Dos acampamentos de ‘bolsonaristas’ às acusações entre presidentes: a invasão às sedes dos Três Poderes no Brasil

  • Joana Abrantes Gomes
  • 9 Janeiro 2023

Milhares de 'bolsonaristas' tentaram derrubar o Governo que tomou posse a 1 de janeiro. Lula promete mão dura contra os radicais e aponta o dedo a Bolsonaro e à Polícia Militar do Distrito Federal.

Primeiro, o Congresso Nacional, depois, o Palácio do Planalto e, por fim, o edifício do Supremo Tribunal Federal. As sedes dos três poderes do Brasil, localizadas em Brasília, foram invadidas e vandalizadas neste domingo por milhares de apoiantes do ex-presidente Jair Bolsonaro. Numa ação que parecia repetir a invasão do Capitólio dos Estados Unidos da América em 6 de janeiro de 2021, os manifestantes radicais apelavam a uma intervenção militar para derrubar o recém empossado Presidente Lula da Silva para “salvar o Brasil do comunismo”.

Para entender este episódio, importa recuar às eleições presidenciais brasileiras. Centenas de militantes radicais, fiéis de Bolsonaro (chamados de ‘bolsonaristas’), estavam acampados em frente ao Quartel-General do Exército, na capital brasileira, desde 31 de outubro, dia seguinte ao “segundo turno”, em que o ex-presidente não conseguiu a reeleição e foi derrotado por Lula da Silva. Além disso, há várias semanas que decorriam manifestações um pouco por todo o país, recusando a vitória de Lula e pedindo a intervenção do exército para que tomasse o poder.

Tudo culminou no evento deste domingo. Após derrubarem uma barreira policial, o grupo que acampava junto ao quartel-general, vestido de verde e amarelo, subiu a rampa que dá acesso à cobertura dos prédios da Câmara dos Deputados e do Senado, invadindo assim a sede do Congresso Nacional e mostrando uma faixa que dizia “intervenção”. Ao mesmo tempo, iam chegando a Brasília dezenas de autocarros que transportavam mais manifestantes, muitos dos quais, de acordo com as autoridades, não precisaram de pagar a viagem.

O protesto, convocado por ‘bolsonaristas’ para a Esplanada dos Ministérios, estaria a ser preparado há muito tempo. Alexandre, um jovem de 27 anos residente numa zona periférica de Brasília, assim deu a entender, em declarações à agência Lusa, contando ainda que os seus pais chegaram no sábado para se juntarem a si “no grande dia”. “O nosso objetivo é a desordem”, por isso “estamos quebrando tudo”, disse ainda à Lusa Priscila, que já se encontrava nos jardins no Palácio do Planalto, muito perto da rampa que Lula da Silva subiu há uma semana para se tornar o 39.º Presidente do Brasil.

Alexandre confessou ainda à Lusa não ter receio da polícia, porque a impressão é de que as autoridades “são patriotas e estão com o povo”. “Eu creio que a polícia esteja com o povo, salvo alguns policiais que são comunistas”, frisou o jovem, considerando que, “se houver uma convulsão social, pode ser acionada a garantia da lei da ordem” e os militares tomam o poder.

Pelo menos 300 detenções e acampamentos desmantelados

Antes da invasão, o ministro da Justiça do Brasil, Flávio Dino, afirmou ter conversado com governadores sobre as convocações de protestos por estes radicais e disse esperar que a polícia não necessitasse de agir para conter atos violentos desses grupos. A Polícia Militar de Brasília chegou a montar barreiras de proteção, mas os manifestantes furaram o cerco policial, arrancando grades para entrar na Praça dos Três Poderes enquanto os agentes tentavam contê-los com spray de gás pimenta.

O relógio marcava uns minutos para as 15 horas (perto das 18 horas em Portugal continental) quando a Polícia Militar já tentava travar o avanço dos ‘bolsonaristas’, que se concentraram às portas do Palácio do Planalto em Brasília e diziam querer “tomar os três poderes” para “salvar o Brasil do comunismo”. Mas estavam poucos elementos de serviço, apesar do aviso de risco de escalada, e as autoridades não conseguiram impedir os invasores de entrar nos edifícios públicos.

Ao tomar conhecimento do que se sucedia em Brasília, o Presidente brasileiro decretou a intervenção federal “para pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública” até 31 de janeiro, classificando a invasão como uma “barbárie” organizada por “fascistas fanáticos”. O controlo das sedes dos três poderes foi recuperado ainda no domingo, numa operação em que foram detidas pelo menos 300 pessoas, segundo a Polícia Civil de Brasília, que promete que “as investigações seguem até que o último integrante seja identificado”. Lula garante que todos os responsáveis pelas invasões serão punidos.

