Comida, clima, dinheiro. Qual o “peso” de 8.000 milhões de pessoas no mundo?

  • Joana Abrantes Gomes
  • 12 Novembro 2022

Com o crescimento populacional a desafiar o uso de recursos, demógrafos e economistas aconselham os países ricos a adaptar-se ao envelhecimento e a apostar no progresso social dos menos desenvolvidos.

A população mundial deverá atingir o marco dos oito mil milhões na próxima terça-feira, dia 15 de novembro, segundo a estimativa do Departamento de Assuntos Económicos e Sociais das Nações Unidas. Este número — que nunca foi tão elevado, mas que também está a desacelerar — esconde diferentes diagnósticos, se o planeta for dividido em regiões mais e menos desenvolvidas, mas levanta grandes alertas: ao nível da produção alimentar, das alterações climáticas e da distribuição de recursos. O que podem as economias fazer para se adaptarem ao crescimento demográfico e aproveitarem o aumento da esperança de vida?

Antes de responder à pergunta, importa perceber como é que o mundo chegou aqui. A explicação mais simples para o aumento da população mundial é que resulta de um saldo natural “muito positivo”, ou seja, o número de nascimentos supera bastante o número de óbitos, resume ao ECO a demógrafa e professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), Maria João Valente Rosa. No fundo, trata-se de um fenómeno denominado transição demográfica, que consiste na alteração da relação entre nascimentos e óbitos.

O presidente da Associação Portuguesa de Demografia (APD), Paulo Machado, explica que, no passado, essa relação fazia com que o crescimento da população tivesse “uma variação baixa”. Com a transição demográfica, observou-se uma redução muito relevante dos óbitos. Só que, numa parte do mundo — designadamente nos países da África subsariana, em parte da Ásia e, mais moderadamente, na América Latina –, “essa redução dos óbitos não foi acompanhada por uma redução dos nascimentos”, o que resultou na quadruplicação da população mundial em pouco mais de 80 anos, assinala o demógrafo.

Com a mortalidade a baixar muito e a natalidade a não baixar da mesma maneira, houve um aumento muito significativo da esperança média de vida à escala mundial. Em 1800, a esperança de vida à nascença era de 30 anos, sendo que nenhum país tinha uma esperança de vida acima dos 40 anos, de acordo com estimativas da época. Em 1950, a esperança média de vida à nascença era de 46,5 anos, enquanto em 2021 se fixou nos 71 anos.

Maria João Valente Rosa sublinha que esta evolução advém de progressos sociais importantes em áreas como saúde pública, nutrição, higiene das pessoas e medicina. No entanto, é algo “paradoxal”, ressalva. “O aumento da população mundial é um indicador de sucesso social, porque tem que ver com a diminuição da mortalidade. Mas representa, ao mesmo tempo, um sinal de alerta para o futuro, porque embora isto resulte de algo que foi benéfico para a população, o que acontece hoje é que o rápido crescimento da população é consequência do fraco desenvolvimento social“.

O motor foi positivo, mas a população continua a crescer muito e de uma forma desigual à escala regional. É nas zonas menos desenvolvidas, como países africanos, asiáticos e da América do Sul, que “a diferença entre os nascimentos e os óbitos é maior e, por isso, nascem muitos mais do que aqueles que morrem”, detalha a docente da FCSH-UNL. De acordo com a ONU, estes países representavam cerca de 8% da população mundial em 1950; hoje, já representam 14% da população mundial e espera-se que em 2050 representem 20% da população mundial.

os países mais desenvolvidos, que se concentram na Europa e na América do Norte, estão a perder protagonismo à escala mundial, quando foi neles que começou a explosão demográfica. “Os países europeus e os EUA e Canadá sofreram uma mutação muito significativa, que fez com que tivesse baixado a mortalidade, mas também tivesse baixado bastante a natalidade”, sustenta Paulo Machado. Se em 1950 representavam cerca de 32% da população do mundo, atualmente já representam cerca de 16% e, em 2050, poderão representar 13% da população mundial.

