Já é possível ter lojas com “balanço zero” nas emissões de carbono

  • Capital Verde
  • 23 Abril 2024

A legislação e a "obrigação social" tornam inevitável a descarbonização do retalho. Autoconsumo de energia e economia circular são dois caminhos. O "green washing" é um risco a evitar.

As estratégias para a descarbonização do retalho foram o tema do primeiro think tankInovação energética e a competitividade setorial”. Um desafio que se coloca quer às empresas do setor quer aos seus fornecedores. A loja neutra em carbono já pode ser uma realidade, graças à aposta no autoconsumo.

O auditório da PLMJ, em Lisboa, foi o palco do primeiro dos quatro think tanks da iniciativa que junta a Helexia Portugal, a Deloitte, a PLMJ e o ECO, que visa discutir como a inovação energética pode contribuir para a competitividade nos setores do retalho, turismo, agroindústria e indústria cerâmica.

A conversa, que decorreu na passada quarta-feira, contou com a presença João Marques Mendes, partner da PLMJ, Filipe Melo de Sampaio, partner da Deloitte, João Lavos, head of positive impact na Leroy Merlin e Luis Pinho, country director da Helexia Portugal.

De acordo com os últimos dados divulgados pela APED, o setor do retalho tem um peso de 12% na economia do país, o que também se reflete na pegada de carbono. “O retalho representa cerca de 25% das emissões globais, não pelas suas emissões diretas, mas muito pela sua cadeia de abastecimento e logística“, aponta Filipe Melo de Sampaio.

“Quando se analisa a descarbonização do retalho, olha-se tipicamente para os vários tipos de emissões. Temos as emissões de scope 1, scope 2 e scope 3. As de scope 1 e scope 2 estão muito relacionadas com a operação do retalhista ou do distribuidor, ou seja, estamos a falar das facilities, das infraestruturas, das frotas próprias dessas mesmas empresas ou da energia que adquirem para a sua própria operação. Depois, no scope 3 temos tudo o que está para trás, ou seja, toda a cadeia de abastecimento, toda a cadeia logística, e aqui há muito a fazer“, considera Filipe Melo de Sampaio.

Enquanto retalhista, eu posso promover que a pegada carbónica das marcas que eu tenho nas minhas superfícies seja transparente e disponibilizada para as pessoas fazerem as suas escolhas, e também posso garantir que só tenho ou adquiro produtos com pegadas mais baixas.

Filipe Melo de Sampaio

Partner da Deloitte

Em relação às emissões relacionadas com a operação, “os retalhistas podem trabalhar temas de eficiência energética nas suas instalações, como a mudança para uma iluminação mais eficiente, uma refrigeração mais eficiente no retalho alimentar, a digitalização de operações para um melhor planeamento de stocks, podem descarbonizar a sua própria frota através da eletrificação de veículos, etc.”, apontou o partner da Deloitte.

Além destas mudanças, Filipe de Melo Sampaio referiu ainda o papel que os retalhistas têm na consciencialização das pessoas: “Enquanto retalhista, eu posso promover que a pegada carbónica das marcas que eu tenho nas minhas superfícies seja transparente e disponibilizada para as pessoas fazerem as suas escolhas, e também posso garantir que só tenho ou adquiro produtos com pegadas mais baixas”.

Estas escolhas mais sustentáveis são cada vez mais uma “obrigação social”, de acordo com Luis Pinho, da Helexia Portugal: “Na verdade, quando leio o documento do business case, começo a sentir que as empresas já não veem como uma estratégia, mas quase como uma obrigação, não tanto legal ou regulamentar, mas uma obrigação social. A primeira coisa a fazer, e a mais importante, é melhorar a eficiência energética, que permite melhorar a operação da loja. Depois, aumentar a reputação e a fidelização. E, a seguir, conseguir antecipar e cumprir as regulações ambientais, de forma a inovar e diferenciar da concorrência”.

No fim, o balanço disto tudo é a loja ter um balanço zero, ou seja, ela produz mais do que precisa, consegue alimentar uma loja vizinha, alimentar a sua mobilidade elétrica e de quem vai lá. Por isso, é um balanço positivo para a loja, mas também para os seus clientes.

