Orçamentos mudaram regras das autarquias 17 vezes desde 2001

Quando um OE muda uma regra das autarquias mexe na lei que é trave mestra das finanças locais. Ora, as câmaras ficam com mais dinheiro, ora com menos. É assim vezes demais, conta Rui Baleiras.

De que serve uma lei, se ela é alterada todos os anos por outras leis? Esta é a dúvida lançada por Rui Nuno Baleiras que, num artigo de opinião publicado a 2 de julho no jornal Público, apresenta uma contabilidade para as mudanças que a Lei das Finanças Locais (LFL) sofre praticamente todos os anos no Parlamento, quando os deputados votam o Orçamento do Estado (OE). Entre 2001 e 2018, só em 2009 não houve uma norma do OE a alterar uma regra da LFL, disse ao ECO. Em 17 anos, o OE sobrepôs-se à lei que fixa as regras financeiras das autarquias.

O economista e professor na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho explica que as regras previstas nas LFL, que está prestes a ser de novo mudada na Assembleia da República, são “criadas para dar estabilidade e previsibilidade ao enquadramento financeiro no qual as autarquias têm que tomar as suas decisões de receita e despesa“.

Mas “o problema está no facto de, em paralelo à LFL, o Parlamento aprovar quase todos os anos um largo conjunto de exceções às regras através das leis anuais do Orçamento do Estado. Desde 2001, só um ano é que esta prática não ocorreu”, como defende no artigo de opinião, onde deixa uma espécie de apelo aos deputados que querem fechar a LFL ainda este mês: “É preciso restringir a circunstâncias justificadamente excecionais a possibilidade de introdução de exceções através de leis avulsas” e a “pressa nunca foi boa conselheira“.

Que implicações têm estas decisões que são tomadas todos os anos? No artigo do Público, o ex-secretário de Estado do Desenvolvimento Regional do primeiro Governo de José Sócrates adianta que “existem na LFL regras numéricas que fixam o valor das transferências orçamentais do Estado para cada autarquia, mas quase sempre as leis do OE trocam-nas por uma decisão discricionária, que poderá dar mais ou menos dinheiro a cada uma”.

Ao ECO, concretizou mais a ideia que está a desenvolver num livro, ainda em fase de preparação, sobre os fundamentos económicos e institucionais das finanças locais, e que está a escrever juntamente com Rui Dias e Miguel Almeida, também com livros publicados na área das finanças locais e ambos com carreira técnica na gestão financeira municipal.

O quadro — que foi facultado ao ECO e que consta do projeto do livro — mostra que apenas em 2009 a lei do Orçamento do Estado não alterou normas previstas na LFL. Mas que consequências têm estas alterações em concreto? Podem ser várias: há casos em que os municípios ganham margem de endividamento e outros em que perdem.

  • Em 2018, por exemplo, o artigo 107.º da lei do OE cria uma exceção na parte da regra da dívida total que limita a capacidade de endividamento dos municípios que têm uma dívida abaixo do limiar 150%, alterando assim a alínea b) do n.º 3 do artigo 52.º da LFL. Com esta alteração os municípios ganham uma folga no cumprimento da regra do endividamento. “Em vez de só poderem aumentar a dívida total em 2018 até 20% da margem disponível, poderão com esta alteração aumentá-la até 30% no caso de a folga adicional ser preenchida exclusivamente por empréstimos para financiar operações de reabilitação urbana“, explica o também antigo primeiro vogal executivo do Conselho de Finanças Públicas.
  • Outro dos casos identificados por Baleiras aconteceu em 2005, quando é trocado o teto da dívida de médio e longo prazo fixado na LFL então em vigor por uma decisão discricionária. “O n.º 3 do artigo 24.º da LFL diz que o serviço da dívida não pode “exceder o maior dos limites do valor correspondente a três duodécimos dos Fundos Geral Municipal e de Coesão Municipal que cabe ao município ou a 20% das despesas realizadas para investimento pelo município no ano anterior”. O n.º 1 do artigo 19.º da LOE-2005 reduz para metade os dois limites numéricos acima referidos, com efeitos durante o exercício de 2005.” Ou seja, neste caso as regras da dívida para as autarquias foram apertadas com o OE.
  • No artigo que escreveu no Público, o ex-governante, que brevemente vai coordenar a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) na Assembleia da República, fala de uma alteração ao teto da dívida que tem vindo a ser engordada todos os anos. “A regra da dívida na LFL de 2013 sujeitava a globalidade dos passivos exigíveis do grupo municipal a um teto (150% da receita corrente líquida cobrada pelo município na média dos três anos anteriores); todos os anos vêm sendo acrescentados passivos que não contam para este teto (como empréstimos para financiar a contrapartida pública nacional em projetos do Portugal 2020, passivos das sociedades Polis assumidos pelos municípios, e passivos do Estado transferidos para os municípios no âmbito da descentralização de competências).” Estas alterações, apesar de não mexerem no teto da dívida, acabam por se traduzir num alargamento desse limite, já que admitem cada vez mais exceções.

A LFL é uma das propostas que está no Parlamento a ser discutida e que o Governo e o PSD se comprometeram a fechar ainda nesta sessão legislativa. No entanto, a proposta ainda só passou pelo debate na generalidade sem votação. Quinta-feira passada, a comissão parlamentar que trata os assuntos do poder local reuniu-se para definir o calendário de trabalhos até ao final de julho.

Na semana passada, o presidente da comissão, o bloquista Pedro Soares, disse ao ECO achar “impossível” fechar o pacote da descentralização – que inclui outros diplomas – nesta sessão legislativa. Mas o Governo tem dado sinais de querer acelerar o processo agora na reta final. Esta terça-feira fechou o acordo sobre a descentralização com a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), depois de garantir um aumento de receitas de IVA dos 48 milhões de euros inicialmente previstos para 72 milhões. Resta saber se, na Assembleia, Governo, PS e PSD ainda vão a tempo de fechar todo o pacote da descentralização.

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