Noutras zonas do planeta, os desequilíbrios agravaram-se não tanto por um aumento da população, mas sim pelo povoamento. Isto é, a urbanização teve um crescimento brutal desde 1980/90, mais até do que o crescimento populacional em alguns casos. E nas novas zonas cada vez mais sobrepovoadas encontram-se desequilíbrios. É o caso do Brasil, que se tornou “muito mais assimétrico” por causa da sua urbanização, exemplifica o demógrafo.

Este aumento do volume populacional exige mais recursos, desde água e alimentos às matérias-primas. Que não são ilimitados. Até hoje a sua distribuição nunca foi feita de forma igual. Aliás, no final do século XVIII, Thomas Malthus alertava no livro “Ensaio sobre o Princípio da População” que a população, quando não controlada, cresce desmesuradamente e vai exceder os recursos naturais.

Por outras palavras, “se a população aumenta e os recursos não acompanham este crescimento, vai dar origem à miséria, à fome e, por sua vez, vai dar origem à morte”, precisa Maria João Valente Rosa. Acontece que a relação entre população e recursos está “razoavelmente controlada” apenas no sentido de “assegurar a sobrevivência em relação às zonas mais ricas”, acrescenta o presidente da APD.

Reconhecendo que nos países europeus e nos Estados Unidos já existem “dificuldades óbvias no domínio da água”, Paulo Machado dá como exemplo a tecnologia alimentar, que veio resolver parte dos problemas nestes países mais ricos e desenvolvidos. mas em países mais pobres e menos desenvolvidos, onde a tecnologia alimentar é menos eficaz, as dificuldades “já se manifestam há muito tempo e a ideia é que se vão acentuar”. Cenário semelhante deverá acontecer com os recursos energéticos.

Segundo Maria João Valente Rosa, este problema não tem unicamente que ver com o crescimento da população, como também com o estilo de vida e os modos de consumo e produção, sobretudo nas regiões mais ricas, provocando “um enorme desgaste no planeta” devido ao forte impacto ambiental.Se todos vivessem como os europeus ou os norte-americanos, o planeta já não chegava“, assevera.

Um relatório da ONU dá conta de que o sistema de produção de alimentos, tal como existe atualmente, não pode continuar sem causar graves danos ambientais. E alerta para a necessidade de se desenvolverem políticas que alterem as práticas desses sistemas e que as tornem sustentáveis, preservando a biodiversidade. Por exemplo, adaptar as colheitas à diversidade de climas e desenvolver melhores transportes e redes de distribuição alimentar.

Não podemos continuar a fazer mais do mesmo para responder a um crescente número de pessoas que habitam o planeta Terra. Para que mais gente consiga ter o alimento de que necessita para viver, é necessário que os sistemas de produção alimentar sejam adaptados a uma população em rápido crescimento.

Maria João Valente Rosa

Demógrafa e professora universitária da FCSH-UNL

Ainda assim, a economista Marta Sistelo, da Faculdade de Economia do Porto, observa que as taxas de crescimento da população têm desacelerado. Por isso, “o medo de que os alimentos não sejam suficientes para uma população maior parece menos preocupante do que o perigo da utilização dos recursos terrestres às taxas atuais, com consequências ambientais gravíssimas“, salienta.

Desenvolvimento social como “contracetivo” para a elevada fecundidade

Cimeiras como a COP27 – Conferência do Clima das Nações Unidas, que está a decorrer no Egito, procuram soluções para mitigar os desafios sociais, económicos e demográficos provocados por oito mil milhões de habitantes. Até ver, as consequências destes fóruns de discussão, no sentido do resultado prático, têm sido “razoavelmente modestas”. As palavras são de Paulo Machado, que sublinha que a escala a que essas soluções hoje se colocam “ultrapassa e muito a escala dos países”, deixando os governos “razoavelmente coartados na sua ação”.