Horas após os ataques ‘bolsonaristas’, o juiz Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal determinou o afastamento de Ibaneis Rocha, por 90 dias, do cargo de governador do Distrito Federal. Moraes, cuja decisão surge em resposta a um pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) – órgão público que representa o Governo Federal brasileiro em tribunais – e do senador e líder do Governo brasileiro no Congresso, Randolfe Rodrigues, entende que Ibaneis atuou com negligência e omissão, tal como Anderson Torres, exonerado ainda ontem de secretário de Segurança do Distrito Federal e que foi ministro da Justiça até quase ao fim do Governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Entretanto, um áudio divulgado já esta segunda-feira pelo jornal brasileiro Folha de São Paulo parece confirmar a tese de Moraes relativamente a Ibaneis Rocha, ao mostrar que as autoridades de segurança do Distrito Federal negociaram com os ‘bolsonaristas’ que invadiram a Praça dos Três Poderes e informaram o governador de Brasília que fariam um ato pacífico na Esplanada dos Ministérios. “Tudo tranquilo”, começa o áudio, no qual o número dois da Secretaria de Segurança do Distrito Federal, Fernando de Sousa Oliveira, conversa com o governador Ibaneis Rocha.

A autoridade local afirmou que os apoiantes de Jair Bolsonaro desciam de forma controlada e sob escolta policial do quartel-general do Exército para a Praça dos Três Poderes, onde invadiram e causaram grande destruição nos edifícios públicos. “Então, assim, está um clima bem tranquilo, bem ameno. Uma movimentação bem suave, e a manifestação totalmente pacífica. Até agora, nossa inteligência está monitorando, não há nenhum informe de questão de agressividade ligada a esse tipo de comportamento. Então, esse é o informe para o senhor. Tem aproximadamente 150 autocarros já no Distrito Federal, mas todo mundo de forma ordeira e pacífica”, disse Sousa Oliveira.

Embora ainda sob alerta para possíveis ataques às refinarias da petrolífera brasileira Petrobras, a Polícia Militar e o Exército estão agora a desmantelar os acampamentos montados em frente ao Quartel-General do Exército e noutras unidades militares do país, também na sequência de uma decisão do juiz Alexandre de Moraes. Os militares deram o prazo de uma hora para os ‘bolsonaristas’ deixarem o acampamento em Brasília e a saída deles aparenta estar a ocorrer sem resistência, sendo que as informações mais recentes do Ministério da Justiça brasileiro dão conta de 1.200 pessoas detidas e a serem levadas para a sede da Polícia Federal em pelo menos 40 autocarros.

Lula remete responsabilidade da invasão para Bolsonaro, mas ex-presidente demarca-se

No momento em que leu o decreto em que ordenou uma intervenção federal em Brasília, Lula da Silva – que se encontrava em Araraquara, no Estado de São Paulo, para avaliar os danos ali causados pela chuva – acusou o seu antecessor de ter instigado a invasão das sedes dos três poderes na capital sem nunca pronunciar o nome Bolsonaro. “Esse genocida não só provocou e estimulou isso como, quem sabe, está estimulando ainda pelas redes sociais, lá de Miami para onde ele fugiu para não me colocar a faixa (presidencial)”, no dia da tomada de posse, afirmou o Presidente brasileiro.

Lula foi ainda mais longe e sugeriu que as autoridades foram coniventes com os ataques. “Quem tem de fazer a segurança é a Polícia Militar do Distrito Federal, que não fez. Houve incompetência, má vontade ou má-fé de quem cuida da segurança pública do Distrito Federal“, apontou o Chefe de Estado brasileiro, fazendo referência a vídeos de membros da polícia a “guiar” as pessoas até à Praça dos Três Poderes.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, por seu lado, demarcou-se das invasões levadas a cabo pelos seus apoiantes e repudiou as acusações feitas pelo seu sucessor de ter estimulado os ataques. “Manifestações pacíficas, na forma da lei, fazem parte da democracia. Contudo, depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra”, escreveu, na sua conta oficial no Twitter.

“Ao longo do meu mandato, sempre estive dentro das quatro linhas da Constituição respeitando e defendendo as leis, a democracia, a transparência e a nossa sagrada liberdade”, acrescentou Jair Bolsonaro, que está nos EUA desde o final do ano passado, não tendo comparecido na passagem de testemunho do poder a Lula da Silva.

Da mesma maneira, também o líder do Partido Liberal, partido de Bolsonaro, publicou um vídeo nas redes sociais no qual se demarca da “vergonha” que aconteceu em Brasília, dizendo que os responsáveis pelo ataque às instituições em Brasília “não representam” o antigo presidente brasileiro.

De Marcelo Rebelo de Sousa a Joe Biden, também a comunidade internacional tem condenado a invasão e manifestado apoio ao poder legitimado nas urnas. “É de repúdio por estes atos inconstitucionais e ilegais a que todos assistimos“, sublinhou o Presidente da República Portuguesa na noite de domingo, em declarações ao Jornal da Noite da SIC, demonstrando, por outro lado “solidariedade total relativamente à legitimidade democrática atribuída pelo povo brasileiro”.

