Inteligência Artificial: que efeitos no mercado de trabalho?
Mais produtividade, melhor gestão e melhores condições de trabalho são algumas promessas da IA, mas há riscos de que impacto económico seja desigual. Solução passa por treinar algoritmos.
Quando foi inventada a Spinning Jenny, em plena Revolução Industrial, augurou-se que aumentaria o desemprego. O seu inventor teve de abandonar a cidade onde vivia sob ameaça dos operários que viram diminuir a procura pelo seu trabalho e, consequentemente, o seu salário. Mas, apesar da destruição de vários postos de trabalho, houve uma adaptação dos trabalhadores para outras funções.
À semelhança do tear mecânico, a inteligência artificial (IA) não irá apenas destruir trabalho, também o irá criar. “Historicamente, qualquer revolução ou rutura tecnológica provoca desaparecimento de empregos, reconversão e aparecimento de outros, e o saldo não tem sido negativo“, resume o presidente da Associação Industrial Portuguesa (AIP), José Eduardo Carvalho, em declarações ao ECO.
Diversas organizações têm traçado cenários, uns mais otimistas, outros mais pessimistas, sobre a dimensão dos impactos da IA no mercado laboral. A consultora norte-americana McKinsey, por exemplo, aponta para um equilíbrio no saldo de emprego, enquanto o Fórum Económico Mundial prevê o desaparecimento de 14 milhões de postos de trabalho nos próximos cinco anos, devido à diferença entre os 69 milhões de empregos criados e a eliminação de 89 milhões.
Já o Goldman Sachs fala de um largo número de empregos que serão afetados, mas também aponta que o número de postos de trabalho a serem criados é muito difícil de prever. Mais recentemente, um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) diz ser mais provável que a inteligência artificial, em particular os modelos generativos como o ChatGPT, amplie mais os empregos do que os destrua na íntegra.
Segundo Óscar Afonso, diretor da Faculdade de Economia do Porto (FEP), os impactos da inteligência artificial no mercado de trabalho vão depender “da forma como a tecnologia é desenvolvida, implementada e regulamentada”. No entanto, as mudanças, sejam positivas ou negativas, não acontecem do dia para a noite. “Leva um tempo para absorver a tecnologia para a indústria”, adverte Scott Marcus, investigador no think tank Bruegel, sediado em Bruxelas.
O estudo da OIT refere que a maioria dos setores de atividade e dos empregos estão parcialmente expostos a estes desenvolvimentos tecnológicos, salientando que essas ferramentas funcionarão, provavelmente, mais como um complemento do que como um substituto. O maior impacto, de acordo com a agência das Nações Unidas, deverá incidir sobretudo na qualidade do emprego, nomeadamente ao nível da “autonomia” e da “intensidade laboral”.
Ganhos significativos de produtividade, redução do tempo de trabalho, diminuição do risco laboral, redução e/ou eliminação de tarefas rotineiras, trabalho direcionado para tarefas mais criativas, melhor funcionamento dos serviços públicos, melhor planificação económica, melhoria da capacidade de gestão e das condições de trabalho estão entre as vantagens da inteligência artificial para os trabalhadores.
Para as empresas e organizações, a inteligência artificial pode promover “a automatização de processos” – dado que, ao automatizar tarefas repetitivas e demoradas, aumenta a eficiência operacional; a “análise de dados avançada, uma vez que permite processar grandes volumes de dados para extrair insights valiosos, auxiliando na tomada de decisões mais informadas”; a oferta de “produtos e serviços mais personalizados”; e “a otimização da gestão da cadeia logística, reduzindo custos e melhorando as previsões”, aponta Óscar Afonso.
É esta tónica positiva que, segundo a CGTP-IN, deve ser evidenciada. “O potencial da inteligência artificial para resolver problemas e melhorar a vida das pessoas deve constituir o grande vetor do seu desenvolvimento e da sua aplicação”, sublinha Andrea Araújo, membro da comissão executiva da central sindical, ressalvando, contudo, que pode implicar a supressão de postos de trabalho “se não for desenvolvida a um ritmo equilibrado e acompanhada de uma rede de serviços públicos que não deixem cair os trabalhadores afetados na miséria”.
