“Por amor à moda”. Leia a carta de José Neves aos investidores de Wall Street
Fundou a Farfetch em 2008, "por paixão", em Londres. Dez anos mais tarde, a empresa, fundada pelo português José Neves, prepara a entrada em bolsa. E José Neves explica porquê.
Começou a programar aos oito anos, quando lhe foi oferecido o primeiro computador. Daí à Farfetch, passaram décadas. Há dez anos, o português José Neves decidiu, a partir de Londres, criar um mercado de moda de luxo em que todos os apaixonados pudessem comprar produtos.
“Construir uma plataforma é difícil. Construir uma plataforma para a indústria de moda de luxo é uma tarefa quase impossível. Mas eu sabia perfeitamente que o caminho mais longo seria o mais certo, e o único que me levaria a alcançar mais oportunidades e muito mais anos de crescimento contínuo e constante inovação”, explica o CEO e fundador da empresa.
“Por amor à moda, comecei a construir um sonho: a Farfetch”, explica, na história que conta, em carta, e que consta dos documentos que a empresa apresentou esta segunda-feira ao New York Stock Exchange para oficializar o IPO do unicórnio, que deverá acontecer ainda este ano. Recuperando as primeiras reuniões com fundadores e herdeiros de algumas das grandes marcas de luxo do mundo, quando a Farfetch dava os primeiros passos, em 2008, José Neves não para de contar a história e termina com uma visão de futuro.
“Apesar de todo este caminho percorrido, a indústria ainda está na sua fase de crescimento inicial. Apenas 9% das vendas do mercado de itens de luxo são feitas online, enquanto que 91% são feitas offline como se ainda vivêssemos nos anos 90. O retalho tradicional terá de se reinventar e readaptar às novas exigências do mercado, e nós queremos liderar essa revolução”, sublinha.
Leia a carta na íntegra:
“Por amor à moda, comecei a construir um sonho: a Farfetch.
Aos oito anos, ofereceram-me um computador no Natal. Não tinha jogos de computador, só um programador manual. Comecei a programar nessa mesma altura, e aí dei os primeiros passos naquela que se tornou na minha primeira paixão: criar software.
Aos 19 anos, em 1993, comecei a minha primeira empresa. Era uma “loja de software”, onde criava software para empresas e, sendo do norte de Portugal e com um historial de família ligado ao calçado, as empresas de moda dessa área bastante cedo se tornaram nas minhas principais clientes.
Vários projetos se seguiram, tendo sido designer de sapatos, dono de uma boutique, organizador de feiras, um verdadeiro faz-tudo no mundo da moda. E apaixonei-me por este mundo, fiquei fascinado pelas pessoas, pelos sítios, pelo caos criativo que transpiravam. A moda junta artesanato, criatividade e design de topo. Celebra a beleza de toda e qualquer forma. Mas não é arte, no sentido em que a moda é para ser utilizada e que, à medida que é usada, muda a forma como nos sentimos e como nos projetamos, ajudando-nos a obter a imagem que queremos passar, de nós para o mundo.
"Vários projetos se seguiram, tendo sido designer de sapatos, dono de uma boutique, organizador de feiras, um verdadeiro faz-tudo no mundo da moda.”
A moda — especialmente para os millennials — tem a particularidade de empoderar as pessoas que a utilizam e é um dos veículos mais importantes para manifestar a individualidade e identidade de cada um. As pessoas querem sentir-se únicas, e isso significa encontrar um produto que talvez exista única e exclusivamente em limitadas quantidades, noutro canto do mundo. É por esta razão que acredito que a Farfetch participa no empoderamento individual.
Uma viagem de 10 anos para criar uma plataforma moda de luxo
Em 2007, o boom da internet ganhou terreno progressivamente, entrando nas nossas casas, participando na parte cultural, criativa e comercial das nossas vidas. O “clash” entre a indústria da moda, que se guia pela criatividade e pela emoção, e esse boom, conduzido pela velocidade dos dados da própria internet, transformou completamente a indústria e abriram as portas para a revolução a que temos assistido.
Como designer e tecnólogo em 2007, três coisas foram bastante claras para mim:
Primeiro, a internet ia dominar claramente a indústria da moda. Tal era absolutamente inevitável.
Em segundo lugar, tornava-se evidente que a indústria de moda iria precisar de uma plataforma. Esta é a chave de tudo o que acontece na internet. As pessoas da indústria de moda precisariam de um “destino” nesse novo universo, um serviço que agregasse e oferecesse um serviço infalível, que os ligasse entre milhares de criadores independentes e curadores de moda por todos os cantos do mundo.
