Direção Executiva do SNS foi criada há um ano. O que mudou desde então?

Diploma que estabelece orgânica da Direção Executiva do SNS foi publicado há um ano, mas organismo liderado por Fernando Araújo continua sem estatutos aprovados. ULS são a maior aposta, mas há riscos.

Apesar de ter sido criada há um ano, a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS), liderada por Fernando Araújo, ainda não tem clarificadas as competências, dado que os estatutos ainda não viram a “luz” do dia. Ouvidos pelo ECO, o economista Pedro Pita Barros, o antigo ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes e o bastonário da Ordem dos Médicos alertam que a generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS), com modelo de financiamento por capitação ajustada, pode acarretar riscos. É que se estas estruturas gastarem mais do que o orçamento que lhes foi atribuído podem “criar dívida e pagamentos em atraso”, bem como “monstros administrativos e económico-financeiros”.

Tanto o ex-ministro da Saúde como o bastonário Carlos Cortes viram com bons olhos a criação da Direção Executiva do SNS. Consideram que esta entidade trouxe “uma enorme esperança e expectativa” de mudança, prometendo trazer uma “visão global” do sistema de saúde público ao “conectar as instituições”. No entanto, um ano depois, o bastonário da Ordem dos Médicos considera que ficou aquém das expectativas.

Todos os problemas que existiam há um ano mantêm-se e amplificaram-se”, diagnostica Carlos Cortes, dando como exemplo os problemas com as maternidades, onde “há obstetras a apresentarem a demissão”. As urgências “estão cada vez piores” e continua o cenário de utentes sem médico de família e as listas de espera para cirurgia e consultas.

Por sua vez, Campos Fernandes ressalva que um ano “não é nada” quando estão em causa transformações no sistema de saúde. Porém, apesar da “vontade, motivação e determinação” de Fernando Araújo em executar a reforma, o facto de a Direção Executiva não ter os estatutos aprovados “não é algo de menos importância”. “Por outro lado, talvez falte aquele gatilho que despoleta um envolvimento e uma mobilização dos diferentes stakeholders, das diferentes partes envolvidas neste processo. Talvez isso seja a parte que esteja menos evidente e que seria bom trabalhar”, acrescenta o socialista.

Já Pedro Pita Barros, especialista em Economia da Saúde e professor na Nova SBE, realça que a “maior aposta” da Direção Executiva foi o “esforço de generalização das ULS”, bem como a redefinição do sistema de urgências, que “apesar do esforço feito não terá conseguido todos os resultados esperados”. A partir de janeiro do próximo ano, os hospitais e centros de saúde vão passar a ser integrados em ULS. Além da organização, muda também a forma de financiamento: estas serão financiadas consoante o número de utentes que servem e o peso das doenças que tratam.

Neste âmbito, Pedro Pita Barros, Adalberto Campos Fernandes e Carlos Cortes relembram que já existem oito unidades no país neste modelo em que hospitais e centros de saúde são geridos por uma única administração. Não sendo novidade, mostram-se divididos quanto às vantagens destas estruturas. Se, por um lado, o antigo ministro vê benefícios nesta forma de gestão, por outro, o bastonário considera que as ULS existentes “não deram provas de que realmente foram capazes de melhorar os cuidados de saúde”. E lamenta que a Ordem não tenha sido ouvida neste processo, considerando também necessário “olhar às especificidades de cada um dos locais”.

Algumas ULS terão “orçamentos superiores a mil milhões”

Por outro lado, todos concordam que há riscos. “Há sempre um risco quando fazemos estas transformações em muito curto espaço de tempo”, sublinha Campos Fernandes, notando que, quando estava no Governo, o plano era fazer estas transformações “mais devagar”. Por outro lado, o socialista considera um “erro” implementar as ULS nos “grandes hospitais universitários”. Não só “pela natureza desses hospitais de ensino, investigação e referenciação”, mas também porque serão criados “monstros administrativos e económico-financeiros de elevadíssimo risco. Alguns deles terão orçamentos no final da integração superiores a mil milhões de euros“, avisa, em declarações ao ECO, considerando-a a “experiência mais ousada”.

Ao mesmo tempo, Pedro Pita Barros realça que a generalização das ULS será “exigente em termos de acompanhamento e ajustamento”, sublinhando que o financiamento por capitação é uma forma de “criar maior interesse das ULS em procurar assegurar uma melhor saúde da população”, dado que “uma população mais saudável terá menor uso de recursos, o que permitirá com a mesma transferência desenvolver mais atividades pela ULS”.

No entanto, alerta para “dois elementos” que terão de ser acompanhados. “O primeiro é o que sucede se a ULS gastar mais do que o orçamento atribuído pela regra de capitação e criar dívida e pagamentos em atraso: se receber todas as verbas que gastar a mais, o efeito descrito acima para o pagamento por capitação desaparece”, aponta Pita Barros.

“O segundo é que cada ULS passa a ter interesse em ‘exportar’ doentes mais complicados para outras ULS, para outros hospitais, o que vai obrigar a definir claramente ‘preços’ para essas transferências, e fazer com que as ULS de origem suportem esse custo”, completa. Definir esses preços internos ao SNS exige uma “capacidade técnica e de informação que tem de ser construída”. Outro risco diz respeito ao facto de “o funcionamento da ULS ser dominado pelas necessidades hospitalares e com isso perturbar negativamente o funcionamento dos cuidados de saúde primários”.

Além disso, o economista especialista em Saúde defende que, antes de proceder à generalização das ULS, a Direção Executiva devia dar “maior atenção à questão dos pagamentos em atraso”, bem como “à melhoria da capacidade da gestão hospitalar”.

Direção Executiva continua sem estatutos

Quanto à falta de estatutos da Direção Executiva do SNS, todos concordam que esta circunstância pode dificultar o trabalho executado por este organismo, mas sublinham que as consequências só não são piores dado “bom entendimento” entre Fernando Araújo e Manuel Pizarro. “Sem se ter a definição oficial das funções e poderes executivos da Direção Executiva do SNS, é difícil perceber se o atual modo de funcionamento resultará bem com quaisquer outros dois atores nestes papéis de CEO e de ministro da Saúde”, afirma Pita Barros.

“O facto de serem amigos e serem companheiros de percurso é talvez o melhor antídoto para evitar que uma estrutura sem estatutos não entre em colisão com as competências administrativas e políticas do ministro”, sinaliza Campos Fernandes. Por sua vez, Carlos Cortes considera que há “uma enorme negligência e incompetência” por parte do Governo, dado que passado um ano a direção executiva ainda não tem “um enquadramento legal para poder funcionar”.

Os estatutos servem, na prática, para regular o funcionamento interno do organismo e definir com clareza as competências da Direção Executiva. Em maio, o Ministério da Saúde, garantia ao ECO que estava a “trabalhar ativamente” na conclusão dos estatutos (que dependem de uma portaria conjunta dos Ministérios da Saúde, Finanças e Presidência) e justificava o atraso com o facto de ser “um processo complexo” que envolve várias entidades. A tutela chegou a prometer aprovar os estatutos até ao final do primeiro semestre, contudo, estes ainda não viram a “luz do dia”. O ECO questionou o Ministério da Saúde sobre esta situação, mas até à publicação do artigo não obteve resposta. A Direção Executiva do SNS entrou em plenitude de funções a 1 de janeiro, com a entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2023.

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