“Por outro lado, mesmo dentro de cada país, as soluções — aquelas que poderiam ser imediatamente compreendidas como boas soluções — exigem recursos para os quais é difícil encontrar mobilização. Seja dentro dos próprios países, seja até através de recursos internacionais. Refiro-me a recursos de natureza financeira, mas também de natureza tecnológica”, remata.

A rápida criação de vacinas contra a Covid-19 é um bom exemplo de como a ciência e a tecnologia podem resolver problemas, ainda mais a nível global. Mas como corrigir as assimetrias populacionais? A política do filho único, experimentada na China, é uma das soluções mais conhecidas. Paulo Machado não a defende, visto que daí resultaram outros problemas demográficos. Mas é “a melhor solução” que conhece, de tal maneira que o país mais populoso do mundo vai ser rapidamente ultrapassado pela Índia.

Para o presidente da APD, “não existem propriamente” soluções — no limite, obrigaria a uma “verdadeira revolução, de modos de produção, política, cultural”. “Encontramos movimentos sociais importantes, mas são isso mesmo, movimentos sociais, que ainda não têm uma expressão que nos capacite a uma verdadeira transformação da sociedade”, lamenta.

Não obstante, como aconteceu no passado, a chave deve passar pelo desenvolvimento social. O crescimento populacional pode ser uma boa oportunidade sobretudo para os países da África subsariana, alguns da Ásia e parte da América Latina, designadamente onde a natalidade é maior, criarem “empregos mais produtivos e decentes”, de modo a “acelerar algum crescimento económico”, defende Maria João Valente Rosa.

Ao mesmo tempo, os governos dessas regiões necessitam de promover a desaceleração do seu crescimento demográfico, apostando em fatores como a educação, a igualdade de género e o acesso aos sistemas de saúde, particularmente à saúde reprodutiva e ao planeamento familiar. “A ideia é também diminuir as gravidezes indesejadas, que fazem com que nasçam muito mais crianças do que aquelas que à partida poderiam nascer”, argumenta.

Economias adaptadas ao envelhecimento da população

Contrariamente às regiões mais pobres, os países mais desenvolvidos deparam-se com os desafios trazidos pelos baixos níveis de mortalidade e de fecundidade, que resultam no envelhecimento das suas populações. Os cuidados de saúde de longa duração e o decréscimo da população em idade ativa são os principais, mas em alguns países, como Portugal, há ainda o desafio da sustentabilidade da Segurança Social.

O envelhecimento, com maior intensidade nos países mais desenvolvidos, é uma tendência que está e vai ficar, pelo menos, a médio prazo“, salienta Maria João Valente Rosa. Mitigar esta intensidade passa muito pela questão migratória. “Sobretudo pela entrada de pessoas do tipo laboral, ou seja, se esta entrada acontecer nas idades ativas, que são simultaneamente as idades mais férteis”, detalha a investigadora.

Por um lado, a imigração ajuda a compensar a diminuição das pessoas em idade ativa, para efeitos de mercado de trabalho e para efeitos de produtividade; por outro lado, as pessoas nas idades ativas estão também nas idades mais férteis e, por isso, acabam por contribuir para o número de nascimentos nos países mais envelhecidos.

Só em Portugal, 13,6% dos nascimentos que ocorreram em 2021 eram nascimentos cujas mães tinham nacionalidade estrangeira. “É uma fatia extremamente importante. Sem esses nascimentos, os nascimentos em Portugal no último ano – que já foram muitíssimo baixos – nem tinham atingido os 70 mil”, admite Maria João Valente Rosa, ressalvando que “não evita o prosseguimento do processo de envelhecimento”.

“Em países como Portugal são os imigrantes que ajudarão a travar a descida na taxa de natalidade, e serão um motor de crescimento e rejuvenescimento da população”, frisa a economista Marta Sistelo. Isto porque, justifica, “uma população envelhecida significa mais despesas com pensões e cuidados de saúde, menos força de trabalho e menor crescimento da produtividade com consequente impacto negativo no crescimento económico. A produtividade no trabalho é superior a meio da vida e, por isso, um aumento da população nessa idade tem um contributo direto para a produção nacional”.

