As cinco explicações que Ana Jorge tem de dar no Parlamento sobre a Santa Casa

Da ausência de um plano de restruturação ao aumento da despesa com pessoal e até ao cancelamento da pareceria no Brasil, as 5 explicações que a provedora exonerada da SCML deverá dar na audição na AR.

As audições com caráter de urgência sobre a situação financeira da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e o negócio da internacionalização dos jogos sociais continuam esta semana. Esta quarta-feira é a vez da provedora exonerada, Ana Jorge, e da anterior ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, serem ouvidas na comissão de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, no Parlamento. Da ausência de um plano de restruturação ao aumento da despesa com pessoal e até ao cancelamento da pareceria no Brasil, as cinco explicações que a ex-ministra da Saúde deverá dar aos deputados.

1. Governo acusa atual mesa de “incapacidade” de gestão e “ausência” de plano de reestruturação

Perante a debilidade financeira da Santa Casa, que acumula prejuízos desde 2020 (e até 2022), a atual administração estabeleceu um conjunto de “orientações e decisões” para levar a cabo em 2023 e 2024, tendo em vista “assegurar a solvabilidade financeira imediata” da instituição. Prometia ainda “iniciar um processo de reformas com a finalidade de alcançar a sustentabilidade a médio e longo prazos”, sem comprometer” a atividade assistencial “aos mais vulneráveis”, segundo consta no Plano de Orçamento e Atividades 2024.

Entre as medidas propostas constava a revisão dos contratos de prestação de serviços e avenças, bem como o compromisso de avaliar se os serviços em causa poderiam ser assegurados com recursos internos, avançar com um “processo de redução das estruturas orgânicas e de segregação funcional”, analisar a “política de horas extraordinárias e isenções de horário” e adequá-las às necessidades, renegociar os protocolos com o Instituto da Segurança Social e com o Ministério da Saúde, não vender, “por regra, bens do património imobiliário da SCML, por serem ativos indispensáveis” para garantir à instituição “sustentabilidade financeira a longo prazo” e o cancelamento da parceria para explorar os jogos no Brasil, entre outros.

No entanto, estas medidas foram consideradas insuficientes pelo atual Executivo, que decidiu exonerar toda a mesa da SCML, incluindo a provedora Ana Jorge, acusando a administração de ser “incapaz de enfrentar os graves problemas financeiros e operacionais da instituição” e de “atuações gravemente negligentes”, que poderão comprometer a “curto prazo” a “fundamental tarefa de ação social que lhe compete”. Além disso, o Governo critica a “ausência” de um plano de reestruturação “tendo em conta o desequilíbrio de contas entre a estrutura corrente e de capital”.

A falta de um “plano robusto” foi, aliás, admitida para vice-provedora demissionária na audição da semana passada no Parlamento. Contudo, Ana Vitória Azevedo garantiu que estavam em curso “medidas de urgência” que implicavam “contenção orçamental”, incluindo no corte das chefias. Já a provedora Ana Jorge – que tinha assumido funções há cerca de um ano e que se vai manter em gestão corrente até ser nomeada nova equipa –, assegurou, em carta enviada aos trabalhadores após a exoneração, que havia um “plano de reestruturação sólido” que a atual mesa elaborou e queria implementar. A ex-ministra da Saúde mostrou-se, por isso, desiludida” com a forma “rude e caluniosa” com que foi justificada a sua exoneração.

2. Dos gastos com pessoal às acusações de “benefício próprio”

Em 2022, a Santa Casa contava com 6.080 funcionários, um ligeiro recuo face aos 6.204 de 2021. Só que durante o período em que Edmundo Martinho foi provedor, entraram na Santa Casa cerca de mais mil trabalhadores, já que em 2017 eram cerca de cinco mil. Para 2024, a atual administração projetava um total de 6.074 trabalhadores, ou seja, a manutenção do quadro de pessoal.

O elevado número de funcionários e, mais concretamente, de chefias, é outra das questões que tem sido levantada. No Plano de Orçamento e Atividades 2024, a mesa da SCML estima que 488 desempenhem estes cargos, dos quais 279 cargos de dirigente; 107 cargos de diretor de estabelecimento; e 102 cargos de chefia direta. Face a 2023, a única diferença neste âmbito diz respeito a cargos de dirigente: eram 281 (menos dois face a 2024), segundo consta no Plano de Orçamento 2024. Ainda assim, já foram bem mais os funcionários em cargos chefia.