Em terceiro lugar, o mercado de e-commerce e as plataformas centradas no interesse do consumidor estavam a tornar-se cada vez mais sedimentadas – guiando-se bastante pelo preço e conveniência e não pela qualidade. Isto era, no entanto, a antítese do segmento de moda de luxo, que se guia pela emoção, individualidade, singularidade, originalidade, personalidade, e não pela conveniência do produto. Então pensei nos curadores, em criatividade, e não em preços. Foi a minha parte racional mas também meu coração a falar. A minha paixão pelos designers que conhecia, pelas boutiques, pelas pessoas apaixonadas pela moda espalhadas pelo mundo todo, inspiraram-me a criar um sítio único, uma plataforma, onde todos poderiam cruzar-se e encontrar-se. Consumidores, criadores, curadores, todos unidos por amor à moda: foi esta a visão que esteve na génese daquilo que é hoje a Farfetch.
Consumidores, criadores, curadores, todos unidos por amor à moda: foi esta a visão que esteve na génese daquilo que é hoje a Farfetch.
Esta viagem de 10 anos, no entanto, começou no meio de uma crise financeira mundial, o que não foi um desafio simples, de todo!
A indústria de luxo tem bastantes particularidades. Para começar, trata-se tradicionalmente de negócios de família, mesmo os maiores conglomerados. Salvo raras exceções, nesta indústria esses grandes negócios são controlados por famílias, e até a maioria das grandes marcas e retalhistas são-no também. As relações que se estabelecem neste tipo de negócio são o aspeto mais fundamental para a sua sobrevivência, e esse tipo de relações de confiança demora muito tempo ser construída.
A maior parte das decisões que determinam o que irá acontecer no mercado da moda são tomadas na Europa, onde a maior parte das marcas de luso se encontram. Isto significava que a maior parte dos meus contactos iniciais foram efetuados em francês e italiano. Tive frequentemente conversas com patriarcas da família, como avós e pais, filhos e filhas, ao mesmo tempo, muitas vezes assistindo a verdadeiras disputas familiares no decorrer destes contactos. As decisões que tomamos não são apenas empresariais, também são pessoais, e nunca devem ser pensadas a curto-prazo. A reputação de uma marca, de um retailer, de um negócio de família, poderiam ser postas em causa. É indescritivelmente importante criar laços de confiança com estas famílias e com todos os seus membros.
Lembro-me vividamente destas primeiras reuniões com retailers e marcas de luxo, as primeiras das quais decorreram em 2008, o ano em que a Farfetch foi disponibilizada aos consumidores. A ideia de construir uma plataforma que aglutinasse todas estas marcas de luxo num só local e em tempo real foi alucinante para muitos, e bastante irreverente no contexto de uma indústria que olhava para a internet como um género de heresia ou ameaça.
"A ideia de construir uma plataforma que aglutinasse todas estas marcas de luxo num só local e em tempo real foi alucinante para muitos, e bastante irreverente no contexto de uma indústria que olhava para a internet como um género de heresia ou ameaça.”
Lentamente, no decorrer desta década, conseguimos construir estas relações de confiança, provando que a Farfetch não chegava ao mercado para destruir a herança do luxo mas sim para os proteger, e criar uma forma deste segmento sobreviver. Éramos fashion insiders. Mas, ao mesmo tempo, éramos também programadores e informáticos. Para nós, toda a gente lucra com esta plataforma, pois nós protegemos o património “sacrossanto” da indústria de moda de luxo usando exatamente a tecnologia para melhorar toda a experiência.
A Farfetch não poderia ter sido construída de outra forma. Uma plataforma, curadora das marcas de luxo e que controla cada passo entre o vendedor e o consumidor para garantir uma experiência que siga o padrão de paixão pela moda. Cada detalhe da nossa plataforma foi desenhado desde o início com um rigor e baseado no nosso conhecimento aprofundado na área da moda e da tecnologia. É esse o nosso segredo.
Hoje, a Farfetch é a única plataforma tecnológica global escalável na área da indústria de luxo.
Para as marcas e as boutiques, somos um parceiro inovador, e também um parceiro “plug-and-play” e amplificador, ao conseguirmos alcançar mais de dois milhões de consumidores a nível mundial, num modelo de negócio ligado diretamente ao consumidor. Os nossos consumidores conseguem encontrar e comprar qualquer item de que gostem proveniente de qualquer parte do mundo, principalmente coisas que não encontrariam no seu local de residência ou noutras plataformas online.
Apenas 9% das vendas do mercado de itens de luxo são feitas online, enquanto que 91% são feitas offline como se ainda vivêssemos nos anos 90. O retalho tradicional terá de se reinventar e readaptar às novas exigências do mercado, e nós queremos liderar essa revolução.
