Trabalho em plataformas digitais não é trabalho subordinado

  • Pedro Rosa
  • 2 Junho 2025

É imperativo criar um tipo contratual específico para o trabalho nesta atividade, tal como acontece com atividades até menos expressivas socialmente, casos do contrato de agência.

O título parece estar mesmo a pedir um ataque dos que se julgam os únicos preocupados com a defesa do trabalho… mas concedam-me um minuto. Na verdade, pretendo defender o trabalho nas plataformas digitais, só não quero fazê-lo no sentido mais tradicional, a meu ver mais irreal, que se propõe a reconduzir esse trabalho a um contrato de trabalho subordinado típico.

Ao mesmo tempo que se conheceram as primeiras decisões do Supremo Tribunal de Justiça sobre a presunção de laboralidade nas plataformas digitais, introduzida em 2023, as eleições de 18 de maio reconduziram o mesmo Governo que anunciou intenção de rever a solução adotada, face à sua já incontroversa desadequação.

Para esse exercício, uma pequena sugestão de partida: ouçam-se as pessoas que trabalham em plataformas digitais; e um mote: criem-se soluções jurídicas adequadas à realidade ao invés de, acriticamente, aplicar as mesmas regras criadas para as fábricas ou para o trabalho no escritório.

Em 2023, o Governo de então defendeu que Portugal se antecipou à transposição da Diretiva (EU) 2024/2831, que se propõe ao meritório objetivo de melhorar as condições de trabalho nas plataformas digitais, vendo na celeridade (excessiva) uma duvidosa virtude. Mas a Diretiva não impõe que este trabalho seja necessariamente qualificado nem regulado nos moldes do trabalho subordinado clássico. Este é um ponto essencial que se ignorou.

O trabalho em plataformas digitais distingue-se profundamente do modelo tradicional de trabalho subordinado, para o qual foi pensado o Código do Trabalho. Estamos perante atividades que se caracterizam por elevada autonomia na organização do tempo, multiplicidade de vinculações simultâneas a diferentes plataformas, uso intensivo de tecnologia e, muitas vezes, uma relação económica baseada em prestações singulares e de curta duração.

Daí que já se tenha ouvido representantes de associações de trabalhadores das plataformas afirmar, com clareza, que não desejam um contrato de trabalho nos moldes tradicionais. Esta posição, que causou surpresa e até frustração ao entrevistador da ocasião, revela que querem proteger os aspetos de autonomia e liberdade que esta atividade possui e que não são possíveis nas relações laborais subordinadas mais comuns, que obrigam a uma disponibilidade contínua, por um período estável e longo, em favor de um empregador para quem trabalham em exclusividade tendencial.

Regular esta realidade através do enquadramento do trabalho subordinado é um erro de partida. O que se exige é uma resposta legal que reconheça as especificidades do trabalho em plataformas, em vez de tentar forçar a sua recondução a um modelo que lhe é estruturalmente alheio, sem nunca deixar de procurar defender a justa composição destas relações.

A lei em vigor, ao invés, optou por criar uma presunção legal de contrato de trabalho subordinado descuidada e desavisada. Mais grave ainda, foi laxista ao dispor que se aplicariam ao trabalho em plataformas as normas do Código do Trabalho “que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada”. Mas que normas são essas, concretamente?

A plataforma deve pagar as despesas do trabalho, mesmo quando o trabalhador presta serviços a diversas plataformas? Que sentido faz isso? E como se aplica o regime da cessação do contrato de trabalho a um prestador que apenas realiza algumas horas por semana? Em que termos se faria uma hipotética reintegração? Como se calcula o tempo de trabalho deste tipo de trabalhadores?

O legislador, na verdade, demitiu-se da sua função e, sem qualquer respeito pelo valor essencial da certeza jurídica (os agentes têm de saber porque regras se regem!), deixou para os tribunais recortarem o que virá a ser o regime legal aplicável; nesta solução de constitucionalidade duvidosa (diga-se, demoraríamos anos até termos uma visão moderadamente unificada pela jurisprudência.

É imperativo criar um tipo contratual específico para o trabalho nesta atividade, tal como acontece com atividades até menos expressivas socialmente, casos do contrato de agência ou do contrato de trabalho desportivo entre outros, admitindo-se um largo espaço à contratação coletiva para modelar esta realidade laboral.

Um regime específico pode e deve dirigir-se às preocupações e defesa justa e equitativa das pessoas que trabalham em plataformas, que reclamam proteção social efetiva, assistência na negociação e aquisição de seguros, verificação de condições de segurança e saúde e um sistema de representação funcional. A Diretiva reconhece estes ensejos e quer promovê-los. O Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, que esteve na origem da Agenda do Trabalho Digno, também apontava nesse sentido.

No entanto, a solução que se adotou e se encontra em vigor pode condenar à morte a atividade, simplesmente porque a realidade desta atividade não se presta, por mais que se queira, à tortura de ser ver nela algo que não existe nem nunca existiu – uma relação de trabalho vinculada e subordinada.

Um regime específico do trabalho nas plataformas digitais pode e deve dar resposta tecnológica a problemas tecnológicos, como seja o de assegurar canais de comunicação, dar oportunidade de associação e representatividade, permitir reunir dados para efeitos administrativos e, até garantir a contribuição difusa das plataformas para direitos sociais como o seguro de acidentes ou a segurança social, proporcionalmente ao trabalho que lhes foi prestado.

Por outro lado, uma regulação mais bem pensada, baseada também em soluções tecnológicas, permitiria ainda controlar eficazmente tempos máximos de trabalho, exigir a justificação das decisões de acesso ou corte de ligação à plataforma, proibir exigências de disponibilidade horária mínima, entre outros aspetos importantes neste domínio.

É possível chegar a estes objetivos através da obrigatoriedade de criação de instrumentos informáticos que facilitem os registos necessários. Tudo isto, sem agredir a realidade específica do trabalho em plataformas, tentando forçá-la a caber num modelo legal criado para outra era e para outras formas de trabalho.

  • Pedro Rosa
  • Associado coordenador da PLMJ

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