Tanto quanto as acusações são úteis à República, assim o são perniciosas as calúnias

  • João Macedo Vitorino
  • 10 Maio 2024

Continuar neste caminho aumentará a exposição da República à calúnia e os riscos de perda da nossa liberdade.

A propósito da recente entrada em vigor da Diretiva (UE) 2024/1069 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de abril de 2024, relativa às “ações judiciais estratégicas contra a participação pública”, vieram-me à memória as sábias palavras de Nicolau Maquiavel sobre a guarda da liberdade na República. Dizia ele que “àqueles que numa cidade são propostos para guarda da sua liberdade, não se pode dar autoridade mais útil e necessária do que a de poder acusar os cidadãos perante o povo, qualquer magistrado ou conselho, sempre que pequem nalguma coisa contra o estado livre.” Ao mesmo tempo, avisava que “se usa mais a calúnia onde se usa menos a acusação e onde as cidades estão menos ordenadas para recebê-la[s]”. Maquiavel entendia que, para reprimir a calúnia, não se deve reprimir a possibilidade de acusar, senão o contrário: o poder de acusar é fundamental à liberdade e não se deve restringir. Devia-se, sim, ordenar os poderes dos magistrados para que pudessem distinguir a acusação da calúnia e castigar esta última.

A Diretiva, diz pretender “eliminar os obstáculos à boa tramitação das ações cíveis, assegurando simultaneamente proteção às pessoas singulares e coletivas envolvidas na participação pública em questões de interesse público”. Entre os visados pela necessidade de proteção, estão as entidades com “participação pública”, nomeadamente, jornalistas e académicos, mas também titulares de cargos políticos. Entre os instigadores contra os quais estes merecem proteção especial, estão as algo misteriosas “entidades poderosas, como indivíduos, grupos de lóbis, grandes sociedades comerciais, políticos e órgãos do Estado”.

A Diretiva refere que “é importante proteger as pessoas singulares e coletivas dos processos judiciais abusivos contra a participação pública”. E enfatiza que estes processos “não são instaurados para efeitos de acesso à justiça, mas para silenciar o debate público e impedir a investigação e denúncia de violações do direito da União e Nacional, recorrendo normalmente ao assédio e à intimidação.”

E, assim, obriga os Estados membros a criar garantias especiais para dificultar a instauração de processos contra as entidades com participação pública, nomeadamente, que os tribunais possam exigir a prestação de caução e as chamadas “medidas corretivas contra processos judiciais abusivos contra a participação pública”, tais como custas processuais acrescidas e multas.

Confrontando Maquiavel com os propósitos desta Diretiva (UE) 2024/1069, torna-se claro o choque entre o alerta de Maquiavel e o que a Diretiva vem impor aos Estado Membros da União Europeia. Cabe, pois, perguntar, politicamente, se não estamos a fomentar a calúnia ao dificultar a instauração dos processos contra as entidades com participação pública; se não estarão as instituições europeias a reagir a quente face a recentes circunstâncias; e se é legítimo os políticos auto incluírem-se como beneficiários destas medidas.

Juridicamente, devemos questionar se não existem já meios suficientes, pelo menos no nosso ordenamento jurídico, para reagir contra as chamadas ações abusivas. No processo civil português, para além da possibilidade de indeferimento liminar, naturalmente limitada pelo princípio do contraditório, existe o instituto da litigância de má fé, que permite ao tribunal impor oficiosamente – leia-se por sua própria iniciativa – multas a quem faça um uso indevido do direito de ação. No processo penal, cabe, mesmo nos crimes que dependem de acusação particular, ao Ministério Público acusar ou não acusar; o que, sendo as coisas bem-feitas, só pode acontecer quando exista prova suficiente para levar o arguido a julgamento.

Fica ainda para os constitucionalistas perguntar se, dificultando a uns e não a outros, o acesso aos tribunais por razões dificilmente objetiváveis, não estamos a pôr em causa o próprio artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa que, estabelece para todos o direito ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, o que o mesmo quer dizer, o direito de todos a acederem aos tribunais.

Mais que tudo, sendo a liberdade e a igualdade que estão em causa, cabe-nos a todos refletir se é por este caminho de restrição do acesso ao direito que queremos ir. E se, uma vez que meios já existem, não devíamos antes ser mais exigentes para com as nossas magistraturas judiciais no sancionar das ações abusivas, no “castigar das calúnias” como diria Maquiavel, em vez de criarmos restrições de acesso aos tribunais para uns poucos e, apenas para benefícios de outros poucos. Da minha parte, posso apenas intuir que, continuar neste caminho aumentará a exposição da República à calúnia e os riscos de perda da nossa liberdade.

  • João Macedo Vitorino
  • Sócio da Macedo Vitorino

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