Uma transição energética centrada no consumidor
Os consumidores não terão apenas mais energia renovável e concorrência, passarão a estar no centro do sistema e a poder ter uma palavra a dizer quanto à sua estratégia energética.
Vivemos um momento transformacional no setor energético. Talvez nunca, como hoje, o setor tenha assistido a uma mudança tão multifacetada e complexa.
No passado, o consumidor foi um mero destinatário das políticas energéticas, um ente passivo, cujas escolhas não orientavam ou condicionavam o rumo a tomar. Sendo a eletricidade um serviço essencial, o consumidor não tinha alternativa senão utilizar o serviço que existia. O que é paradigmático da mudança em curso é que, pela primeira vez, o consumidor é colocado no centro no panorama energético.
Olhando para as reformas feitas no passado no setor elétrico, ainda que as mesmas tenham sido também feitas em prol do consumidor, este foi essencialmente um espetador. O consumidor assistiu ao fim dos monopólios verticalmente integrados, à expansão das energias renováveis e à liberalização do setor, que acabaram por o beneficiar, na medida em que passou a existir maior concorrência. Mas as hipóteses de assumir um papel ativo na gestão do seu consumo energético eram escassas.
Até agora. As alterações atualmente em curso transportar-nos-ão para um paradigma radicalmente distinto: os consumidores não terão apenas mais energia renovável e concorrência, passarão a estar no centro do sistema e a poder ter uma palavra a dizer quanto à sua estratégia energética.
Munidos de contadores inteligentes e com uma rede capaz, os consumidores poderão conhecer, predefinir e gerir em tempo real as suas preferências de consumo, respondendo às oscilações do preço da eletricidade. Poderão produzir a sua própria energia, armazena-la e partilhá-la com outros consumidores, segundo critérios por si definidos. Poderão comprar energia verde a um ou mais comercializadores ou comprar separadamente garantias de origem.
Tudo isto será possível graças à transição digital, uma ferramenta capaz de catapultar a transição energética para mais altos voos. Na feliz expressão já usada por Jorge Vasconcelos, antigo presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, com a internet, o consumidor torna-se rei, também no domínio da energia.
O sistema elétrico no seu todo também sairá vencedor, tornando-se mais eficiente e resiliente, embora a prevenção de desigualdades entre consumidores e o planeamento da rede devam merecer uma atenção cuidada por parte das entidades públicas e reguladores.
Esta transformação defronta-se, porém, com enormes desafios. Olhemos em especial para o caso do autoconsumo coletivo e da partilha de energia, com ou sem comunidades de energia renovável.
Para os poderes públicos coloca-se o desafio de, por debaixo de um quadro legal aberto e flexível, que já existe, criar as condições para a sua fácil implementação, com regras claras e uniformes e sem barreiras operacionais injustificadas. No setor elétrico, porventura como em nenhum outro setor, o diabo está nos detalhes. Aos poderes públicos, incluindo regulação, impõe-se ainda que promovam o investimento em redes inteligentes com a melhor relação custo-benefício.
Para os consumidores o desafio estará em vencerem a inércia, mudarem a sua forma de pensar a eletricidade e abraçarem estes novos modelos que lhes permitirão reduzir os seus custos energéticos. A mudança será mais fácil para os consumidores empresariais, ativamente orientados para a eficiência e com músculo financeiro numa base stand alone, ao passo que nos domésticos será necessária a intervenção de terceiros na promoção, simplificação e estandardização de modelos para que a mudança se torne realidade.
O maior desafio, porém, apresenta-se às empresas do setor e aos novos players que venham a entrar. Sendo a eletricidade um setor altamente complexo, poucos serão os consumidores que farão este caminho sozinhos – serão estas empresas o motor impulsionador destas novas realidades. A solução tem de ser apresentada ao consumidor já desenhada e digerida e de forma facilmente percetível. Assim, estas empresas terão o repto de criar, dentro da intrincada malha regulatória, modelos de negócio e contratuais que tirem do papel estas realidades, seja ao nível da gestão do autoconsumo coletivo e de comunidades de energia, seja ao nível da agregação da produção e da procura.
Finalmente, existe ainda o desafio do financiamento bancário, que nos parece ser suficiente para justificar a eliminação de barreiras à tomada de controlo por entidades financiadoras. Entidades financiadoras essas que também deverão estar alerta e disponíveis para investir e incentivar este novo modelo.
Os desafios são de monta, mas também o é a oportunidade. A oportunidade que se nos oferece é a de criar um modelo energético mais descentralizado, mais eficiente e mais adequado a cada consumidor.
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