De cortes na PAC e na inovação ao novo apoio a Kiev, como a UE esticou o orçamento europeu
Orçamento europeu inclui 50 mil milhões de euros em ajuda à Ucrânia, um terço dos quais pagos pelos Estados-membros. Mas há cortes em programas de saúde e investigação.
Depois de meses de resistência, a Hungria deixou cair o veto ao novo pacote de ajuda da União Europeia (UE) à Ucrânia, no valor de 50 mil milhões de euros, o que permitiu a sua aprovação, por unanimidade, na cimeira de 1 de fevereiro. Combinando 17 mil milhões de euros em subvenções e 33 mil milhões de euros em empréstimos, o apoio é criado dentro do orçamento da UE. A revisão acordada vai obrigar a um aumento das contribuições dos 27 Estados-membros, mas também cortes no financiamento de importantes programas do bloco comunitário, como o Horizonte Europa e o EU4Health.
O Parlamento Europeu e o Conselho da UE chegaram a acordo sobre o pacote de 50 mil milhões apenas cinco dias depois de o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, ter levantado o seu veto. A 6 de fevereiro concluíram as negociações da revisão intercalar do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) 2021-2027, que, além da criação do Mecanismo de Apoio à Ucrânia, inclui um reforço das verbas para a migração, a Plataforma de Tecnologias Estratégicas para a Europa (STEP) e o apoio de emergência (por exemplo, no caso de catástrofes naturais).
A revisão do orçamento do bloco europeu dita um acréscimo de 21 mil milhões de euros nas contribuições dos países membros até ao final do período – Portugal deverá pagar 1,7% deste valor, ou seja, 357 milhões de euros. Deste montante, 17 mil milhões compõem a parcela de subvenções não reembolsáveis destinadas à Ucrânia, sobrando 4 mil milhões de euros para aumentar o financiamento de outros programas.
Contudo, foi simultaneamente acordada uma “reprogramação dos tetos de despesa para os diferentes programas” em vigor, segundo descreveu, em resposta por e-mail ao ECO, uma fonte da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus. Este ajustamento vai traduzir-se em cortes em quatro programas: 2.000 milhões no Horizonte Europa; 1.000 milhões no EU4Health; 700 milhões na Política Agrícola Comum (PAC); e 400 milhões na política de coesão.
São cortes lamentáveis. (…) Isto é grave, porque é um precedente e porque estão a fazer-se cortes em programas que são importantes
A par com esses cortes, a UE reafetará também 2,6 mil milhões de euros, provenientes de autorizações anuladas no âmbito do Instrumento de Vizinhança, de Cooperação para o Desenvolvimento e de Cooperação Internacional (IVCDCI) e do Instrumento de Assistência de Pré-Adesão (IPA), e outros 1,9 mil milhões de euros, que serão libertados do IVCDCI, em virtude do facto de se incluírem no Mecanismo para a Ucrânia os custos do apoio financeiro ao país decidido em 2022.
Também da Reserva de Ajustamento ao Brexit serão reafetados 600 mil milhões de euros, enquanto o montante anual destinado ao Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização será reduzido para 30 milhões de euros a partir deste ano, o que conduzirá a poupanças globais de 1,3 mil milhões de euros no período 2021-2027, incluindo montantes caducados nos últimos três anos.
A eurodeputada Margarida Marques (PS), que esteve presente nas negociações da revisão intercalar do QFP, explica que os cortes nos fundos de coesão e na PAC – de 0,12% e de 0,17% dos respetivos montantes totais – dizem respeito a “assistência técnica”, isto é, ao financiamento gerido diretamente pela Comissão Europeia, mas quer um, quer outro não afeta os envelopes nacionais (embora impeça qualquer aumento no futuro). “O que a Comissão nos disse relativamente à coesão e à agricultura é que podia viver com esses cortes”, assinalou, em declarações ao ECO.
No caso do EU4Health, o programa da UE para a Saúde que surgiu em resposta à pandemia de Covid-19, a redução só se vai sentir no último ano, adianta Margarida Marques, justificando que nessa altura “não faz a mesma diferença que faria agora, porque normalmente [o dinheiro] acaba por ser diluído ou o programa nunca é executado a 100%”.
