Inflação faz soar alarmes. Mas há razão para preocupação?
Não se fala de outra coisa: a subida da inflação virá no pós-Covid e essa expectativa já é visível nos juros de longo prazo. Mas vai concretizar-se? A incerteza não permite dar uma resposta clara.
Não é claro qual foi o catalisador, mas a preocupação à volta da subida da inflação regressou às discussões económicas no arranque de 2021. Nos EUA, esse regresso pode ser atribuído ao novo pacote de estímulos de 1,9 biliões de dólares do novo presidente Joe Biden enquanto na Europa foi o líder do Bundesbank (banco central alemão), Jens Weidmann, a tocar no assunto para defender uma eventual subida dos juros. As expectativas sobre a “reflação” já tiveram impacto em algumas partes dos mercados financeiros, mas virá mesmo aí ou é só conversa? Os economistas ouvidos pelo ECO admitem que, na verdade, ninguém sabe.
É o tema da “moda” que tem dominado vários researchs do mundo financeiro e até obrigou o presidente da Reserva Federal e a presidente do Banco Central Europeu a falar do assunto para “acalmar” os mercados. Powell disse que não é uma “ameaça” e Lagarde, mais preocupada com os juros da dívida dos países da Zona Euro, disse que estava a “monitorizar de perto” a situação. O otimismo de alguns investidores com o processo de vacinação leva-os a apostar numa subida generalizada dos preços. Porquê? A aposta é que a reabertura das economias provoque uma explosão de consumo, alimentada pela liquidez dos bancos centrais e os apoios orçamentais dos Estados, desequilibrando a relação entre a procura e a oferta.
Na década passada, nas economias avançadas, a procura ficou aquém da oferta, mantendo a inflação em níveis historicamente baixos e obrigando a política monetária a manter-se expansionista desde a crise financeira. Esta crise pandémica está a ser, até ao momento, mais uma crise da procura, por causa do confinamento (menos consumo), do que de oferta (à exceção de alguns casos particulares como bens médicos). Contudo, o receio é que a situação mude rapidamente para um estado de inflação alta e essa expectativa já se começa a refletir no mercado da dívida com os juros a subir nas maturidades mais longas.
O que virá aí? Ao ECO, Ricardo Reis, professor da London School of Economics e economista especializado em política monetária (já foi convidado pelo BCE para falar no Fórum de Sintra), assume que “neste momento há bastante incerteza acerca do que vai acontecer à inflação, o que quer dizer que tanto podemos ter uma inflação a subir como podemos ter uma inflação que desce muito, ou seja, deflação”. Desafiado a dizer qual o cenário mais provável, Ricardo Reis considera que os dois cenários têm uma probabilidade semelhante, acrescentando que esta divisão de opiniões sobre o futuro da inflação também é visível nas áreas dos mercados financeiros em que se faz apostas sobre a evolução dos preços (com derivados ou seguros).
Filipe Garcia, economista da IMF, também se encontra na posição intermédia, admitindo que possa haver “indícios” mas que é “demasiado cedo” para se saber. “Já vi este filme muitas vezes desde 2008“, economista da IMF, ao ECO, referindo-se a períodos na última década em que nos mercados financeiros se falava da subida da inflação na Europa por causa da ação do BCE, o que não se veio a concretizar. Filipe Garcia não tem dúvidas de que “um dia a inflação virá”, mas “é difícil de argumentar que há um défice de oferta” neste momento.
O economista antevê que, “se tudo correr bem” com a pandemia, a pressão a curto prazo será “mais inflacionista do que deflacionista”. Porém, esta será “temporária e não estrutural” porque “com alguma facilidade voltaremos do excesso da oferta”. Na Alemanha, por exemplo, o aumento da inflação este ano deverá estar ligado à subida do IVA, um imposto que tinha descido em 2020 para ajudar a economia, e, de forma mais geral na Zona Euro, à recuperação do preço do petróleo que compara com os meses em que colapsou no ano passado. No entanto, não se pode excluir que se transforme em estrutural por causa do “impacto de toda a liquidez que chegou aos mercados”, a qual pode ir “parar à economia se as pessoas gastarem e as empresas e o Estado investirem” muito mais do que nos últimos anos, alerta Filipe Garcia.
