Fábricas cortam intermediários para chegar ao consumidor
A tendência do Direct To Consumer (D2C) começa a alastrar sobretudo no ramo alimentar, das conservas à padaria e pastelaria, embora ainda sejam poucas as indústrias a desenvolver conceitos de retalho.
Quando em 2015 o grupo O Valor do Tempo comprou a histórica fábrica da Comur uma das primeiras decisões foi mandar retirar as conservas das prateleiras dos supermercados, onde o produto (des)valorizava a 70 ou 80 cêntimos por lata. “A solução para resolver esse problema e dar valor às conservas portuguesas foi criar as nossas próprias lojas e dar-lhes um ambiente e criar uma experiência para o consumidor, funcionando como um palco onde podemos contar a história das conservas portuguesas, valorizar o trabalho dos pescadores e das mulheres da Murtosa”, relata Sónia Felgueiras.
Quase sete anos depois da aquisição, a histórica empresa fundada em 1942 conta com cerca de duas dezenas de lojas espalhadas pelo país, que absorvem a totalidade da produção anual de 2,5 milhões de latas de conservas – e estão divididas em dois conceitos: com a marca Comur e O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa. A diretora de marketing fala em “resultados extraordinários” no contacto direto com os cerca de um milhão de visitantes por ano. “Não estamos a vender produto, mas a oferecer uma experiência ao consumidor”, insiste a gestora.
Brasil, China, Holanda, Alemanha, Portugal. O grupo Bittencourt já encontrou casos de estudos suficientes para atestar que o chamado Direct To Consumer (D2C) já é mais do que uma tendência, mas uma realidade um pouco por todo o mundo desenvolvido. No Brasil, de onde é originária a consultora que entrou na Europa numa joint venture com o grupo Your, é “cada vez mais fácil reconhecer indústrias que tomaram o seu espaço no coração do consumidor”. Antes de mais, esta transformação é “uma mudança de comportamento do consumidor, que pede cada vez mais relacionamento e transparência”.
“O consumidor está a dizer: ‘indústrias, conversem comigo. Estejam presentes. Não basta apenas estar na prateleira do supermercado. Talvez eu esteja a ser encantado por empresas nativas digitais, que aparecem todos os dias no meu telemóvel. Posso nunca mais me lembrar de você. Relacione-se comigo’. Está a pedir mais conveniência, sobretudo depois da pandemia. Está a pedir experiência de marca, atendimento customizado para que o relacionamento seja mais transparente, que lhe indiquem se está ou não a poluir o ambiente na sua cadeia produtiva”, resume Lyana Bittencourt.
O consumidor está a pedir mais conveniência, experiência de marca e um atendimento customizado para que o relacionamento seja mais transparente.
Na maior parte das vezes, esse movimento D2C exige uma “mudança estrutural” nas indústrias que sempre venderam por grosso e passam a ter uma abordagem direta e bidirecional ao consumidor final. Obriga-as a pensarem em novos canais, conceitos, experiências, e formas de entregar conveniência. A analisar os dados para aplicar alguma transformação nos negócios e a “entregar de maneira diferente aquela promessa de marca”.
“Essa transformação é um grande desafio para as empresas. Porque muda a forma como conta o storytelling, muda o atendimento, muda os canais, muda a forma de pensar nos parceiros estratégicos e os negócios. E essas novas abordagens reinventam, inovam e renovam as empresas e fazem com que elas se possam perenizar ao longo do tempo. Esse é o grande ganho que as indústrias têm nesse contacto direto com o consumidor”, destaca a CEO do grupo Bittencourt, que organizou uma conferência sobre este tema em Vila Nova de Gaia.
E que o diga a Panidor. Após 26 anos a comercializar produtos a empresas da grande distribuição, supermercados, restaurantes, cafés, hotéis, e companhias aéreas, a líder nacional da panificação e pastelaria viu surgir com a pandemia a hipótese de disponibilizar os artigos diretamente aos particulares, criando novos canais para chegar à mesa dos portugueses. Desde logo uma loja online para produtos congelados acondicionados em embalagens adaptadas ao consumo de uma família, com uma percentagem das receitas do e-commerce a reverter para os clientes B2B, que se tornaram ponto de recolha, para minimizar as perdas na faturação.
A marca Panidor, que “só era conhecida por se verem os camiões a passar nas autoestradas”, passou a ter maior presença junto do consumidor final, marcando território em eventos como a Web Summit ou a Expo 2020 no Dubai, por decisão da administração da Panicongelados, empresa familiar constituída em 1994. Catarina Castro, diretora de marketing e comunicação, indica que “o D2C foi incluído na estratégia há um ano” e a empresa de Leiria está agora dividida em “duas frentes”: numa delas trabalha a logística e a organização; na outra há “uma parte emocional”.
