver existe diariamente com o gesto de morrer, e como membros de uma comunidade de destino temos uma responsabilidade permanente em preservar as nossas vidas e em respeitar ou outros que ocupam os seus lugares no misterioso castelo de cartas. Qualquer dano causado ao outro é um dano causado a nós através do edifício colorido e complexo que designamos por sociedade. O vírus coloca-nos numa posição insuportável próxima da mutilação – o acto de amputar os dedos da mão esquerda com a força dos dedos da mão direita. Uma escolha impossível num Verão que acabará sempre por incomodar na memória.

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