O Parlamento Europeu ainda conseguiu uma redução de 100 milhões de euros no corte do Horizonte Europa, mas não foi suficiente para evitar que o programa comunitário destinado a financiar a investigação e a inovação até 2027 seja a maior “vítima” deste ajustamento. “É [uma diminuição] simbólica, de 2,1 mil milhões para 2 mil milhões de euros, porque o que conseguimos foi que dinheiro não utilizado voltasse para o programa, que normalmente é uma coisa que não acontece“, aponta a eurodeputada socialista, notando que, contrariamente ao EU4Health, os cortes no Horizonte Europa vão sentir-se já a partir deste ano.
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À semelhança de Margarida Marques, que lamentou não se tratar da revisão “ambiciosa” desejada pelos eurodeputados, o social-democrata José Manuel Fernandes considera os cortes “lamentáveis”: “Isto é grave, porque é um precedente e porque estão a fazer-se cortes em programas que são importantes, no caso do EU4Health para a saúde dos europeus, e no Horizonte Europa para a investigação e a inovação, que são essenciais”.
Ainda assim, ambos destacam que o novo financiamento para a Ucrânia não se faz à custa de programas europeus. “É muito importante que tenha sido criado este Mecanismo [de Apoio à Ucrânia], mas também é muito importante que tenha sido criado dentro do orçamento da União Europeia, porque é a única forma de assegurar que há controlo democrático por parte do Parlamento Europeu”, afirmou Margarida Marques, em declarações ao ECO.
Se a parcela das subvenções, no valor de 17 mil milhões de euros, será inteiramente providenciada por dinheiro novo vindo dos Estados-membros, o montante relativo aos empréstimos (33 mil milhões de euros) é garantido pela prorrogação até 2027 da atual garantia do orçamento da União, para além dos limites máximos, o que depois será integrado no programa de emissão de dívida da UE durante esse período. O objetivo, conforme anunciado pela presidente do Executivo comunitário, Ursula von der Leyen, é iniciar os pagamentos a Kiev em março.
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Até à data, a UE, os 27 e as instituições financeiras europeias prestaram, em conjunto, um apoio à Ucrânia superior a 88 mil milhões de euros, o que inclui o apoio aos Estados-membros que forneceram proteção temporária a cerca de 4 milhões de refugiados ucranianos desde o início da guerra. A primeira transferência deste novo pacote só será possível após receber a ‘luz verde’ dos eurodeputados no plenário de 27 de fevereiro. Uma vez adotado, será publicado no Jornal Oficial da UE e entrará em vigor no dia seguinte, segundo informou Bruxelas.
Importa notar, porém, que os 50 mil milhões de euros não se destinam a financiar armas e munições para o país invadido pela Rússia. O envio de mais armamento está a ser negociado num plano à parte: um fundo complementar de 5.000 milhões de euros por ano ao abrigo do Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (MEAP), num total de 20 mil milhões de euros em quatro anos, disse Charles Michel, após a cimeira europeia.
Apoio à Ucrânia dependente de reformas
Tal como os Planos de Recuperação e Resiliência elaborados pelos 27 Estados-membros no âmbito do NextGenerationEU, a Comissão Europeia está a negociar com Kiev um “Plano Ucrânia”, que vai associar o desembolso de verbas do novo pacote a projetos de reforma do país, com o objetivo de estabilizar a economia ucraniana e preparar uma futura adesão à União Europeia.
Nem o gabinete do Presidente Volodymyr Zelenskyy, nem o Ministério das Finanças ucraniano revelaram pormenores sobre a forma como os fundos europeus serão gastos. No entanto, as instâncias europeias e diplomatas ucranianos identificaram algumas prioridades: o pagamento de salários e pensões do Estado; assegurar o fornecimento regular de eletricidade e água e o funcionamento de outros serviços públicos; apoio à moeda ucraniana, a hryvnia; e a criação de uma rede de segurança para investimentos estrangeiros no país, incluindo a produção de armamento.