Em termos comparativos, é nos 25 mercados externos em que está presente – tem inclusive uma fábrica no Brasil – que essa “pegada” do D2C está cada vez mais marcada, sobretudo através das operações de street food, com bicicletas e motas com atrelados que andam pelas ruas a vender bolas de Berlim e pastéis de nata. Algo que até começou no ramo hoteleiro em Portugal e que acabou por “apaixonar os turistas, que quiseram levar [esse negócio] para o seu país”. E como fica a relação B2B? “Essa é a dor. Temos de ter muito cuidado”, responde Catarina Castro, lembrando que a Panidor dá “um grande contributo à grande distribuição, sobretudo nos pontos quentes” dos supermercados.
Como fica a relação B2B? Essa é a dor. Temos de ter muito cuidado. Damos um grande contributo à grande distribuição, sobretudo nos pontos quentes.
No caso da Cork Supply, que é o segundo maior grupo corticeiro português e terceiro a nível mundial, o caminho foi precisamente o inverso. “No início, nos anos 1980, não tínhamos a parte de produção, estávamos na distribuição, muito perto do consumidor. Primeiro conhecemos o mercado, os clientes e sentimos necessidade de fazer o caminho inverso porque não havia o produto certo e a qualidade suficiente nos produtos. Por isso, começámos a investir na parte do controlo de qualidade e depois na produção. Voltar atrás com a informação do que os mercados querem, ajudou-nos a focar a estratégia”, relata Monika Michalski, gestora global de marca.
Inovar, experimentar e… separar
Tiago Quaresma, administrador do grupo O Valor do Tempo, lamenta andar pelas ruas e entrar nos centros comerciais e ainda quase não encontrar as indústrias portuguesas, falando na “dificuldade em chegar ao consumidor final com valor acrescentado”, o que diz ser “um grande gap por preencher” no país. “Como conseguimos mais do que vender produtos, vender conceitos, estatuto. Qualquer coisa mais que nos preencha, além do produto. E não tenhamos medo de falar do preço. Em Portugal há sempre um bicho papão quando chegamos a esse momento. Se andamos com esta obsessão dos cêntimos, não vamos sair do mesmo lugar. Portugal vive aprisionado no preço”, desabafa.
Um dos projetos do grupo, que tem um total de 38 espaços comerciais em 13 centros históricos, é a Casa Portuguesa do Pastel do Bacalhau. Surgiu em 2015 em Lisboa e em 2019 abriu também junto ao cais de Gaia uma loja em que se destaca um órgão de tubos de 1963, que estava quase destruído numa capela e que demorou seis meses a recuperar. Toca todos os dias de meia em meia hora, o espetáculo é gratuito, mas o administrador contabiliza que 90% das pessoas que entram na loja “acabam por consumir porque se sentem em dívida”.
“Há muita inovação além da tecnológica. E um órgão de tubos de 1963 é uma forma de inovar. Criámos um palco privilegiado para contar uma história e para conseguir aumentar o valor percecionado. O bolinho de bacalhau com vinho do Porto custa 15 euros. Ou é o bolinho de bacalhau com vinho do Porto mais caro ou é o momento cultural mais barato do país”, contrapõe Tiago Quaresma.
Miguel Pina Martins, presidente da Associação de Marcas de Retalho e Restauração (AMRR), dramatiza esse “foco na experiência e na experimentação”, lembrando que o tempo médio de permanência das pessoas nos centros comerciais “diminuiu drasticamente” com a pandemia e que nessas catedrais do consumo em Portugal ainda são poucas as indústrias que aproveitam para se ligar diretamente aos clientes finais.
“O mundo está cada vez mais pequeno. Encurtou e, à medida que vai encurtando, os intermediários vão acabando por perder sentido. É muito mais fácil chegar ao consumidor final, seja online ou através de lojas. O nível de intermediários já desceu e vai continuar a descer de forma significativa, à medida que se vai encurtando também o tempo da informação e dos sistemas”, contextualiza Miguel Pina Martins, que é também fundador e CEO da Science4you.
À medida que o mundo vai encurtando, os intermediários vão acabando por perder sentido. É muito mais fácil chegar ao consumidor final, seja online ou através de lojas.
A Turma da Mónica, criada pelo cartoonista Maurício de Sousa, é um dos exemplos de um negócio que trabalhava sobretudo com base no licenciamento da marca e que tem criado conteúdos orientados para o retalho. Desenvolveu um parque de entretenimento para centros comerciais no Brasil e está agora a criar restaurantes temáticos para “aproximar-se da nova juventude, que ainda precisa de respirar e de viver a experiência e a quem não basta saber que a marca está lá na maçã [Apple]”, conta a CEO da Bittencourt.
Lyana Bittencourt, que em 2021 acompanhou quase duas dezenas de projetos de D2C, de indústrias provenientes de vários setores que estão a desenvolver conceitos de retalho, descreve “um caminho de mudança”. E avisa que “em alguns momentos desse processo é até preciso que a equipa do retalho mude de lugar e vá para outro escritório porque o mindset, o planeamento e o tempo de reação são diferentes”. Por exemplo, “se o consumidor reclamou, tem de agir no minuto seguinte”.
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