Um Plano no Guardanapo. Um contraditório

  • Henrique Neto
  • 14 Junho 2020

O artigo de João Cunha tem um mérito: o de mostrar a pobreza estratégica dos argumentos contra a bitola europeia. Nesse sentido foi útil a sua publicação.

No artigo publicado recentemente neste jornal com o título “Um plano no guardanapo”, o autor João Cunha afirma que Portugal não tem um problema de bitola, baseado essencialmente no argumento de que a bitola só serviria para “melhorar marginalmente o 1% ou 2% do tráfego ferroviário de mercadorias que pode sair de Portugal directamente para o restante continente europeu”.

O autor ignora completamente, não sabemos se deliberadamente ou não, as políticas europeias para garantir a sustentabilidade do sistema de transportes na Europa, e os constrangimentos energéticos e ambientais que as motivam. Estas políticas preveem a transferência de 50% do tráfego rodoviário em longas distâncias (mais de 300km) para a ferrovia e o transporte marítimo.

De facto, o tráfego ferroviário de mercadorias de Portugal para a Europa além Pirenéus é zero, e para Espanha é residual. Mas não é para servir este tráfego que a ferrovia de bitola europeia é necessária, é precisamente para alterar esta situação. Isto é fundamental para Portugal, porque:

  1. 70% do nosso comércio internacional faz-se com a UE, e deste, 80% em valor faz-se por rodovia.
  2. A via rodoviária tende para o esgotamento por causa dos constrangimentos ambientais e energéticos.
  3. A via marítima não é uma alternativa competitiva aos meios terrestres nos corredores de grande tráfego no comércio com a UE para muitos sectores de actividade porque oferece menor frequência, os tempos de percurso são superiores e obriga a transbordos adicionais para destinos fora da zona costeira da Europa.

Neste contexto, sem uma ferrovia competitiva para o nosso comércio com a Europa, para largos sectores de actividade a única alternativa será usar as plataformas logísticas espanholas para aí embarcar as nossas exportações com destino a parte de Espanha e restante Europa. Nestas condições Portugal estará em forte desvantagem em relação a Espanha para atrair e fixar investimento, ficando condenado ao isolamento e empobrecimento face ao resto da UE.

João Cunha reforça o argumento anterior com dois outros argumentos:

  1. “As palavras de Pires da Fonseca, anterior administrador da Takargo (operador privado de comboios de mercadorias), que mencionava que era perfeitamente gerível e comportável (quer em custos, quer em tempo) o eventual transbordo necessário nestes casos na fronteira entre Espanha e França”.
  2. “Está em fase de homologação uma solução de eixos telescópicos de fácil implementação em vagões existentes, para também os comboios de mercadorias poderem passar a mudar de bitola em andamento, como já existe nos comboios de passageiros”.

Relativamente ao argumento 1, de facto as perdas de tempo e custos dos transbordos oneravam o transporte em mais 15% (de custo e tempo) o comboio de mercadorias da DBSchenker que há uns anos ligava Portugal à Alemanha, tendo chegado a uma frequência de dois comboios por semana. Mas as transferências modais preconizadas pela UE representariam não dois comboios por semana mas dezenas por dia (oriundos de Portugal e Espanha), e as estações de transbordo não teriam capacidade de resposta para essas quantidades.

Além disso, o comboio, que não era um mas dois, um em cada bitola de cada lado da fronteira, tinham de chegar à fronteira quase simultaneamente para trocar de mercadoria, e voltar logo para trás, para o acréscimo de tempo ser reduzido (os 15% referidos acima). O atraso de um comboio tornava-se o atraso de dois. Um sistema assim é difícil de gerir, tornando-se impraticável em grandes quantidades, como será necessário no futuro.

Relativamente ao argumento, o que interessa não é se os eixos telescópicos existem, sabemos que existem há mais de 50 anos, mas se são competitivos no transporte de mercadorias. E nunca foram utilizados no transporte de mercadorias porque não são: Aumentam o peso dos vagões, reduzindo a peso da carga que podem transportar, aumentam o custo dos vagões, aumentando o custo do transporte e, como não são material standard usado em todos os países, avarias nos eixos não poderiam ser reparadas no local e obrigava a rebocar os vagões para Espanha (provavelmente). É um sistema pouco competitivo, que só recentemente recebeu atenção para servir durante a fase de transição, optimizando os fluxos durante a migração da bitola em Espanha. Aliás, as próprias empresas que estão a desenvolver estes eixos para vagões de mercadorias, referem explicitamente que se destinam a facilitar a transição da bitola, e não a evitá-la.

