Qualquer peça de ouro com mais de meio grama tem de ser cunhada para chegar ao mercado. Conheça o laboratório tutelado pela Casa da Moeda, onde há métodos ancestrais e ninguém leva trabalho para casa.
O moderno edifício do parque tecnológico de Gondomar esconde uma atividade com centenas de anos. É na designada Capital da Ourivesaria que está instalado o maior espaço para cunhar metais preciosos em Portugal. O ECO esteve no laboratório da Contrastaria, visita obrigatória para que estas peças possam ser vendidas em lojas, nos mercados de rua ou na internet.
“Nem tudo o que reluz o ouro. Quem define isso é a Contrastaria“. José Fernando resume assim o papel desta instituição, enquanto conta os fios de ouro entregues por Celeste (nome fictício) na receção deste laboratório, que funciona sob a alçada da Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM).
“É um trabalho muito minucioso e de grande responsabilidade. Não trabalhamos com batatas e arroz. Trabalhamos com metais preciosos e temos que ter o maior rigor que nos é possível”, acrescenta o mesmo responsável.
A certificação é obrigatória para todas as peças de ouro com mais de meio grama ou peças de prata com mais de dois gramas. Cada peça tem de levar duas marcas: uma de contraste e outra de responsabilidade.
Apenas a Contrastaria pode cunhar a marca de contraste, que atesta o tipo de metal de que é feita a peça e o respetivo toque (mede a densidade do ouro por peça). Já a marca de responsabilidade — aposta pelo operador ou pela Contrastaria — serve para identificar o responsável pela introdução no mercado do artigo com metal precioso. É uma gravura com um desenho único e exclusivo, acompanhado de uma letra do nome ou firma do operador económico.
Tivemos de acelerar a nossa resposta junto dos operadores para corresponder às novas exigências do mercado: as joias são produzidas sobretudo para responder a encomendas e não para ficarem armazenadas. Os clientes estão ávidos por rapidez.
Passado real
A certificação das peças de metais preciosos remonta ao século XIII, quando os municípios começaram a conhecer artigos de metal e de ouro. Mas o mercado começou a exigir mais. A 3 de agosto de 1882, o Rei D. Luís assinou um decreto-real e certificou a atividade da contrastaria, que ficou centralizada na Casa da Moeda, atual INCM.
“Foram os próprios fabricantes que pediram ao Rei para introduzir a Contrastaria, pela leal concorrência“, recorda a diretora-geral da Contrastaria. Paula Pedro está neste cargo desde junho de 2020 e aproveitou o momento que se seguiu ao primeiro confinamento motivado pela pandemia de Covid-19 para mudar os processos no laboratório.
“Em plena fase pandémica aproveitámos para refletir sobre os nossos processos de trabalho. Tivemos de acelerar a nossa resposta junto dos operadores para corresponder às novas exigências do mercado: as joias são produzidas sobretudo para responder a encomendas e não para ficarem armazenadas. Os clientes estão ávidos por rapidez”, contextualiza a gestora, desde 2014 no INCM.
No interior do edifício são bem visíveis as marcas das portas retiradas, para reduzir as barreiras e acelerar os processos. “No primeiro semestre demorámos, em média, 4,9 horas a entregar os pedidos“, calcula Paula Pedro, em entrevista ao ECO. Para o futuro, a ambição passa por tratar de toda a certificação em “duas ou três horas”.
Do balcão à entrega, com pedra de toque e martelo à mistura
Além de acelerar o processo de certificação, a pandemia também transformou a relação entre a Contrastaria e os operadores de mercado. Já não é obrigatório deslocar-se a Gondomar, ao Porto ou a Lisboa, onde ficam os três laboratórios, para “marcar” as peças. Também é possível enviar os bens através de correio seguro.
Naquela manhã de julho em que Celeste entregou os fios de ouro (e outras peças), todos os bens foram pesados e foi feita uma guia de entrada, para confirmar toda a informação que constava da ficha do operador. Também há uma sala destinada às entidades que estão a desalfandegar as peças seladas.
Mal a obra entra, vai logo para o laboratório. As peças são separadas por quatro níveis de prioridade: expresso, muito urgente, urgente e normal. Com o mercado com cada vez mais veloz, o serviço expresso, para entrega em menos de seis horas, passou a ser o mais requisitado (86% dos pedidos).