O regulamento do Mecanismo de Apoio à Ucrânia prevê também um sistema de indicadores para a Comissão Europeia acompanhar e avaliar a execução do plano, que terá de ser aprovado pelo Conselho Europeu por maioria qualificada. Além disso, caberá aos Estados-membros decidir sobre a aprovação ou a suspensão dos pagamentos, com base na avaliação e nas propostas do Executivo comunitário.
Os líderes dos 27 concordaram, igualmente, em realizar uma discussão anual sobre o pacote de ajuda à Ucrânia e, “se necessário”, revê-lo dentro de dois anos. Em nenhum dos cenários a Hungria poderá vetar o pacote de 50 mil milhões de euros, mas, se Bruxelas fizer essa revisão, também pode decidir que a ajuda atual não é suficiente e que é necessário aumentar o apoio a Kiev. Nesse caso, o Conselho encarregará a Comissão de elaborar propostas de revisão do financiamento no contexto do novo orçamento plurianual da UE.
Enquanto o “Plano Ucrânia” e a comissão de auditoria estão a ser implementados, ficou acordado na cimeira europeia um “financiamento intercalar excecional”, que se traduz numa antecipação de até 1,5 mil milhões de euros por mês durante um período limitado, uma vez que o anterior mecanismo de apoio da União Europeia ao país terminou em 31 de dezembro.
A eurodeputada Margarida Marques realça, por isso, a “enorme urgência” em aprovar o novo mecanismo, o que é ainda mais evidente se se tiver em conta as dificuldades de Washington em fazer aprovar no Congresso um pacote no valor de 60 mil milhões de dólares (cerca de 56 mil milhões de euros) em ajuda militar a Kiev. Embora o Senado norte-americano tenha aprovado esta semana o novo apoio à Ucrânia, o projeto de lei não deverá passar na Câmara dos Representantes, de maioria republicana.
É muito importante que tenha sido criado este mecanismo, mas também é muito importante que tenha sido criado dentro do orçamento da União Europeia. Porque é a única forma de assegurar que há controlo democrático por parte do Parlamento Europeu.
Isto agrava os receios em Bruxelas de que o bloco comunitário possa vir a ter de suportar a maior parte dos custos da guerra na Ucrânia, ainda mais se Donald Trump vencer as eleições nos EUA em novembro. Os 50 mil milhões de euros de ajuda da UE, que serão aplicados ao longo dos próximos quatro anos até 2027, não cobrem o défice de financiamento do país, que o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que seja superior a 40 mil milhões de dólares só este ano.
Perante este cenário, o foco começa a centrar-se em formas alternativas de angariar dinheiro, existindo já o reconhecimento de que, a dada altura, Kiev terá de aprender a manter-se de pé sozinha. “A Ucrânia precisa de se tornar mais autossustentável no futuro, uma vez que não pode continuar a financiar metade do seu orçamento através de financiamento externo“, disse Matteo Patrone, um alto funcionário do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD), financiador público que trabalha com o país, citado pelo Politico.
Um dos planos em cima da mesa, explorado pelos EUA e outros países, passaria por usar os ativos russos congelados (ou os juros destes) – que, só na UE, atingem um valor de cerca de 200 mil milhões de euros – para financiar a reconstrução da Ucrânia depois da guerra. Contudo, encontra resistência entre a oposição da Alemanha, França e Itália, que temem assustar os investidores da Zona Euro e uma retaliação de Putin com ciberataques, além de que o Banco Central Europeu (BCE) já advertiu que a medida poderia prejudicar a reputação do euro “como uma moeda segura”.
Não obstante, os organismos financeiros internacionais têm alertado que uma interrupção do apoio à Ucrânia pode ser desastrosa para o país. A diretora do BERD, Odile Renaud-Basso, reconheceu que há “um risco real” de que o desmoronamento do apoio estrangeiro a Kiev pode resultar num aumento da inflação, ecoando avisos de Gavin Gray, o chefe da missão do FMI na Ucrânia, de que o abandono da Ucrânia provocaria um caos financeiro.
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