Referindo-se a Espanha, no artigo afirma-se que “estão a construir (ou já construíram, maioritariamente) uma rede de altas prestações em bitola europeia, o que faz sentido pois são linhas que só podem ser percorridas pelos novos comboios de alta velocidade – porque só esses aproveitam a velocidade autorizada e porque as rampas são demasiado grandes para comboios de mercadorias”.

O facto da maioria das linhas de bitola europeia em Espanha serem destinadas a tráfego exclusivo de passageiros foi um erro que o ministro do Fomento de Espanha reconheceu nas Cortes em 2011, e foi corrigido: A partir daí as linhas passaram a ser projectadas para tráfego misto, isto é, para serem aptas para tráfego competitivo tanto de passageiros como de mercadorias.

É falso que as linhas de Bitola europeia só possam ser percorridas por comboios de passageiros, porque:

  1. Para percorrer uma linha os comboios não são obrigados a fazê-lo à velocidade máxima (velocidade de projecto), pois máxima significa que podem percorrê-la a qualquer velocidade inferior a essa (um comboio tem de poder circular em segurança a qualquer velocidade inferior à máxima, senão não poderia travar e reduzir a velocidade).
  2. As rampas são um parâmetro de projecto especificado no início deste e por isso podem ser grandes ou não, tendo a decisão de 2011 obrigado a rever este parâmetro. Refira-se também que as Linhas espanholas de bitola europeia que mais interessam ao tráfego internacional de mercadorias com origem/destino em Portugal, como as Linhas do País Basco ou a Linha Lisboa-Madrid estão preparadas para tráfego competitivo de mercadorias.

Dado que todos os argumentos anteriores são válidos tanto para Portugal como Espanha, se o problema da bitola não existe, porque razão é que a Espanha investe todos os anos, só do Orçamento de Estado, verbas da ordem dos 3 mil milhões de euros na rede de bitola europeia? Os espanhóis devem ser estúpidos a gastarem tanto dinheiro para resolver um problema que não existe. Nós, portugueses, é que somos inteligentes com a nossa política de transformar a nossa rede numa ilha ferroviária. É a versão ferroviária do orgulhosamente sós.

João Cunha tenta justificar estes investimentos espanhóis, afirmando: “Sendo necessário um novo parque, faz sentido optar por uma bitola diferente e assim começar a ligação a França”. Mas porque é que um novo parque (presume-se que por novo parque se queira dizer nova rede ferroviária) é necessário em Espanha e em Portugal não?

Também escreve que “o que propõe Costa Silva é, portanto, estoirar milhares de milhões de Euros a resolver um problema que não temos, para no fim ficarmos com linhas numa bitola que nenhum comboio pode usar mas que mantém baixas velocidades, rampas demasiado pronunciadas ou capacidade insuficiente”.

A realidade é exactamente o contrário. A migração da rede está prevista começar pela construção de linhas novas nos principais itinerários de grande tráfego (presentes e futuros), tal como definido nos acordos da Figueira da Foz de 2003, permitindo não só a introdução da bitola europeia nesses itinerários como a melhoria dos parâmetros técnicos do traçado, ou seja, velocidades mais elevadas e rampas mais suaves. E como a construção desta nova rede, e uma eventual migração progressiva da bitola na rede existente que possa ocorrer de seguida, é um processo gradual que demorará 4 décadas ou mais, há tempo para a substituição faseada do material circulante, cujos custos poderão ser minimizados através de planeamento adequado.

Uma última nota sobre os portos: não se defende a bitola europeia para levar mercadoria de Sines para Roterdão. A este respeito João Cunha tem razão. Mas a bitola europeia para o centro da Europa, permitindo o transporte competitivo de mercadorias por ser directo, permite em conjunto com os portos, em particular Sines se este hub portuário se expandir, oferecer boas condições logísticas de ligação a todos os mercados do mundo.

A conectividade ao mundo, em conjunto com o espaço ilimitado para instalação de actividades logísticas e industriais na vizinhança do porto, criaria assim um local muito atrativo para empresas integradoras que vendem para o mundo inteiro e precisam de grande flexibilidade para se adaptarem rapidamente a variações geográficas da procura. E com a reorientação da globalização na sequência da pandemia do Covid19, em que as empresas procurarão reduzir a dependência da China e reorientar grande parte dos investimentos para locais mais seguros e fiáveis, Portugal tem uma grande oportunidade de atrair investimento e criar emprego. A ferrovia de bitola europeia é uma condição necessária, das mais importantes, para este efeito

Apesar de tudo, o artigo de João Cunha tem um mérito: o de mostrar a pobreza estratégica dos argumentos contra a bitola europeia. Nesse sentido foi útil a sua publicação.

Nota: Este texto foi escrito também por Mário Lopes, Professor do IST e ex-Presidente da ADFERSIT (Associação para o Desenvolvimento de Sistemas Integrados de Transportes)

  • Henrique Neto

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