Uma primeira análise ao Programa de Estabilidade, por Joaquim Miranda Sarmento

Governo está a ir mais além na redução do défice do que o previsto no programa eleitoral do PS, isto apesar de o crescimento ser inferior ao previsto. A consolidação orçamental apresentada é cíclica.

Os países da zona euro têm de apresentar todos os anos, por via do Pacto de Estabilidade e Crescimento e do Tratado Orçamental, um Programa de Estabilidade e Crescimento (agora chamado “Programa de Estabilidade”). O Programa de Estabilidade (PE) é a base da vigilância e controlo económico e orçamental por parte das instituições europeias.

O ministro Centeno vai além do Doutor Centeno

Se olharmos para o programa económico do PS verificamos que estava previsto um crescimento económico acima do que aquele que efetivamente ocorreu em 2016 e 2017, e acima das atuais previsões para 2018 e 2019 (o que nos leva a relembrar que todos podem errar em matéria de previsões, e não apenas alguns). Mas com menos crescimento, poderia julgar-se que face ao programa do PS, o Governo teria relaxado as metas do défice. Mas sucedeu o contrário (e bem). O objetivo de um défice abaixo de 1% apenas deveria ocorrer em 2019, mas já foi atingido em 2017. Face a 2019, o Governo reduziu o défice em 0,8 p.p. do PIB (qualquer coisa como 1,6 mil milhões de euros) face ao que o programa do PS tinha apresentado. Isto com a economia a crescer menos que o inicialmente estimado. Isso foi possível porque a despesa corrente ficou em 2016-2017 abaixo do que estava planeado, a que se soma o corte de quase mil milhões de euros no investimento.

Relativamente ao défice de 2017 que ficou em 0.9%, representou face a 2016 uma redução do défice de 1,1 p.p. do PIB (tinha sido 2% em 2016, sendo que sem medidas one-off ficou em 2,4%). Contudo, o gráfico da página 15 do PE é elucidativo. O aumento da receita fiscal e contributiva e a redução da despesa com juros e com subsídios de desemprego representou 2,1 p.p. do PIB, anulando o défice de 2016. O aumento de despesa levou um défice “zero” para o valor de 0,9.

Diga-se que a redução do objetivo do défice de 2018 de 1% para 0,7% não tem nada de extraordinário. Quando o Governo apresentou o OE/2018, previa um défice de 1,4%. Com base nesse ponto de partida, o Governo previa ter um défice em 2018 de 1,1%, ou seja, uma redução de 0,3 p.p. Dado que o défice de 2017 ficou em 0,9%, há aqui um efeito de carry over de 0,5 p.p.. Este efeito explica a melhoria da previsão do défice de 1,1% para 0,7% em 2018.

Quando apresentou o OE/2016, o “Ministro Centeno”, ainda pouco habituado aquele figurino, deixou que fosse o “Doutor Centeno” a fazer a primeira versão do plano a ser apresentado em Bruxelas. Assim, optou por uma postura de grande conflitualidade com Bruxelas. Havia duas razões políticas: primeiro, agradar aos partidos da extrema-esquerda que sustentam o Governo; segundo, procurar ganhar margem orçamental, face às regras Europeias, para que a “compra” de votos de determinadas franjas do eleitorado fosse mais rápida. Para isso, havia que flexibilizar a margem orçamental. Os interesses partidários e de sobrevivência do líder e da clique que o rodeia, sempre à frente dos superiores interesses da Nação. Isso representou um custo elevado em termos de juros, dado que os spreads de Portugal passaram o ano de 2016 a subir. Somado ao adiamento dos reembolsos do FMI, isso custou mais de 400 milhões de euros/ano a Portugal.