Construir uma plataforma é difícil. Construir uma plataforma para a indústria de moda de luxo é uma tarefa quase impossível. Mas eu sabia perfeitamente que o caminho mais longo seria o mais certo, e o único que me levaria a alcançar mais oportunidades e muito mais anos de crescimento contínuo e constante inovação.
Apesar de todo este caminho percorrido, a indústria ainda está na sua fase de crescimento inicial. Apenas 9% das vendas do mercado de itens de luxo são feitas online, enquanto que 91% são feitas offline como se ainda vivêssemos nos anos 90. O retalho tradicional terá de se reinventar e readaptar às novas exigências do mercado, e nós queremos liderar essa revolução.
O futuro
Internet of Things, dispositivos comandados pela voz, AR/VR… Qualquer que seja o novo veículo que os consumidores escolham, o nosso sistema API será facilmente incorporado em cada uma dessas vias, da mesma forma que nos adaptámos ao WeChat na China, e integrando uma plataforma de e-commerce conversacional na nossa empresa. Acreditamos que as plataformas API transformam o mercado e o comércio para sempre. E fazemos esta pergunta a nós próprios: “Como é que o mundo irá fazer compras de moda, daqui a 5, 10, 20 anos?”
Acreditamos que se continuarão a utilizar lojas físicas. A moda não poderá ser completamente digitalizada como a música e o vídeo. Há algo mágico sobre a experiência de ir mesmo a uma loja comprar roupa, e de poder tocar no tecido.
Hoje em dia, os consumidores digitais estão expostos a experiências ultra personalizadas, na medida em que as apps e as empresas online nos conhecem e às nossas preferências, profundamente, dando-nos uma experiência verdadeiramente exclusiva. E é isso que, neste momento, os consumidores exigem ao mercado. Os lojistas “offline” não nos conhecem, não sabem nada sobre nós assim que saímos da loja, ou assim que entramos, e isso terá de mudar.
Na nossa “Loja do Futuro” haverá uma convergência, mono-brand e multi-brand, online e offline, e verdadeiras experiências únicas serão oferecidas aos clientes.
Planeamos para os próximos anos um investimento intensivo em R&D. Isso, e o crescimento transversal da nossa marca em vários pontos de interesse a nível mundial e em várias categorias, serão alguns dos focos nos anos que se avizinham.
Uma oportunidade e uma promessa
E nós estamos só a começar.
Quando olhamos para trás vemos a quantidade de conquistas que estes 10 anos representaram para nós, e sabemos que isto se trata apenas do início da nossa viagem.
A oportunidade que vemos no horizonte é muito maior do que aquilo que a Farfetch representa agora. A indústria de luxo tem crescido durante os últimos vinte anos a um ritmo constante de 6%, e assumindo o mesmo ritmo de crescimento nos próximos dez, tornar-se-á numa indústria que vale mais de 450 mil milhões de dólares. E por aí, esperamos que 25% das vendas sejam concretizadas através de plataformas online. Acreditamos que 75% das vendas serão feitas em espaços físicos e lojas de retalho, mas que estas serão revolucionadas pela tecnologia e pelo seu crescimento acelerado. De facto, a distinção entre offline e online irá dissipar-se até desaparecer por completo seguindo a nossa visão de “Augmented Retail”.
Acreditando no padrão de disrupção da música, do setor de turismo, transporte e outros, em que os líderes se têm tornado cada vez mais nas plataformas que os guiam, é natural imaginar que esta indústria seguirá esse mesmo raciocínio. E este player terá uma parte bastante significativa dos lucros que serão gerados pela transformação que, acreditamos, irá acontecer no retalho, em que 60% do setor passará para o digital.
Orquestrar uma conversão entre o offline e o online na indústria de luxo é passível de ser feito por uma única empresa, de certeza. Porque mesmo que vários novos retailers online surjam, essa tecnologia terá de ser adotada igualmente pelos retalhistas e pelos consumidores, o que forçará os vendedores a querer gravitar numa só plataforma.
E tudo isto traduz-se num potencial de mercado para a Farfetch de 450 mil milhões de dólares, que queremos operacionalizar através da nossa empresa, empoderando cada um dos intervenientes de igual forma e transformando a indústria de moda de luxo.
A nossa promessa para com os nossos investidores é de uma dedicação, um laço inquebrável, que criamos com os nossos consumidores, baseando-nos na inovação e foco num crescimento sustentável e contínuo.
Prometemos aos nossos Farfetchers que esta empresa continuará a sua missão – guiando-se o nosso negócio por valores que criam felicidade no trabalho.
Aos consumidores, prometemos marcas e lojas que continuarão a fasciná-los, todos os dias, naquilo que nos for humanamente possível.
Por amor à moda,
José Neves,
CEO e Fundador”
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