“A escola pública tem que ser o ascensor social”

Falta de professores, número crescente de alunos estrangeiros sem apoio adequado e novas necessidades pós-pandemia. O ECO foi ouvir o relato "na primeira pessoa" de quem trabalha na escola pública.

“Sinto que até este momento não tive uma semana em que não estivéssemos a lidar com substituição de professores”, desabafa Hermínia Silva, diretora do Agrupamento de Escolas Rainha D. Leonor. O relato é partilhado por Dulce Chagas, diretora do Agrupamento de Escolas de Alvalade, que nota que ao longo dos últimos anos a situação tem vindo a agravar-se. Apesar de liderarem escolas públicas com realidades distintas, ambas reconhecem que este é “o maior problema” que têm de enfrentar na gestão do dia-a-dia. A que se somam “as novas necessidades”, a “influência negativa na forma de estar dos alunos” e as dificuldades nas aprendizagens provocadas pela pandemia e que obrigam a “novas abordagens”.

“Neste momento estou a braços com a dificuldade de substituir professores de primeiro ciclo”, conta a diretora, que está desde 2014 à frente do Agrupamento de Escolas Rainha D. Leonor –, que no total abrange seis escolas e mais de 2.700 alunos –, sublinhando que este é de longe “o seu maior problema”. Ainda assim, Hermínia Silva admite que “talvez não seja tão grave como noutras escolas”, pelo facto de esta ser uma “escola central”, o que lhe pode trazer “alguma vantagem”. “Este ano correu melhor”, admite, sublinhando que no anterior teve “graves problemas” em conseguir professores que dessem inglês.

Dulce Chagas, diretora do Agrupamento de Escolas de AlvaladeHugo Amaral/ECO

Na Escola Secundária Padre António Vieira, o arranque do ano letivo “nem correu mal”, dado que a 15 de setembro” tinham “todos os professores colocados”, afirma Dulce Chagas. No entanto, nesse mesmo dia “houve um professor de matemática que rescindiu contrato e a partir daí começou uma dificuldade imensa” em encontrar substituto, dado que a par de português esta é uma das disciplinas onde há maior défice de docentes.

Atualmente esta escola, que abrange cerca de 980 alunos, está a tentar encontrar um professor de substituição de português para um horário de 14 horas e um de educação visual para 18 horas. “São faltas que decorrem de doença, cansaço, pessoas que estão quase em vias de aposentação e que já não estão muito motivadas”, explica a diretora do agrupamento que reúne quatro escolas. Mas com o passar do ano letivo “vai tornar-se cada vez mais difícil”, admite.

“Dentro dos recursos que existem desdobramo-nos”

Para mitigar a falta de docentes e não prejudicar as aprendizagens dos alunos, as escolas tentam arranjar soluções. “No primeiro período tive um pedido de substituição de uma professora de matemática em outubro, mas só a consegui substituir em dezembro. Felizmente ela continuou a dar algumas das aulas, mesmo aposentada. Portanto, os alunos estiveram sem professor mas não estiveram sem aulas. Dentro dos recursos que existem desdobramo-nos“, atira a diretora do Rainha D. Leonor, que adiantando que a escola tem um “corpo docente já com muito tempo de serviço e com aposentações sistemáticas”.

Escola Secundária Rainha Dona Leonor Hugo Amaral/ECO

E a realidade destes agrupamentos não foge à regra do panorama nacional: o Governo estima que é preciso contratar mais de 30 mil professores até 2030, uma vez que as novas entradas não compensam as saídas. Por outro lado, a classe docente enfrenta também novos desafios. “A pandemia teve uma influência muito negativa na forma de estar dos alunos”, dado que o isolamento fez com que “não desenvolvessem competências sociais”, nomeadamente nas crianças mais novas, afirma Helena Pinto. E esta circunstância “tem consequências na disciplina” dos alunos: “o não saber estar, o não reconhecer a existência do outro, o não saber relacionar-se com o outro”, acrescenta a professora de físico-química na Escola Secundária Padre António Vieira, ao ECO.

A situação é semelhante na Escola Secundária Rainha D. Leonor, onde está a ser ponderado a proibição do telemóvel em contexto escolar, sob proposta da associação de pais. “É um assunto que não é unânime entre pais” e mesmo “entre professores não há um acordo geral”, dado que muitas vezes os smartphones são utilizados “como ferramenta de sala de aula, especialmente no secundário”, sublinha a diretora.

Por outro lado, os professores e diretores ouvidos pelo ECO realçam que a pandemia veio também causar “mossa” nas aprendizagens dos alunos. “Durante a pandemia, fizemos um trabalho fantástico ao meter a escola a funcionar à distância no espaço de uma semana. Mas o regresso à escola e daí para cá tem sido cada vez mais difícil”, sublinha Dulce Chagas, notando que os “alunos acumularam lacunas” e “criaram novos hábitos”. Ainda assim, a tendência já vinha de trás. “Percebemos que trabalham muito pouco em casa e muitas vezes eram muito pouco autónomos”, diz a diretora que está à frente da Escola Secundária Padre António Vieira, desde 2000.

Hermínia Silva, diretora do Agrupamento de Escolas Rainha D. Leonor (à direita) com Maria Amália Correia, professora de inglês (à esquerda)Hugo Amaral/ECO

“Em termos de desempenho, os professores de português queixam-se um pouco que houve aqui alguma diminuição, que depois se faz sentir até na matemática no que diz respeito à interpretação de problemas” corrobora Hermínia Silva, sublinhando que, ainda assim, regra geral “os alunos são empenhados” e “focados nos objetivos”, ainda que a rede de apoio familiar contribua para isso.