A dúvida poderá estar na perceção e confiança dos agentes económicos, o que tem consequência nas suas ações. “Um dos principais fatores que tem mantido a inflação tão estável nos últimos anos tem a ver com o enorme sucesso dos bancos centrais, ganho com lágrimas e suor durante os anos 80/90, que foi estabilizar a inflação nos 2%, de tal forma que a maior parte das pessoas atualmente não presta atenção à inflação”, explica Ricardo Reis. No pós-pandemia, isso poderá mudar: o economista admite que “nos próximos 12 meses, com a reabertura da pandemia, vai haver muita volatilidade nos preços relativos”, com setores onde os preços “vão subir 10%” e outros em que “vão descer 10% ou 20%”.
Perante isto, Reis considera que é “perfeitamente plausível que as pessoas, confundidas com estas variações de preços, comecem a reavaliar para onde é que vai a inflação”, o que poderá afetar “as expectativas de inflação” da população face às do banco central. Isto é, os agentes económicos podem passar a dar atenção à evolução dos preços e achar que vão começar a subir mais do que os 1% ou 2% (objetivo do banco central) que são “normais” atualmente. Acresce o receio com problemas orçamentais e o “papão da inflação”, o que não é “implausível” dado o nível de dívida pública. Dito isto, “há razões para preocupações”, reconhece.
Juros dificilmente subirão para conter inflação
Se não há consenso sobre o que acontecerá à inflação nos próximos tempos, há mais certezas sobre o que farão os bancos centrais: (quase) nada. Ricardo Reis considera que a política monetária está de mãos atadas na Europa: “O Banco Central Europeu terá dificuldade em fazer seja o que for“, diz, ressalvando que “nenhum banco central admitirá que não tem instrumentos”. A expectativa do economista é que os juros diretores fiquem inalterados durante pelo menos mais “um ou dois anos”.
Por um lado, aumentar as taxas de juro para combater a inflação mais elevada — “se tivesse ferramentas era o que o BCE faria” — podia criar um problema na gestão da dívida pública de alguns países europeus. O impacto em países como Portugal e Itália “era assustador”, classifica, destacando o “efeito assimétrico” na Zona Euro que não se verificaria nos EUA. Por outro lado, os juros já estão tão baixos e aproxima-se o limite da aquisição de dívida pública pelo que há pouca margem para dar mais estímulos monetários à economia na eventualidade de deflação.
Ricardo Reis recorda ainda que o objetivo do BCE é de médio prazo, o que significa que uma inflação “um pouco acima” do objetivo de “perto mas abaixo de 2%” não faria “mal nenhum” uma vez que serviria de “compensação” pela baixa inflação da última década. Recentemente, a Reserva Federal norte-americana tornou claro que esta seria também a sua visão. “O papão é se a inflação subir para 8% ou mais… Mas estamos longe disso, se chegássemos aos 3% ou 4% já não era mau”, assinala Reis.
Mesmo que não haja mudanças na política monetária no curto prazo, Filipe Garcia — que também não vê o BCE a subir taxas num “horizonte previsível” — antevê alguns problemas, desde logo porque essa estratégia “tem um prazo de validade que não é eterno”. Em concreto, a questão passará pelas taxas de juro de médio e longo prazo (a partir dos cinco anos) onde uma “subida de um ou dois pontos percentuais terá um impacto forte no serviço da dívida de países e empresas”.
Os juros nesses prazos já subiram no mercado secundário por causa da discussão sobre maior inflação no futuro, mas ainda de forma ténue e os valores continuam a ser historicamente baixos. “Para já, a subida é limitada, mas pode ter impacto” no futuro por causa da curva de rendimentos da dívida pública de certos países mais endividados que, até ao momento, têm beneficiado da política monetária acomodatícia do BCE. Num cenário mais pessimista, “a prazo pode haver uma nova crise de dívida se as taxas de juro subirem muito”, alerta o economista.
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