Na manhã em que o IVA desapareceu em dezenas de alimentos, o ECO visitou supermercados no Porto, em Coimbra e no Seixal. Encontrou produtos já assinalados, mas também muita desconfiança nos clientes.
O ambiente está calmo. Poucos escolhem as primeiras horas do dia para comprar mercearia, muito menos numa terça-feira. Mas há uma boa explicação para o ECO estar no supermercado assim tão cedo. Hoje, dia 18 de abril, entrou em vigor o “IVA zero”, uma medida implementada pelo Governo para tentar baixar e estabilizar os preços dos alimentos. Ao chegar ao Continente do Seixal, na Área Metropolitana de Lisboa, é preciso atenção para perceber que algo está diferente.
Dirigimo-nos à secção das frutas. Até ao final de outubro, produtos como maçã, banana, laranja e melão não vão pagar imposto sobre o consumo. A loja do grupo Sonae desenhou um sinal de cor vermelha e amarela, com a indicação “IVA 0%”, para ajudar os clientes a identificar os artigos abrangidos. Não é a única referência à medida negociada com a distribuição e com os produtores. As etiquetas também mencionam “IVA 0%” e mostram o preço com IVA e o custo final sem este imposto.
Nesta área do estabelecimento, inserido no centro comercial Rio Sul, ainda há vestígios do trabalho de bastidores que teve de acontecer entre segunda e terça-feira. Uma funcionária substitui etiquetas de um conjunto de legumes biológicos. Mas, na generalidade, os produtos estão assinalados como prometido e foram adotadas outras medidas para informar os clientes desta novidade. Junto aos congelados, há um grande cartaz vertical com a lista de produtos que ficaram um pouco mais acessíveis. Em várias secções, há bandeirolas a destacar a medida. Certos produtos tiveram de levar autocolantes por cima dos preços anteriores, como é o caso das cuvetes de peixe.
No parque de estacionamento, um casal que carrega o automóvel de compras, que não quis ser identificado, confirma ter reparado nos produtos sem IVA nas prateleiras. No entanto, mostra-se pouco esperançoso com a eficácia da medida na redução dos preços dos alimentos. “Os preços baixaram um bocadinho. Mas é sol de pouca dura”, atiram.
Não muito longe dali, o Lidl do Fogueteiro também já fez refletir a isenção de IVA nos preços de muitos alimentos. Não encontramos cartazes a falar da medida, mas as etiquetas cor de laranja contrastam fortemente com as brancas. A única coisa que distingue as promoções da própria loja dos produtos que têm “IVA zero” é o sinal que acompanha a etiqueta. Na área dos laticínios são bem mais os produtos assinalados a laranja do que as etiquetas brancas com o preço “normal”. Fica a ideia errada de que está tudo em promoção. Além disso, o Lidl não indica nas etiquetas o preço anterior e o atual. Os clientes terão mais dificuldade em calcular quanto vão poupar efetivamente.
Simulámos duas compras nestas duas lojas, para verificar como a medida se reflete no talão. Ambas as superfícies distinguem de forma clara os produtos com isenção de IVA. E ambos os talões mencionam a Lei n.º 17/2023, de 14 de abril, o diploma proposto pelo Governo que foi rapidamente alterado e aprovado na Assembleia da República. Casualmente, questionamos uma operadora de caixa se a medida já entrou em vigor: “Já sim. Ontem [segunda-feira] foram 900 e tal preçários que tivemos de mudar”, relata a funcionária.
À saída da loja, Vanessa Atanásio prepara-se para devolver o carrinho de compras. “A carne está caríssima, está horrível”, desabafa. “Noto a carne muito mais cara do que na semana passada. Não consigo perceber”, diz, incrédula, comentando ainda que também o leite “está mais caro”. Reparou nos sinais do “IVA zero” nas prateleiras da loja, mas também esta cliente tem pouca confiança na eficácia da medida. “É um absurdo. É só para o inglês ver. Costumo dizer que o Governo dá um bocadinho com a mão direita, para nos mandar um soco com a mão esquerda”, remata.