Classificando o “atentado à democracia” no Brasil como “ultrajante”, o Presidente dos EUA reiterou o apoio às instituições do país e reafirmou a vontade de “continuar a trabalhar com Lula”, através de uma publicação no Twitter na noite de domingo.

Palavras semelhantes usou a presidente da Comissão Europeia, considerando que a invasão ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal e ao Palácio do Planalto do Brasil constituiu um “ataque à democracia” e sublinhando o seu apoio a Lula da Silva. O ataque aos órgãos de soberania brasileiros “é uma grande preocupação para todos nós, defensores da democracia”, afirmou Ursula von der Leyen, numa mensagem divulgada através do Twitter na manhã desta segunda-feira.

Já o secretário-geral das Nações Unidas disse estar consternado com os incidentes e considerou que “os brasileiros estarão à altura da situação”, defendendo que deve haver consequências. “Estou chocado, mas confio no Brasil e nas suas instituições”, afirmou António Guterres, à margem de uma conferência em Genebra sobre ajuda humanitária ao Paquistão.

O repúdio aos acontecimentos de domingo veio ainda da Rússia. Esta segunda-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que Moscovo apoia “absolutamente” o Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e condena a violência dos apoiantes de Bolsonaro.

Só o gabinete de Lula ficou intacto entre armas roubadas e pinturas vandalizadas no Planalto

Sem prestar declarações, o Presidente brasileiro visitou o Palácio do Planalto, sede do Executivo, ainda na noite de domingo para verificar os estragos feitos pelos ‘bolsonaristas’. Um ministro e um deputado brasileiros denunciaram que os apoiantes roubaram armas de fogo guardadas no palácio presidencial, enquanto o gabinete de Lula da Silva terá ficado a salvo graças ao sistema de segurança próprio e aos vidros blindados, explicou o ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Paulo Pimenta, citado pela CNN Brasil.

No entanto, várias zonas do piso térreo do edifício, entre as quais a galeria dos presidentes da República, foram vandalizadas, bem como outras áreas do segundo e terceiro andares, assinalou Paulo Pimenta. O quarto andar, onde ficam as salas dos ministros e a Secretaria-Geral da Presidência, não sofreu tantos danos.

Numa nota conjunta divulgada esta segunda-feira, Lula da Silva, os chefes do Congresso, Rodrigo Pacheco (do Senado) e Arthur Lira (da Câmara de Deputados), e a presidente do Supremo Tribunal, Rosa Weber, “rejeitam os atos terroristas, de vandalismo, criminosos e golpistas que ocorreram ontem [domingo] em Brasília”. O país precisa de “normalidade, respeito e trabalho” para alcançar “progresso e justiça social”, refere ainda o comunicado.

Ao mesmo tempo, foi entregue um pedido de abertura de uma comissão parlamentar de inquérito à invasão pela senadora Soraya Thornicke, do partido União-MS, que conta já com o apoio de 22 dos pelo menos 27 senadores de que precisa para ir avante.

Numa entrevista à Deutsche Welle Brasil, o cientista político brasileiro Christian Lynch afirma que “a extrema-direita assinou o seu atestado de óbito” com os ataques de domingo. Segundo este professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), esse eleitorado ainda representará entre 10% a 15% da população, mas a tolerância do sistema político para com figuras da extrema-direita terá “acabado” na sequência da invasão, que “vai recriar as condições de estabilidade do sistema político”.

Lynch critica ainda a atuação das forças de segurança e de Ibaneis Rocha – que considera um “oportunista” que “quer roubar dos dois lados” – e diz que Bolsonaro “não está tão interessado no eleitorado, do ponto de vista da liderança”. “O eleitorado dele só serve se for para tentar impedir uma prisão ou negociar a impunidade dele. Neste domingo, isso acabou”, reitera.

Ao nível económico, os ataques de domingo em Brasília também terão consequências. De acordo com a agência de informação financeira Bloomberg, o receio de instabilidade política e social no Brasil vai pesar no sentimento dos investidores. “O sentimento no mercado já tem estado negativo desde o fim da segunda volta das eleições, e a evolução estará mais relacionada com a maneira como o Governo vai reagir nos próximos dias e as implicações”, disse o diretor de pesquisa da gestora de ativos Credicorp Capital, Dario Valdizan.

A mesma opinião é partilhada por Eduardo Moutinho, analista da Ebury, num comentário enviado ao ECO. “Sabemos que os investidores estrangeiros fogem a este tipo de risco (institucional), e agora não deve ser diferente”, sublinha o especialista da fintech especializada em pagamentos internacionais e câmbios. “O Brasil já tem uma história negativa de turbulência política, que afetou gravemente os ativos brasileiros no passado. O fluxo de capital dos compradores estrangeiros que entraram recentemente no mercado brasileiro é suscetível de ser desfeito, e os investidores devem esperar até que o cenário político e fiscal se alinhe“, sustentou, justificando com o facto de o crescente risco político e institucional poder “impedir ganhos no mercado de ações”.

(Notícia atualizada às 11h39 de 10 de janeiro com comentário da Ebury)

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