Ter o senhorio do senhor
José Manuel Galvão Teles era exímio. E, definindo-se em larga medida nisso e por isso um advogado, é também por aí, entre muitas outras coisas, que José Manuel Galvão Teles foi um senhor.
Pedem-me que escreva sobre José Manuel Galvão Teles, por ocasião de mais uma evocação após o seu falecimento, e isso é-me difícil, por várias razões, das quais, brevitatis causa, destaco três: (i) é difícil escrever sobre alguém que me prendia a si com laços de tanta admiração quanto de afeto, e se a admiração proporciona abundância de temas para a escrita, já o afeto, e a consequente dor da perda, fazem minguar a capacidade para tanto; (ii) o essencial do que queria dizer já disse na Basílica da Estrela, em 4 de março, quando a família me honrou com o privilégio de dizer umas palavras, com as quais enchi quatro páginas e muitos minutos, tendo com isso tentado mitigar a tristeza, e não são aqui e agora o tempo e o lugar para a repetição; finalmente, (iii) muitos já disseram tanto, e bem, e não seria eu quem iria, repetindo ou glosando, dizer melhor, longe disso, e seja qual for a faceta que escolhesse do riquíssimo poliedro que ele foi – e continua a ser.
Contudo, não posso furtar-me à satisfação do pedido, seja em cortesia para quem o faz, seja em tributo, mais um (e sempre aquém do devido), ao visado. Pelo que procurarei concentrar-me num único ponto, e escolho-o para tema deste breve escrito, também e novamente, por três razões: (i) porque muito me marcou, (ii) porque ainda o não referi e, finalmente, (iii) porque ainda o não li ou escutei destacado quanto baste pela pena ou pela voz de outros. Vamos, pois, a ele, ao ponto, que se inscreve na faceta de advogado de José Manuel Galvão Teles (que é a que conheci melhor, e é também, ouso dizer, aquela que porventura será, a um tempo, a mais marcante do seu percurso e a mais ilustrativa na vida pública das suas qualidades de ser-pessoa).
Tenho para mim – e em larga medida bebendo do magistério dele – que um advogado deve preocupar-se em ter o senhorio de várias coisas: do Direito, dos factos, do desassombro, da prudência, da firmeza, da flexibilidade, da palavra escrita e falada, do silêncio, da empatia, da atenção, da abertura à vida e ao mundo, da estratégia e da tática, da deontologia, do prazer, do sacrifício, et cetera. Mas deve procurar, também, ter o senhorio do cliente, sendo que esse é aqui, precisamente, o meu ponto. Senhorio em que sentido? Uma vez mais, em três, pois são três as partes essenciais desse sentido, que aprendi não só com ele, mas aprendi em primeiro lugar e em grande medida com ele, sendo certo que esse senhorio não é menos importante do que todos os outros e será talvez mais do que muitos, e é aí que tudo, ou pelo menos muita coisa começa e se define e molda.
Em primeiro lugar, o senhorio de dizer sim ou de dizer não, aceito ou não aceito, patrocino ou não patrocino, quero ou não quero, faço ou não faço. Claro que para o poder fazer é preciso poder fazê-lo, ter as condições, ter o privilégio. Mas também é preciso ter a visão e a inteireza para tanto. As vezes que eu o vi recusar, primeiro mudo de pasmo e, depois, à medida que as esquinas da vida me calejavam, prenhe de admiração e de gratidão, não só por mo ter ensinado, mas também por me ter (com outros) proporcionado as condições para o poder fazer.
Em segundo lugar, o senhorio de dizer o como, que é a espinha dorsal do patrocínio do advogado. O cliente, que é quem me escolhe e quem me pede ajuda, parece ser, por isso, o senhor, o meu senhor. Mas realmente só o é, ou deve ser, em parte, porque só sirvo bem esse meu (aparente) senhor se, além de ser senhor de mim mesmo, for senhor do caso, do como do patrocínio, se for eu a determinar o essencial desse como. Se eu, advogado, for, afinal, o senhor do senhor, naquelas circunstâncias, que são as que o colocam, a ele, o cliente, nos meus braços. O senhorio é do advogado, tem de ser. Ai de quem permite ao cliente que diga o como do patrocínio, pois, não só se porta consigo mesmo menos bem, como também, e principalmente, não serve realmente o que lhe é pedido, não faz a função, antes se funcionaliza.
Em terceiro lugar, ter o senhorio do cliente é também saber que quem decide é ele, mas que quer decidir comigo, ou, amiúde, que eu realmente decida por ele, ainda que numa jornada participativa. Isto é, o cliente quer saber, e deve saber, quais são as possibilidades, quais os riscos, quais os caminhos e quais os becos (com e sem saída), mas não quer apenas a descrição disso, quer – precisa, e eu devo-lho – saber o que deve fazer, e o que eu acho que ele deve fazer, tantas vezes o que eu faria no seu lugar (no qual me coloco, mas no qual não estou, e é precisamente por isso que sei melhor do que ele, em diálogo, por onde é melhor ou menos mau ir). E tenho de ser capaz, não só de compreender a importância disso, como de me “atravessar” nessa orientação / decisão, de colocar – como sói dizer-se e como arrepia muitos, incluindo alguns advogados – “a cabeça no cepo”.
Coisa em que, como nas outras que em cima referi, e em tantas mais, José Manuel Galvão Teles era exímio. E, definindo-se em larga medida nisso e por isso um advogado, é também por aí, entre muitas outras coisas, que José Manuel Galvão Teles foi (e é, na recordação e no exemplo que perduram) um senhor.
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