Luís Pinho

Country cirector da Helexia Portugal

O country diretor da Helexia considera que é possível ter uma loja neutra em carbono. “Nós fizemos uma análise, que está no Business Case, na qual basicamente olhamos para uma loja típica em Portugal, que tem uma superfície de 12 mil m2 e um parque de estacionamento de 10milm2, que consome pouco mais do que 2GWh/ano. Então nós simulamos, de acordo com essa necessidade de energia, um sistema fotovoltaico que vai produzir mais do que essa necessidade, instalando também carregadores elétricos. Nós precisávamos de 2GWh/ano, passamos a produzir 2.5GWh/ano – uma parte é consumida na loja em período solar, outra parte é injetada na rede e vai para um consumidor vizinho -, precisamos de 400MWh/ano a 500MWh/ano para os carregadores elétricos, fazemos um sistema de gestão de energia que permite perceber como e onde é que a energia está a ser consumida e perceber como conseguimos otimizar isso, portanto reduzimos aí cerca de 100MWh/ano. No fim, o balanço disto tudo é a loja ter um balanço zero, ou seja, ela produz mais do que precisa, consegue alimentar uma loja vizinha, alimentar a sua mobilidade elétrica e de quem vai lá. Por isso, é um balanço positivo para a loja, mas também para os seus clientes“, explicou.

Autoconsumo para gerir risco do preço da energia

Esta capacidade de ter um balanço zero tem vindo a ser cada vez mais trabalhada por várias empresas, mas, de acordo com João Marques Mendes, ainda há muito que se pode fazer neste campo: “Nós tivemos um aumento exponencial de potência instalada em autoconsumo de praticamente zero em 2014 para 1,5GW em 2023. Fruto dos preços altos, as empresas aperceberam-se como nunca da necessidade de fazerem, essencialmente, cobertura de risco de preço, instalando painéis para produção em autoconsumo. Mas ainda é possível fazer mais porque, de facto, hoje em dia percebe-se que faz todo o sentido aproveitar este espaço que muitas vezes existe e não é utilizado para mais nada, sejam os telhados, sejam parques de estacionamento, para, de uma forma sustentável, conseguir promover a transição energética.

“Mas há aqui algumas áreas onde é preciso fazer mais, nomeadamente nas redes, que leva a que não se esteja a tirar o proveito total das soluções de autoconsumo, designadamente na parte que se refere à injeção na rede. Muitas vezes não é possível. É certo que isto traz desafios, mas é essencial para não retirar valor do autoconsumo e fomentar partilhas de energia”, sublinha o partner da PLMJ.

Deveria ser possível, e em Portugal ainda não é, que um veículo elétrico servisse de armazenagem e conseguisse injetar de volta na rede quando o seu utilizador quisesse e quando tivesse a bateria cheia.

João Marques Mendes

Partner da PLMJ

“Depois há ainda outra questão, que é o storage. Deveria ser possível, e em Portugal ainda não é, que um veículo elétrico servisse de armazenagem e conseguisse injetar de volta na rede quando o seu utilizador quisesse e quando tivesse a bateria cheia. Isso permitiria aumentar ao autoconsumo, extrair valor para o utilizador do veículo elétrico, e traria todo o tipo de benefícios”, acrescentou João Marques Mendes.

João Lavos, head of positive impact da Leroy Merlin, deu o exemplo da parceria entre a Leroy Merlin e a Helexia, que visou, em primeiro lugar, reduzir os consumos, e, depois, produzir a própria energia. “Nós instalámos painéis em todos os locais onde era possível instalar, isto porque o modelo económico que trabalhamos era rentável desde o primeiro mês. O que existe depois são dificuldades físicas, dificuldades de licenciamento… Nós temos 48 lojas no país e algumas estão inseridas em retail parks ou centros comerciais e aí o tema das comunidades está a começar a aparecer agora, e existe aqui uma questão que é perceber o que o promotor imobiliário ganha com isto. Não é muito óbvio. E, por isso, nos retail parks e nos centros comerciais continua a ser difícil convencer toda a gente a embarcar nas comunidades, mas já temos agora um projeto e esperamos que até possa vir a constituir um case para o futuro”, revelou.