À perda de emprego acrescem riscos como a ausência de regulamentação clara, que pode criar incertezas legais em relação ao uso da inteligência artificial; a falta de dados ou dados incompletos, que pode limitar a eficácia da implementação da IA; o uso inadequado de dados sensíveis, podendo originar violações de privacidade e ameaças à segurança; e ainda desinformação e uma desumanização das relações laborais.
Destaca-se, ainda assim, o risco de bias, particularmente na contratação de trabalhadores. “Algoritmos de inteligência artificial podem herdar enviesamentos existentes nos dados de autoaprendizagem e de autoaperfeiçoamento, resultando em decisões injustas ou discriminatórias”, explica o docente da FEP, dando como exemplo os processos de recrutamento, em que os algoritmos “podem inadvertidamente favorecer certos grupos demográficos, ajudando a perpetuar desigualdades”.
Carlos Alves, da União Geral de Trabalhadores (UGT), sublinha a este respeito que não é o algoritmo que é responsável por uma eventual tomada de decisão que não tem em conta os impactos humanos, mas antes quem o constrói. “Se o algoritmo estiver a trabalhar com base em premissas erradas, arriscamo-nos a ter aquilo que o próprio ser humano faz, que é tomar decisões com base em critérios puramente economicistas“, afirma o secretário executivo da UGT.
A inteligência artificial pode promover diversos benefícios para as empresas/organizações portuguesas, tais como: a automatização de processos, dado que ao automatizar tarefas repetitivas e demoradas, a inteligência artificial aumenta a eficiência operacional; análise de dados avançada, uma vez que permite processar grandes volumes de dados para extrair insights valiosos, auxiliando na tomada de decisões mais informadas; permite que as empresas possam oferecer produtos e serviços mais personalizados; pode ainda promover a otimização da gestão da cadeia logística, reduzindo custos e melhorando as previsões.
Empresas que exploram plataformas digitais, como a Ubereats e a Glovo, recorrem precisamente a sistemas algorítmicos para a gestão logística, financeiras, comunicacional e de recursos humanos. Os seres humanos ficam, por um lado, com as tarefas altamente qualificadas (gestão estratégica, marketing, programação), e, por outro, com as tarefas mais desqualificadas, como levar os produtos a casa dos consumidores. Precisamente este último consiste num emprego precário, inseguro, sem proteção social ou laboral e mal remunerado.
“Aplicou-se a inteligência artificial nas atividades cujo retorno financeiro é maior e cuja relação custo/benefício é mais vantajosa para a empresa, mantendo o trabalho humano, não nas atividades com maior qualidade e remuneração, mas nas que representam uma relação custo/benefício desfavorável ou cuja substituição de seres humanos por inteligência artificial ainda não é tecnologicamente possível”, critica a CGTP. Em cima disso, os ganhos podem ficar concentrados nos proprietários dos algoritmos.
É por isso que estes mecanismos têm de ser treinados. Os direitos à proteção da qualidade de emprego e das condições de trabalho, segundo aponta Carlos Alves, “não deixam de existir pelo facto de estarem a trabalhar com um algoritmo” e, nesse sentido, a política social e laboral “tem de ser articulada” com os desenvolvimentos da inteligência artificial para minimizar os impactos negativos.
Scott Marcus, do Bruegel, destaca, nesse sentido, que mesmo que o número total de trabalhos não se reduza, há pessoas que não terão trabalho em alguma altura porque os seus trabalhos desapareceram e, portanto, “os sistemas de proteção social vão ter de se adaptar” para que as pessoas não sofram em períodos de transição tecnológica.
Por forma a garantir que a IA contribui para um mercado de trabalho mais justo e menos desigual é preciso ter em conta “o design dos sistemas de inteligência artificial”, “a autoaprendizagem e o autoaperfeiçoamento com base em dados imparciais”, “a regulamentação eficaz para evitar práticas discriminatórias e a implementação de políticas sociais e económicas que atenuem os impactos negativos da automação”, aponta o diretor da FEP.