E qual é o papel da escola e dos professores nessa situação? “A nossa tese é a de que eles têm que meter as mãos na massa”, atira a Dulce Chagas. Por isso, a Escola Secundária Padre António Vieira, que tem entre 10% a 15% dos alunos com ação social escolar, decidiu aumentar o tempo de aula de 90 minutos para 100 minutos e há cada vez uma maior aposta para fomentar as atividades em grupo. E, tal como na Rainha D. Leonor, há também algumas tutorias e apoios. “Mas aquilo que notamos é que é muito difícil mobilizar alunos para virem fora do seu horário para a escola, mesmo aqueles que mais necessitam”. E neste aspeto o contexto familiar tem impacto. “Os pais muitas vezes não têm o impacto nas decisões dos filhos como gostaríamos”, atira a diretora com formação em matemática, de 57 anos, e que pondera antecipar o fim do mandato e sair mais cedo este ano.

Do Brasil à Índia, alunos estrangeiros “estão a chegar todos os dias”

“Um dos maiores desafios é conseguir motivar um número de alunos, que não é maioritário, mas que não tem qualquer interesse na escola e não quer estar cá”, resume a professora Helena Pinto, que tem 40 anos de ensino e que para o ano se espera reformar. Por outro lado, há também que responder às necessidades de quem chega a Portugal em busca de uma vida melhor. “Os alunos estrangeiros estão a chegar todos os dias”, adianta Dulce Chagas, notando que na Escola Secundária Padre António Vieira estudam alunos de “65 nacionalidades” (contando com as aulas à noite), sendo que a maioria é dos PALOP, mas há também “muitos provenientes do Bangladesh, Nepal, Índia que vêm de uma cultura muito diferente e têm mais dificuldade a integrar-se”.

“A nível da aprendizagem é um problema”, reconhece a diretora, elencando que a escola tenta ter “uma estrutura de apoio”, nomeadamente através de parcerias com a Fundação Cidade de Lisboa, mas que é “relativamente modesta face às necessidades”. “Continuo a achar que precisávamos quase de uma outra escola alternativa, que funcionasse temporariamente. Acho que se fosse de uma forma mais intensiva eles rapidamente ultrapassariam a barreira linguística e a partir dai seria muito mais fácil integrá-los. Mas os recursos são poucos e vamos fazendo o que é possível”, afiança.

Perante os novos desafios que o ensino público enfrenta, professores e pessoal não docente lamentam que as suas profissões não sejam mais reconhecidas, mas nem por isso se arrependem da escolha que fizeram. “A profissão tem sido desvalorizada por parte Governo e de alguns encarregados de educação”, sublinha Maria Amália Correia. No entanto, a professora de inglês que está há 40 anos a lecionar reconhece que no seu caso em particular “é uma privilegiada”, dado que “há territórios educativos que são muito complicados e aí o professor sofre um bocadinho”.

“Não há tanto respeito por nós, mas mesmo assim não nos podemos queixar muito”, diz Dulce Santos, que dá apoio no laboratório de física. E o salário? “Esse podia ser melhor“, admite. “Estou aqui há 21 anos, mas trabalho há 42 e com um ordenado mínimo. Não me arrependo, é pena é que as minhas colegas que entram agora venham ganhar o mesmo que nós”.

Anabela Correia, assistente operacional responsável pela portaria na Escola Secundária Padre António VieiraHugo Amaral/ECO

Também Anabela Correia, assistente operacional há três anos letivos na Escola Secundária Padre António Vieira, diz que está a “gostar muito do trabalho”, mas admite que as suas expectativas eram mais baixas. “Vinha de uma situação precária. Aqui ganho o ordenado mínimo, mas é tudo direitinho. Das condições de trabalho não me posso queixar”, afirma ao ECO a responsável da portaria, que anteriormente trabalhou 25 anos numa loja, mas ficou desempregada na pandemia com a falência da empresa. Como para uma escola funcionar são fundamentais todos os elos de ligação, aproveita para reforçar a importância da sua profissão: “Quando há greve dos professores a escola abre. Quando há greve de funcionários a escola não abre. Faz muito mais mossa”, atira.

Também Isabel Neto admite que “há dias melhores e dias piores”, mas que continua a gostar do seu trabalho. No entanto, já admite algum desgaste. “Já são muitos anos. Já estou cansada. Assim que fizer os 66 anos e quatro meses vou-me embora”, diz a encarregada das assistentes operacionais, de 65 anos e que trabalha na Escola Secundária Padre António Viera há 34 anos.

Escola Secundária Rainha Dona Leonor Hugo Amaral/ECO

Apesar das dificuldades, as professoras e diretoras ouvidas pelo ECO garantem que se pudessem voltar atrás voltariam a escolher trabalhar no ensino público. “Quando fiz estágio tive um convite para ir para o ensino privado. Mas achei que não me davam grande segurança. E sempre achei que fazia mais sentido estar no ensino público porque é aqui que eu faço a diferença. Os alunos do ensino privado geralmente não precisam da escola porque quando a escola falha há sempre alguém: pais ou explicadores que os apoiam. No ensino público não. Nós recebemos todos os tipos de pessoas”, afiança Helena Pinto. A professora de 65 anos relembrando ainda que “foram precisas muitas décadas para se conseguir que toda a gente viesse para o ensino mesmo sem ter dinheiro para o pagar”.

“O trabalho dos professores no público é muito mais difícil do que no particular e também tem mais autonomia. A escola tem que ser o ascensor social e não é no privado que se faz este ascensor social”, remata Hermínia Silva.

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