Só que a reprimenda foi tão grande que o “Doutor Centeno” deixou o lugar e veio então o “Ministro Centeno”. Que imediatamente começou a reduzir o défice nominal, controlando a despesa corrente, via cativações, e a despesa de investimento, com um corte de quase mil milhões de euros. O “Ministro Centeno” teve uma prestação orçamental tão surpreendente que até o puseram a presidente do Eurogrupo. Para servir de exemplo. Como vêm, todos os que aqui aparecem a reivindicar (já antes o mesmo tinha ocorrido com o Tsipras), acabam “mais papistas que o Papa”.

Como “ortodoxo” das Finanças Públicas equilibradas, só posso saudar este Programa de Estabilidade. Espanta-me que aqueles que nos últimos anos tanto criticaram a “obsessão” pelo défice estejam agora tão empenhados. Mas fico naturalmente satisfeito. Sobretudo por ver o PCP e o Bloco assumirem uma postura de responsabilidade orçamental. Creio que essa é a principal lição dos últimos anos. Pode ser a geringonça no Governo. Mas esse poder implicou uma “rendição” aos princípios dos “conservadores orçamentais”. E não vale a pena falar na reposição dos rendimentos. Os cortes salariais repostos em 2016 vinham de 2010, de um Governo do PS. E a austeridade veio para ficar.

Os principais números do PE

Conforme já referi, para 2018 e 2019 o Governo prevê um crescimento de 2,3%, o que se afigura uma previsão razoável. Com um deflator em torno de 1,5%, isto representa um crescimento nominal de 4% (bem longe dos quase 6% do programa do PS). Esta previsão está em linha com o projetado pelas instituições nacionais e internacionais. Contudo, quando olhamos à composição do crescimento vemos duas coisas: primeiro, que o crescimento assentará no investimento e no comércio externo; segundo, que as previsões de crescimento do investimento são muito otimistas.

Relativamente ao défice, o PE prevê 0,7% para 2018, -0,2% em 2018, atingindo um excedente de 1,3% em 2022. Mas note-se que quando comparado com o previsto no PE apresentado em 2017, os objetivos para o défice são mais ambiciosos (sobretudo para 2020), o que decorre do tal efeito carry over atrás referido, mas também de uma maior redução da despesa corrente em % PIB.

Os números apresentados no PE 2018, em % PIB, encontram-se na tabela abaixo. Note-se que embora o PE apresente comparações 2018-2022, parece-me mais correto usar como base de partida o ano de 2017, com os valores já executados e apresentados.

Vemos que o esforço de consolidação entre 2018-2022 está todo concentrado na redução da despesa, dado que a receita total mantêm-se praticamente inalterada, em torno dos 43% PIB.

Olhando assim, parece que o Governo vai fazer um “enorme” esforço de redução da despesa pública. Afinal são menos 1 p.p. na despesa com pessoal, menos 0,7 p.p. nas prestações sociais, menos 0,4 p.p. nos consumos intermédios e menos 0,8 p.p. nos juros. Isso permite até recuperar o investimento em 0,7 p.p. (um valor próximo do cortado pelo Governo em 2016).

Contudo, vale a pena olhar para os valores projetados em milhões de euros, conforme a tabela abaixo (coisa que o PE não apresenta, mas fácil de calcular tendo os valores projetados para o PIB):

O que é que esta segunda tabela nos diz?

A grande conclusão é que a consolidação orçamental vai ser feita baseada quase exclusivamente no crescimento económico. Como a economia cresce, a receita fiscal e total vão crescer 13 mil milhões de euros e 16 mil milhões de euros respetivamente. Reduz-se o peso em % PIB, mas apenas porque crescem menos que o previsto para o PIB. Mas haverá mais 16 mil milhões de euros de receita para gastar e reduzir o défice.