Uma população envelhecida significa mais despesas com pensões e cuidados de saúde, menos força de trabalho e menor crescimento da produtividade com consequente impacto negativo no crescimento económico. A produtividade no trabalho é superior a meio da vida e, por isso, um aumento da população nessa idade tem um contributo direto para a produção nacional.

Marta Sistelo

Economista

Faz sentido os países continuarem a adotar os mesmos sistemas e modelos que tinham, quando a sua população está a envelhecer? A demógrafa argumenta que, em termos coletivos e individuais, “todos temos a ganhar se essas pessoas continuarem a ter um papel importante para a sociedade, contribuindo com algumas atividades que possam ser desenvolvidas”. “A idade não é um atributo importante para decidirmos sobre o valor de alguém“, sublinha.

No modelo atual, as pessoas iniciam uma atividade quando são mais novas e, de uma maneira geral, continuam nessa atividade ao longo do tempo. Mas as pessoas vão mudando as suas características e, quando são mais velhas, já não estão a fazer tão bem a sua atividade como faziam e também ficam cansadas de a fazer. Em resumo, indica a investigadora da FCSH-UNL, “o trabalho que estão a fazer não se adaptou também à mudança e não potencializou aquilo que, ao longo do tempo, a pessoa foi acrescentando a si própria”.

Com as sociedades sustentadas no conhecimento, e sendo este “um valor que não se perde com a idade”, a resposta passa pela formação contínua, não só para a atualização de saberes, mas também para a aquisição de novos conhecimentos, até porque as próprias empresas beneficiam desse aspeto, bem como a sociedade como um todo, defende Maria João Valente Rosa.

O demógrafo norueguês Vegard Skirbekk, que esteve recentemente em Portugal, defendeu precisamente a necessidade de mudar a forma como é encarado o envelhecimento da população. Paulo Machado ressalva, porém, que a questão não está na capacidade de adaptação, antes está no tempo da adaptação.

A velocidade da mudança, em termos do comportamento demográfico, não foi acompanhada de uma transformação societal que tivesse permitido acomodar facilmente e sem efeitos muito negativos aquilo que está a acontecer: temos muitos filhos que não têm sítio para ficar; temos instituições de má qualidade no acolhimento de idosos; não temos uma habitação ajustada às famílias, sobretudo na relação entre o local de trabalho e o local de residência, obrigando as pessoas diariamente a fazer deslocações que demoram horas.

Paulo Machado

Demógrafo e Presidente da Associação Portuguesa de Demografia

Entretanto, as estimativas da ONU publicadas em julho preveem ainda que o crescimento da população já está a desacelerar e que em 2086 vai mesmo começar a diminuir, o que resulta do fator do dividendo demográfico. Por um lado, com o envelhecimento da população, existem mais pessoas nas idades superiores e o número de óbitos começa a aumentar, enquanto serão cada vez menos as mulheres em idade reprodutiva (dos 15 aos 50 anos), logo, haverá menos nascimentos.

Em resumo, “a população vai desacelerar fruto do número de óbitos que vai ultrapassar o número de nascimentos; quando isto acontecer, a população mundial diminui”, explica Maria João Valente Rosa. Daí que os oito mil milhões precisem de ser vistos com uma “leitura dupla”: chegámos aqui pela diminuição significativa da mortalidade, mas isto não significa que devam continuar a aumentar.

Uma frase atribuída a Darwin diz: “Não é a espécie mais forte que sobrevive, nem mesmo a mais inteligente, mas a que reage melhor à mudança”. Os demógrafos alertam que as mudanças que se fizerem levam muito tempo a produzir resultados, pelo que é preciso começar a trabalhar já. Com o crescimento da população mundial a desacelerar, as economias serão obrigadas a pensar a fecundidade sob a lente de aspetos como desigualdade, baixos níveis educacionais e pobreza.

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