Dentro do laboratório há um processo de triagem para apurar quais serão as amostras das peças que serão analisadas por raio-X. O ensaio vai confirmar a informação dada à entrada e que não é verificável a olho nu. Como a quantidade, peso e tipologia do ouro ou da prata.
Mais de 80% das peças de metal dourado que entram no laboratório são de ouro português, com 19,2 quilates e toque 800. Ou seja, 80% da liga tem mesmo ouro. “Este toque é muito utilizado por causa dos emigrantes”, justifica Paula Pedro.
A densidade do ouro é descoberta pelo método ancestral. Depois de uns riscos numa pedra de toque (lidite), é aplicado um ácido para atestar a qualidade do ouro, que resiste à corrosão. No caso da prata, depois dos riscos na pedra, há uma ponteira ao lado para comparar a densidade do metal.
Já na zona da legalização são colocadas as marcas de contraste (e de operador), se for preciso. São aplicadas punções conforme o tipo de metal e o toque. Nesta altura, por exemplo, é colocado um carneiro com 800, que representa uma liga de ouro com toque 800.
“O consumidor vê duas peças com o mesmo feitio lado a lado. Mas depois uma tem mais do dobro do ouro do que a outra. Se o consumidor não pedir para verificar qual o toque, pode estar a ser enganado“, lembra Cristina, uma das técnicas do laboratório nortenho.
Com gravações mais complicadas, o laser é a primeira escolha para fazer a cunhagem. Nas marcas mais pequenas (de 0,8 milímetros), recorre-se ao martelo, que exige uma mão muito firme, como a de um cirurgião. “É necessária muita atenção, sobretudo com peças de alta joalharia. A ideia passa por ser o menos intrusivo possível”, destaca a líder da Contrastaria.
No entanto, nos laboratórios portugueses também podem ser apostas marcas de outros países, como Espanha, Países Baixos e Itália. Tudo depositado no INCM e certificado pelo Instituto Português da Qualidade.
Quando as peças são certificadas, ficam disponíveis para entrega nos balcões à entrada ou podem ser enviadas para a morada dos operadores. O que não for entregue ou não ficar pronto no próprio dia vai diretamente para o cofre, que tem de ser aberto por duas pessoas ao mesmo tempo. “Uma coisa é certa: a pessoa não leva trabalho para casa”, graceja Paula Pedro.
Além das peças postas à venda, os laboratórios da Contrastaria também antecipam tendências e são os primeiros a conhecerem artigos exclusivos. Exemplo disso foi a cunhagem do biquíni de ouro e diamantes que Fátima Lopes desfilou na Semana da Moda de Paris no ano 2000.
Pelos especialistas também já passaram a taça da Liga dos Campeões de 2004/2005 (conquistada pelo FC Porto), sapatos e chupetas de bebé em ouro, naperons, miniaturas de Ferrari em ouro, faqueiros, girafas, rinocerontes, Taças da Liga e Taças de Portugal.
Futuro único e concentrado
Atualmente dividida em três espaços, a líder da Contrastaria admite que pode vir a unir os laboratórios do Porto e de Gondomar nos próximos anos. “É uma situação que pode fazer sentido. É uma questão de eficiência e de acompanhar as necessidades do setor”. Não estão previstas alterações na unidade de Lisboa.
Mais certa é o reforço da aposta na transição digital. “O futuro da Contrastaria passará pela aposição através de uma marca de contraste única em cada peça, não clonável. O projeto está a ser desenvolvido em parceria com investigadores da Universidade de Coimbra. Com um smartphone será possível fazer a leitura e aceder a toda a informação da peça”, antecipa Paula Pedro.
Apesar da utilização cada vez maior de ferramentas tecnológicas, a verdade é que a cunhagem de peças está para durar. E garantir que as peças de metal precioso sejam postas à venda com toda a segurança. Até ao final deste ano, esta organização espera que deem entrada quase tantas peças como em 2019. No último ano antes da pandemia foram 5,7 milhões de unidades.
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Contrastaria “marca” Gondomar porque “nem tudo o que reluz é ouro”
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