Banca e medicina entre setores mais afetados
Artigos académicos que analisam os impactos da robotização no mercado de trabalho em determinadas regiões e setores industriais detetaram uma tendência decrescente, tanto no emprego como nos salários, dos empregos de baixa e média qualificação, evidenciando que estas qualificações foram as mais afetadas pela automatização.
“A maior parte dos estudos diz que trabalhadores de nível de competências baixo, como construtores, cabeleireiros, esteticistas, não vão ver tantas alterações decorrentes da inteligência artificial ou da automação, os trabalhos deles vão continuar a existir. A mudança com a nova inteligência artificial terá mais impacto em trabalhadores com mais competências do que prevíamos há uns anos“, assinala Scott Marcus.
Há setores mais expostos do que outros, até porque trabalham com áreas com grande impacto do ponto de vista social, mas também há riscos transversais. Entre as categorias profissionais com maior risco de serem afetadas incluem-se os trabalhadores de serviços, operadores das linhas de produção, secretariado, atendimento, recursos humanos, finanças, seguros e caixas de supermercado, enquanto os setores mais criativos – profissões artísticas, de consultoria e científicas – estão mais protegidos.
Deste modo, deixam de ser apenas os trabalhadores de linhas de montagem em fábricas que estão ameaçados, mas também trabalhadores de escritórios, que classificam mensagens, organizam agendas e documentos, ou que fazem deteção de padrões, como os médicos na sua prática diagnóstica.
No setor financeiro, por exemplo, a utilização de dados pessoais para criar sistemas de sinais de alerta em algoritmos de concessão de crédito pode levantar preocupações sobre a privacidade e a discriminação; na área da saúde, a falta de um histórico de dados médicos digitais abrangentes pode dificultar a criação de modelos de diagnóstico precisos; empresas tradicionais, por sua vez, podem enfrentar desafios ao incorporar a inteligência artificial devido à necessidade de alterar estruturas hierárquicas e processos já aparentemente consolidados.
A inteligência artificial coloca ainda uma série de desafios, sendo um dos principais a necessidade de investimentos significativos para a sua aplicação eficaz. É o caso da indústria transformadora, em que a adoção da robótica e da automação decorrente da IA pode envolver elevados custos iniciais, para além de poder impactar o emprego por tipo de qualificações, os salários e a desigualdade salarial entre trabalhadores.
Neste âmbito, Óscar Afonso chama a atenção para o facto de a adoção e o desenvolvimento de tecnologias avançadas poderem estar mais disponíveis para empresas ou para países mais ricos, criando um “maior fosso” entre países e não apenas dentro de cada país.
A ausência de regulamentação específica da IA pode também ser um desafio, em concreto para o uso de veículos autónomos, já que a falta de leis próprias pode dificultar a determinação de responsabilidades em situações de acidentes. Há ainda a salientar que a transição para a inteligência artificial pode exigir tempo de aprendizagem e de ajustes, podendo gerar interrupções temporárias, por exemplo, na logística.
“O que determina estes impactos é a natureza das tarefas realizadas, independentemente de terem um maior ou menor teor cognitivo. É hoje mais fácil usar inteligência artificial para diminuir a necessidade de médicos de diagnóstico do que, talvez, de jardineiros”, considera Pedro Brinca, economista e professor da NOVA SBE.
Como tal, Andrea Araújo defende que a própria IA “tem um papel na gestão, planeamento e antecipação” destes cenários, prevendo, a título de exemplo, “que tarefas têm mais probabilidade de desaparecer e quais as competências necessárias e a gestão dos recursos no tempo e no espaço, de forma a, preventivamente, adaptar e desenvolver as competências às novas realidades”.
Setores mais criativos, com tarefas menos rotineiras – profissões artísticas, trabalho de consultoria e científico, etc. – estão mais protegidos. Outros setores, como o administrativo, será sem dúvida um dos mais impactados. O que determina estes impactos é a natureza das tarefas realizadas, independentemente de terem um maior ou menor teor cognitivo. É hoje mais fácil usar inteligência artificial para diminuir a necessidade de médicos de diagnóstico do que, talvez, de jardineiros.