Consegue atribuir responsabilidades no encarecimento dos bens alimentares? “Para mim, a culpa é do Governo, o Governo é que não põe mão nisto. Não é possível irmos a um sítio e ter um preço; e noutro sítio o mesmo produto, da mesma marca, tem um preço completamente diferente. E estamos a falar de produtos de alimentação”, afirma a cliente. E propõe “meter pessoas no terreno e medidas drásticas, em que [os estabelecimentos] não podem ultrapassar ‘X’ valor”. “Só podem ter uma [certa] margem. A culpa não é do produtor”, defende.
Feitas as contas, a isenção de IVA terá pouca influência nos hábitos de consumo desta cliente, prevê a própria: “Vou comprar o que costumo comprar porque tenho de comprar e porque não tenho outra hipótese. Tenho de comprar porque tenho um filho pequeno”.
Mais desconfiança a Norte
Na cidade do Porto, os consumidores abordados pelo ECO concordam que o fim temporário do IVA em certos alimentos “não tem qualquer impacto”. E que a “diferença é tão mínima que nem se nota” na carteira.
As principais cadeias prometeram identificar os artigos que estarão até 31 de outubro livres de imposto. No Froiz, inserido no Shopping Cidade do Porto, por volta das 9h20, os funcionários ainda estão a trocar as etiquetas dos produtos. No entanto, mesmo depois da troca apressada das referências não dá para perceber na plenitude quais os produtos com “IVA zero”.
À saída do Froiz, Maria Santos, de 72 anos, diz ter reparado que “ainda estavam a trocar as referências dos produtos”. “Nas compras que fiz, nenhum produto estava com ‘IVA zero’, porque há muitos produtos que ainda nem sequer têm etiqueta atualizada”, assegura. Na ótica desta reformada, a isenção de IVA em 46 categorias de alimentos “não é a ajuda que os portugueses precisam”. Perante a escalada do custo dos bens alimentares, realça que “devia existir uma entidade para regular os preços”.
“A vida está muito difícil. Houve uma subida demasiadamente exagerada que não é controlada e, como não existe esse controlo, as coisas estão como estão. As grandes superfícies acusam os fornecedores de aumentar os preços, os fornecedores dizem que são as grandes superfícies. Há aqui uma luta entre os dois. Devia existir uma entidade para regular isto tudo“, constata Maria Santos.
Cerca de 4,6 milhões de pessoas receberam os apoios extraordinários de 125 euros (mais 50 euros por dependente nos casos aplicáveis), lançados no final do ano passado para fazer face ao aumento do custo de vida. Para Maria Santos, foi uma “ajuda”, mas contrapõe que “muitas pessoas carenciadas não foram abrangidas por essa medida”. “Existem pessoas a morrer de fome e aqueles que não estão a morrer de fome estão em dificuldades”, refere. Reformada da Função Pública e a viver sozinha, “depois de pagar a renda de casa e as contas”, tem de fazer mensalmente “uma ginástica terrível no orçamento”.
No Continente Bom Dia, localizado no Mercado do Bom Sucesso, os produtos sujeitos a “IVA zero” estão assinalados. Na etiqueta, é possível ver o preço antigo e agora sem imposto. Por exemplo, a laranja do Algarve passou de 1,19 euros para 1,12, enquanto a couve-flor baixou de 1,98 euros para 1,87. Já o óleo alimentar, que teve um aumento brutal de preço com o eclodir guerra na Ucrânia, está 69 cêntimos mais barato: antes custava 2,83 euros e agora custa 2,14 euros. Uma descida mais acentuada explicada pelo facto de este produto ter, até aqui, IVA a 23%. Com esta medida, o pão passou a custar menos um cêntimo.
“O ‘IVA zero’ é uma grande treta”, reclama Manuel Peixoto, ao percorrer os corredores da loja. Contabiliza que, em “comparação com a semana passada, hoje os preços estão todos iguais”. Este consumidor nortenho, 59 anos, diz que a solução também “não passa por dar dinheiro aos portugueses”, justificando que “muita gente gasta esse dinheiro nos cafés”.
Apesar de dizer ser militante do Partido Socialista (PS), Manuel Peixoto considera que o primeiro-ministro, António Costa, “é um enganador”. Descontente com o Governo português, diz que “até tem vergonha de ser militante” do PS e que “será por pouco tempo”, até porque “não acredita naquela gente”. “Não vou compactuar com a falsidade deles”, conclui.