Luís Pinho sublinhou que é necessário envolver também os fornecedores. “Descarbonizar a cadeia de valor é uma abordagem holística porque compreende vários atores e atores com maturidades, consciências e capacidades diferentes. Nem todos os operadores têm a capacidade, como a Leroy Merlin, de ter uma equipa dedicada a trabalhar nisto com a Helexia, a criar soluções. Portanto, é preciso ajudá-los a começar por fazer a avaliação da pegada de atividade porque se não é impossível tomar ações. E, da mesma forma que as empresas e o retalho tomam ações porque sentem a necessidade de fazer isso e porque sentem a pressão do seu cliente, as empresas também devem pressionar os seus fornecedores e a sua cadeia de valor para fazerem estas ações. Nem todos têm esta capacidade e isto requer mais tempo, mais paciência, requer colaboração e ajuda. Numa primeira fase, fazer a evangelização, e, numa segunda fase, haver critérios de contratação de fornecimento que tenham isto em conta”.

Circularidade como aliado da descarbonização

Além deste trabalho conjunto, Filipe Melo de Sampaio também destacou a circularidade como “um dos temas fundamentais para se conseguir atingir grande parte da redução das emissões”. No entanto, o partner da Deloitte considera que não tem sido feito muito neste campo: “A circularidade tem muito a ver também com a reutilização de materiais. Atualmente, ainda há muita utilização de materiais virgens na conceção de produtos e na utilização na economia. A circularidade conta apenas, a nível global, com 7% da economia e há dois anos era 9%, portanto, nós estamos a perder circularidade. Isto está num estudo da Deloitte com a Circle Economy, que mostra que estamos a regredir no consumo de materiais circulares e a aumentar o consumo de materiais virgens. Nos últimos seis anos, nós consumimos 500 mil milhões de toneladas de material, o que equivale a todos os materiais consumidos durante o século XX todo“.

Ainda assim, mesmo em pequena escala, há coisas que têm vindo a ser feitas, tais como a reutilização de produtos perecíveis. “Nós vemos aqueles casos das bananas que estão a amadurecer muito e que são utilizadas para fazer o pão de banana (supermercado Continente), ou o caso de utilizar os legumes feios (supermercado Pingo Doce) para os aplicar em saladas preparadas, sopas, etc. Este último, com isto, conseguiu, em quatro anos, reduzir oito mil toneladas de CO2. Por isso, há temas a serem feitos no retalho alimentar”, disse Filipe Melo de Sampaio.

Grande parte da economia circular está em três grandes domínios – o domínio da segunda mão, o domínio dos produtos recondicionados, e o domínio do aluguer.

Filipe Melo de Sampaio

Partner da Deloitte

“Grande parte da economia circular está em três grandes domínios – o domínio da segunda mão, o domínio dos produtos recondicionados, e o domínio do aluguer. No tema da segunda mão, o que mais me tem criado uma perceção positiva é o vestuário. Já vemos aquelas empresas que estão completamente consagradas, como a Vinted. E, para nós termos uma ideia, o share da economia circular no vestuário hoje em dia já é de 25%. Até 2030, a segunda mão vai ultrapassar em duas vezes o mercado do fast fashion“, garantiu o partner da Deloitte.

No que diz respeito aos produtos recondicionados, Filipe Melo de Sampaio destacou o eletrónico, “com a Worten ReUse, Auchan ReUse, Fnac Restart”: “Temos muitos casos de utilização de produtos recondicionados. Ainda está demasiado focado em tudo o que é eletrónica, em telemóveis e na marca Apple, portanto ainda há um caminho de democratização. Por que não consolas de jogos, televisões? E depois podemos ir ao mobiliário, podemos ir a bricolage e construção… E, depois, temos o aluguer, onde a Leroy Merlin se destaca, já que tem um catálogo com 2500 ferramentas para alugar“.

“A economia circular para uma empresa de retalho é um tema muitíssimo relevante. Nós identificamos quatro razões: a primeira é porque nós temos de estar sempre a acompanhar os hábitos de consumo dos nossos clientes e consumidores. Em Portugal, nos últimos 12 meses, 80% dos consumidores compraram, pelo menos uma vez, produtos em segunda mão, e 60% dessas pessoas disseram querer aumentar este tipo de consumo nos próximos tempos. Portanto, uma empresa de retalho tem que acompanhar a evolução dos hábitos de consumo e a evolução vai neste sentido – de um consumidor mais consciente, que quer ter um contributo para a redução da pegada e, portanto, as empresas de retalho estão fatalmente a ter de fazer esse caminho”, disse, por sua vez, João Lavos, da Leroy Merlin.