Esta ideia é defendida também pelo diretor da Faculdade de Economia do Porto, para evitar a destruição de emprego nos diferentes setores. “A implementação da inteligência artificial pode exigir que os trabalhadores adquiram novas competências de modo a poderem adaptar-se às mudanças tecnológicas“, afirma Óscar Afonso.
Por outro lado, a criação, implementação e manutenção de sistemas de IA podem ainda gerar novas oportunidades de emprego em certos setores como, por exemplo, análise de dados, cibersegurança, engenharia de inteligência artificial e ética da inteligência artificial. Segundo o presidente da AIP, estas posições “estão a ser fortemente pressionadas pelos países e mercados que lideram a atual revolução tecnológica”. Silicon Valley tinha, até há pouco tempo, especialistas destas áreas oriundos de 193 países.
A realidade da IA em Portugal
Precisamente a atração de especialistas da área da IA constitui um dos maiores desafios da economia portuguesa, alerta José Eduardo Carvalho. A isso soma-se a maior lentidão da disrupção destas tecnologias em Portugal face aos outros países. “Pelo relativo baixo custo da força de trabalho, que faz com que o custo de oportunidade da adoção da tecnologia não seja tão alto”, justifica o economista Pedro Brinca.
Embora note que os salários mais baixos têm subido muito acima da produtividade, “ao ponto de que cerca de um quarto dos trabalhadores já estão a ganhar o salário mínimo”, o professor da NOVA SBE vê a “ameaça do desemprego tecnológico” cada vez mais como uma realidade.
Mas o secretário executivo da UGT assinala um outro “problema” por resolver em Portugal, que será ainda mais urgente. “Nós nem estamos mal posicionados nas competências digitais, mas temos um conjunto de população, nomeadamente em faixas etárias mais elevadas, que não têm a formação suficiente de base. Aquilo que temos de resolver primeiro, se calhar, é um défice de formação de base“, considera Carlos Alves.
Já a outra central sindical nacional diz estar em falta uma “análise objetiva e extensa sobre as potencialidades de modernização”, que “depende de setor para setor”. “Desde a agricultura ao setor extrativo, o uso de ferramentas de inteligência artificial é muito incipiente, para não dizer quase inexistente”, assinala Andrea Araújo, apontando que o uso destas ferramentas assenta “em empresas de pequena dimensão, baixo valor acrescentado e baixos salários e qualificação”.
Converter o modelo económico de baixos salários e baixas qualificações num modelo de maior valor acrescentado, segundo a CGTP, é fundamental, para o que apela ao desenvolvimento de “políticas de valorização dos trabalhadores, do trabalho e das qualificações, que previnam a perda constante dos trabalhadores mais qualificados para concorrentes externos”.
Existe, simultaneamente, a necessidade de criar infraestruturas tecnológicas adequadas, particularmente, redes internet de alta velocidade, que funcionem em todo o território nacional. “Ainda hoje há locais onde o 4G não chega, quanto mais o 5G. Não existe indústria 2.0 sem internet 5G”, aponta Andrea Araújo.
Em Portugal falta uma análise objetiva e extensa sobre as potencialidades de modernização e esta depende de setor para setor. Mas desde a agricultura ao setor extractivo, o uso de ferramentas de inteligência artificial é muito incipiente, para não dizer quase inexistente. Talvez se utilize a geolocalização na distribuição, mas não se usam ferramentas de inteligência artificial para a gestão dos recursos como a água, para a exploração e melhoria das colheitas, para a rega… O mesmo no setor extrativo ou na própria indústria, muito assente em empresas de pequena dimensão, baixo valor acrescentado e baixos salários e qualificação.
Por fim, a CGTP defende a necessidade de “uma política de substituição de importações que canalize para território nacional a produção e consumo de produtos de alto valor acrescentado”, bem como “a democratização do acesso ao conhecimento, à educação e ao ensino superior, apostando numa rede pública capaz de formar pessoal especializado em áreas como a inteligência artificial, sem que se percam para outros países”.
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