Por outro lado, o crescimento do PIB dá margem do lado da despesa (mais 11 mil milhões de euros). Afinal, a redução da despesa com pessoal implica que o Governo “apenas” poderá gastar mais 2 mil milhões de euros em 2021 face ao que gastou em 2016. O mesmo com as prestações sociais. O Governo terá de manter a despesa com um aumento de “apenas” 5,5 mil milhões de euros. E nos consumos intermédios, onde o efeito inflação se faz sentir mais (compra de bens e serviços), há 1,2 mil milhões de euros de margem, mas que na realidade, são quase mil milhões de euros, dado que os pagamentos com as PPPs rodoviárias iniciaram em 2016 a sua curva descendente, e em 2022 representaram menos uns 500 milhões de euros face a 2017 (excluindo futuras decisões sobre renegociações), apesar de o PE ser omisso sobre isto.

Por ultimo, uma palavra para o défice estrutural (ou seja, o que resulta do défice nominal sem o efeito do ciclo económico e as medidas pontuais). No OE/2018 o défice estrutural apresentado pelo Governo em 2016 era de 2%. O Governo previa uma redução para um défice estrutural em 2017 de 1,8% e para 2018 de 1,1%. Contudo, na altura alertei que as medidas discricionárias apresentadas no OE/2018 não permitiriam reduzir o défice estrutural em 2017 e 2018, dado que tinham impacto praticamente nulo no saldo (isto é, entre medidas que reduziam o défice e medidas que aumentavam o défice, o saldo era praticamente nulo).

Contudo, este PE de 2018 apresenta um défice estrutural para 2018 de -0.6%. Ora isso representa, mesmo usando os números do Governo no OE/2018 uma melhoria de 1,2 p.p. do PIB face a 2017. No então, os números do PE não explicam esta melhoria. No cenário de políticas invariantes, as medidas reduzem o défice estrutural em 2018 em menos de 0,1 p.p. do PIB. Houve uma revisão do PIB potencial de tal magnitude? Aguardemos a avaliação que a Comissão Europeia irá realizar.

Mais intrigante é que o Governo prevê, no PE 2018, reduzir o défice estrutural de 0,6% em 2018 para 0,4% em 2019. Só que quando se somam as medidas de políticas invariantes com as novas medidas para 2019 o saldo é praticamente nulo. Depois, em 2020 há uma melhoria de 0,7 p.p. do PIB do saldo estrutural (passa do défice de 0.4 para um excedente estrutural de 0,3 p.p.). Mais uma vez, somando as medidas, temos um impacto inferior a 0,1 p.p.

No total, entre 2018 e 2022 o Governo prevê melhorar o saldo estrutural em 1,5 p.p. Mas se olharmos ao défice estrutural de 2% em 2016, concluímos que a melhoria é de quase 3 p.p. do PIB. Só que o total de medidas entre 2016 e 2022 tem um impacto global de reduzir o défice em 0,2 p.p. Mais uma vez, veremos que contas são apresentadas relativamente ao PIB potencial e como isso pode ter influenciado a série dos últimos anos.

Síntese

O artigo já vai muito longo (peço desculpa mas não tive tempo para o fazer mais curto). Mas podemos sintetizar as principais ideias:

  • A melhoria do défice entre 2016 e 2018 é fruto da conjuntura cíclica e de fatores pontuais como a redução da despesa com juros (bem como o aumento dos dividendos do Banco de Portugal).
  • O Governo está a ir mais além na redução do défice do que o previsto no programa eleitoral do PS, isto apesar de o crescimento ser inferior ao previsto nesse documento. Isso ocorre em grande medida porque a despesa corrente e a despesa primária estão abaixo do previsto.
  • Mesmo reduzindo a despesa em % PIB entre 2018 e 2022, o Governo tem uma margem significativa para aumentar a despesa em termos nominais (11 mil milhões de euros). Isto porque nominalmente a receita vai crescer 16 mil milhões de euros.
  • Ou seja, a consolidação orçamental apresentada neste PE é cíclica, sendo que os números apresentados para a redução do défice estrutural levantam-me dúvidas na revisão do PIB potencial. Aguardemos pela avaliação da Comissão Europeia

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