À saída da loja, e olhar para o talão, Carla Pereira, 43 anos, concorda que “os preços estão uma vergonha”. “Comprava o atum a 0,75 euros em promoção e, na nova referência, diz que o preço antes do ‘IVA zero’ era de 0,78 euros, o que é mentira”, garante. Apesar da indignação em relação aos preços, admite que os produtos isentos de IVA “estão bem assinalados”. No entanto, considera a medida “insuficiente” e destaca que a “melhor opção” seria isentar o IVA de todos os produtos. “O consumidor é que sabe o que quer comprar, não é o Governo”, diz Carla Pereira.
Ainda no Continente, Maria Filomena Silva esteve esta manhã a comprar, essencialmente, frutas e legumes. Considera que a medida “não é significativa” e que só fará diferença na carteira, caso sejam feitas “compras em grandes quantidades”. Por outro lado, conclui, “é melhor pouco do que nada”.
Coimbra pede fraldas
Já no Continente do Coimbra Shopping, os produtos alimentares inseridos nas 46 categorias sujeitas à isenção do IVA estão devidamente assinalados com o símbolo “IVA 0%”. Após o pagamento na caixa e um carrinho recheado de compras, Isabel Santos, de 79 anos, diz que procurou comprar produtos abrangidos pela medida. E notou “bastantes coisas mais baratas”, desde o leite e a manteiga à carne, alface ou cebola — embora os sumos “quase naturais” devessem também estar incluídos.
Esta reformada considera, no entanto, que o “IVA zero” não fará assim tanta diferença na sua carteira. Vive sozinha e sempre optou por comprar produtos nacionais e de marcas brancas. E, no caso das pessoas que têm menos poder de compra e a quem a medida podia fazer mais diferença, acha que “nem vêm às compras” — recorrem, antes, a instituições como o Banco Alimentar — e preferem enlatados, em vez de produtos frescos.
No interior do supermercado, Manuel Lobão vai olhando para a lista de compras que tem no telemóvel. Dentro do carrinho, leva vários litros de leite, massa, arroz, atum e água, mas também outros bens que não estão sujeitos ao “IVA zero”. “Tudo o que estiver na lista, se tiver ‘IVA zero’, compro. Se não tiver, para mim é exatamente igual. Por acaso venho comprar bens essenciais com ‘IVA zero’, mas é uma mera casualidade”, afirma.
Este enfermeiro, 30 anos, já nota um alívio em alguns preços. “O meu filho já está a beber leite gordo, que tem estado a encarecer cada vez mais. Sinto a diferença: estava a 1,09 euros e agora está a 98 cêntimos”, nota, assinalando que “ao final de um mês acaba por economizar um bocadinho”. Ainda assim, sugere que as fraldas e os detergentes também deviam estar incluídos na lista de bens sem imposto. “Seria uma grande ajuda”, aponta, embora ressalvando que “os bens essenciais estão todos cobertos pelo ‘IVA zero’”.
Nos próximos meses, os portugueses estarão especialmente atentos ao comportamento das cadeias de supermercados para averiguar a evolução dos preços dos alimentos e os efeitos práticos desta medida. E não são só estes estabelecimentos a aplicarem a medida. “Todos os produtos abrangidos pela isenção do IVA estarão devidamente identificados nas lojas através de uma etiqueta de preço desenvolvida para o efeito, que, além de ter em destaque o preço final isento de IVA, apresenta o cálculo feito, tornando claro o que o cliente pagará a menos em resultado desta medida”, disse ao ECO fonte oficial do Pingo Doce.
Enquanto isso, o Aldi prometeu fazer os arredondamentos por defeito. Sempre que, devido à isenção do IVA, haja lugar a arredondamento de valores, comprometemo-nos a proceder ao respetivo arredondamento para baixo, de modo a beneficiar os nossos clientes”. Uma bola rústica custava esta segunda-feira 0,18 euros; retirando o IVA, daria 0,1698 euros; mas, esta terça-feira, o preço é de 0,16 euros, ao invés de 0,17 euros, “o que representa uma poupança adicional de 5,11%”. O exemplo também ilustra bem o nível de poupança possível com esta medida, que é limitada pelo facto de, na generalidade dos produtos, a taxa em território continental ser de 6%.
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À caça do “IVA zero”, clientes desconfiam do impacto na carteira
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