Teletrabalho + telescola = pais desesperados

As aulas à distância arrancam hoje e milhares de pais vão ser obrigados a trabalhar ao mesmo tempo que ajudam os filhos na escola. Não é justo.

Depois de uma paragem de 15 dias por causa do aumento dos contágios de Covid-19, as aulas regressam esta segunda-feira, mas à distância. Para ajudar os pais que vão ter de ficar em casa a tomar conta dos filhos, o Governo ressuscitou o Apoio Excecional de Assistência à Família, uma ajuda aos trabalhadores que faltem ao trabalho para tomar conta dos filhos menores.

A adesão a este apoio, que permite ficar em casa a receber 2/3 do salário para cuidar dos filhos menores de 12 anos, está a ser um flop. Existe um universo potencial de 750 mil famílias que poderiam beneficiar deste apoio, mas até agora apenas 22 mil ou 3% do total apresentaram os papéis para aceder a este apoio da Segurança Social.

A principal razão para este flop é que se o trabalhador estiver em casa em teletrabalho (porque é obrigatório) não tem direito a esta ajuda. Além disso, e como se essa limitação não fosse suficiente, se a mulher ou o marido desse trabalhador calhar também estar em teletrabalho, o Estado também não paga o apoio a esse trabalhador.

Esta dupla limitação parte de uma visão anacrónica do teletrabalho, com o Estado a presumir que quem está em casa a teletrabalhar, “estará mais folgado” e com certeza arranjará tempo e engenho para também poder tomar conta de um ou mais filhos com menos de 12 anos.

Esta presunção é errada e levanta vários problemas, quer para os pais, quer para os filhos. Como desabafava este domingo no jornal Público Rita Fidalgo, uma mãe em teletrabalho: “Eu se quiser ser uma boa mãe, sou uma má trabalhadora. E vice-versa”.

Para os pais, trabalhar ao mesmo tempo que tomam conta dos miúdos naturalmente levanta um problema de concentração no trabalho. É impossível que alguém consiga trabalhar em condições com a Disney Channel aos berros e com uma criança a pedir comida, a dar cambalhotas no chão e aos pulos em cima do sofá.

Além da concentração, esta dupla função cria um problema óbvio de stress de pais que não são bem pais, porque estão ocupados com o trabalho, e de trabalhadores que não são bem trabalhadores porque estão a cuidar dos filhos.

Estamos a falar de milhares de pais e trabalhadores condenados a exercer o seu papel de pai/mãe e de trabalhador apenas com uma mão: com uma mão envio um documento para o trabalho e com a outra ponho a sopa ao lume a aquecer; atendo o telefone com a mão direita e com esquerda dou de comer à criança; escrevo um email a um cliente só com uma mão porque a outra está ocupada a preparar a água do banho. Com metade do cérebro penso em soluções para convencer o cliente a comprar o produto da empresa e com a outra metade tento ajudar o meu filho do 9º ano na aula de matemática a descobrir “um número irracional compreendido entre 4 e 5”. Isto é irracional.

Ao final do dia escrevo o relatório para a empresa com uma mão e com a outra faço zapping na televisão. Mudo da Disney Channel para um canal de notícias onde vejo a ministra da Segurança Social, sorridente, a anunciar que o Governo lançou um apoio de Assistência à Família. Chego ao final do dia e não me apetece sorrir. É um problema de mãos. O Governo dá o apoio com uma mão e tira com a outra.

Além dos problemas da concentração e do stress, este papel simultâneo de pai/trabalhador pode levantar problemas de segurança: “No outro dia fui dar com ela em cima do armário de onde podia cair. Eu não dei atenção porque estava a trabalhar”, confessava Rita Fidalgo.

Numa altura em que por motivos óbvios relacionados com a pandemia deixar os filhos com os avós não é opção, que solução tem o Governo para estes trabalhadores que não conseguem ser pais e para estes pais que não conseguem ser trabalhadores? De acordo com fonte oficial do Ministério do Trabalho e da Segurança Social, os pais que não estiverem a conseguir dar conta do recado “podem beneficiar de falta justificada, sem direito a remuneração e sem direito ao apoio excecional à família”.

Ao ouvir uma resposta leviana destas só apetece voltar a mudar para o Disney Channel. É preferível ouvir a Hannah Montana aos berros do que ouvir Ana Mendes Godinho a dizer que os pais podem sempre abdicar do salário para ir tomar conta dos filhos. E com que dinheiro sustentam esses filhos?

Por uma questão de justiça e bom senso, o Governo deveria permitir que quem tivesse funções compatíveis com o teletrabalho também pudesse ter acesso a este Apoio Excecional de Assistência à Família para ficar em casa a cuidar dos filhos. O corte salarial de 1/3 já é um elemento suficientemente dissuasor para que ninguém desista do teletrabalho sem ter realmente uma necessidade imperiosa de o fazer.

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