Nós estimamos, dentro de um estudo que fizemos com a Deloitte, na construção da nossa trajetória até 2035, onde queremos baixar 50% da pegada, que a economia circular pode valer 20% da redução. Ou seja, o estímulo a estes novos hábitos de consumo podem ajudar muito as empresas a descarbonizar.

João Lavos

Head of positive impact da Leroy Merlin

A segunda razão esta relacionada com a redução do risco: “As cadeias de aprovisionamento, de abastecimento, estão a começar a sofrer muitas disrupções do ponto de vista do que é o normal abastecimento, seja por fatores ligados com a sustentabilidade, seja por fatores climáticos extremos, seja pelo aumento do custo das matérias-primas que, fruto deste híper consumo de matérias, tendem a aumentar e a entrar em lógicas de escassez. Portanto, do ponto de vista do risco, quanto mais aproximarmos as cadeias de abastecimento e quanto mais as tornarmos circulares, mais defendidos estamos destas disrupções“.

“Depois existe o tema da pegada de carbono. Nós estimamos, dentro de um estudo que fizemos com a Deloitte, na construção da nossa trajetória até 2035, onde queremos baixar 50% da pegada, que a economia circular pode valer 20% da redução. Ou seja, o estímulo a estes novos hábitos de consumo podem ajudar muito as empresas a descarbonizar”, continuou.

Por último, a quarta razão apontada por João Lavos remete para o colaborador: “O colaborador sente um orgulho enorme quando vê que as organizações estão preocupadas com o tema da circularidade e com a maximização do uso dos recursos e que não desperdiçam os recursos que têm”.

Green Washing, o “fenómeno mais pernicioso para a transição energética”

Ainda sobre os riscos associados a esta jornada rumo a um caminho mais sustentável, João Marques Mendes, da PLMJ, referiu-se ao green washing como sendo o “fenómeno mais pernicioso para a transição energética”. Isto porque “mina os esforços que as empresas que verdadeiramente estão apostadas em descarbonizar-se estão a fazer”.

“No fundo, o justo paga pelo pecador. É decisivo que as empresas divulguem corretamente, de forma não enganadora, os esforços que estão a fazer com vista a transição energética e à descarbonização e de forma objetiva. Nós temos assistido, cada vez mais, fora de Portugal, a ações propostas por associações do setor, coimas aplicadas a empresas em matéria de transição climática, e em matéria de green washing. Isto é um ativismo judicial que nós temos assistido muito”, alertou.

É decisivo que as empresas divulguem corretamente, de forma não enganadora, os esforços que estão a fazer com vista a transição energética e à descarbonização e de forma objetiva. É preciso uma cautela extra e uma familiarização com o conceito porque, de facto, muitas vezes, a inocência, nestes casos, pode levar a punição e a danos reputacionais que, muitas vezes, são irreversíveis.

João Marques Mendes

Partner da PLMJ

De acordo com o partner da PLMJ, “quando se começa a estudar o green washing, percebe-se que a maioria das práticas de green washing são práticas que as empresas provavelmente nem percebem que o são. É preciso uma cautela extra e uma familiarização com o conceito porque, de facto, muitas vezes, a inocência, nestes casos, pode levar a punição e a danos reputacionais que, muitas vezes, são irreversíveis”.

“Isto é uma coisa que começa a surgir cá, mas que se vai implementar muito depressa e as empresas, em especial no setor do retalho, têm um desafio especialmente grande porque há uma grande preponderância nas emissões de scope 3, que são aquelas que se prestam mais facilmente a green washing por serem mais difíceis de controlar, de monitorizar as ações corretivas e preventivas. No entanto, como representam mais de 80% das emissões imputáveis àquele distribuidor, há uma necessidade de apostar nessas emissões para conseguir atingir os objetivos da descarbonização”, acrescenta João Marques Mendes.

“Está criado aqui um cocktail em que existe uma oportunidade de descarbonização em prol dos clientes e dos colaboradores, mas também um risco grande e isso é preciso ser gerido com inteligência e com cuidado na divulgação antecipada de factos relacionados com a descarbonização“, concluiu o partner da Deloitte.

Assista a toda a conversa aqui:

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