Não obstante, na audição da semana passada, a vice-provedora demissionária, que teve o pelouro dos recursos humanos, rejeitou as críticas do Executivo de que houve um aumento de despesa com pessoal não sustentado, referindo que entre as medidas tomadas pela atual administração esteve o corte de “15% do número de cargos”, nomeadamente “uma redução de 40 cargos de dirigentes” em 2023, com um valor de um milhão de euros. Quando cheguei havia chefias sem equipa. Eram chefes deles próprios”, denunciou.

Este balanço contradiz o que foi dito pela ministra do Trabalho, que em entrevista à RTP, tinha dito que foram apenas cortados 19 dirigentes. Além disso, Ana Vitória Azevedo garantiu ainda que foi implementada a regra de contratação de apenas um trabalhador por cada duas saídas, conhecida por “dois por um”. Por outro lado, para fazer face aos elevados custos de pessoal, adiantou ainda que foi suspensa a contratação de funcionários sem licença e que o acordo de empresa alcançado, que implicou atualizações salariais médias de 6,5%, “era urgente de aplicar na Santa Casa“. “Era impensável que os trabalhadores tivessem tanto tempo sem atualizações salariais”, sublinhando que essa subida “era fundamental” para a “paz social” da instituição.

Ainda assim, de acordo com o relatório de gestão e contas consultado pelo ECO e que ainda não foi homologado pela tutela, em 2023 a despesa com pessoal ascendeu a 152 milhões de euros. Já o valor orçamentado para 2024 é de 163 milhões de euros, isto é, mais 11 milhões face ao valor gasto em 2023, apurou o ECO.

Ana Jorge deverá também ser questionada pelos deputados sobre as declarações da ministra do Trabalho, que acusou a provedora e a restante mesa de atuarem em benefício próprio. A vice-provedora demissionária já tinha apontado que o único aumento para a atual administração resultou da aplicação do Estatuto do Gestor Público e foi decretado não pelos órgãos da Santa Casa mas pelo anterior Governo. “A mesa da [SCML] não teve nenhum beneficio para si”, assegura, considerando que a “acusação é grave”, disse.

3. Mesa da Santa Casa “abandonou” negócios no Brasil e “afundou 30 milhões”?

As suspeitas em volta ao processo de internacionalização levaram a provedora (agora exonerada) Ana Jorge a cancelar, em outubro do ano passado, a parceria para explorar os jogos no Brasil. De acordo com o jornal Público, Ana Jorge tomou a decisão para evitar perder 14 milhões de euros. Mas, agora, o organismo responsável pela gestão das lotarias no Rio de Janeiro exige que a Santa Casa pague mais de 6 milhões por não ter cumprido as obrigações. Para já, a Santa Casa reconheceu nas suas contas perdas de 52,79 milhões de euros, entre 2020 e 2023, segundo o relatório e contas do ano passado, citado pelo Observador, que já seguiu para o Tribunal de Contas e para o Governo, tal como o ECO avançou.

Este é, por isso, outro dos “temas quentes” que deverá marcar a audição de Ana Jorge. Até porque também durante a sua audição no Parlamento Francisco Pessoa e Costa, ex-gestor da Santa Casa Global, acusou a atual administração de “abandonar” os negócios e de “afundar mais 30 milhões de euros”. “É mentira que tenhamos provocado um prejuízo de 50 ou 60 milhões de euros e que tal prejuízo tenha sido provocado pela atividade no Brasil”, disse ainda Francisco Pessoa e Costa, acusando a atual mesa de matar o projeto de internacionalização”.

Para o ex-administrador da Santa Casa Global, a atual administração da Santa Casa tinha todo o direto em não querer continuar a projeto de internacionalização por não lhe reconhecer validade, mas discorda do modo como foi feito. Pessoa e Costa garantiu ainda que houve “análises prévias” às empresas adquiridas ou criadas para levar a cabo o projeto de internacionalização, que incluíram o apoio de escritório de advogados “de renome”, e que não esperavam que tivesse frutos imediatos, mas apenas “a médio prazo”, indicando que isso estava inclusivamente expresso no despacho assinado pela então ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, aquando da constituição da Santa Casa Global.

Já sobre a parecia com o Banco de Brasília (BRB), que foi entretanto cancelada pela atual provedora, o ex-gestor considerou que “foi uma oportunidade e era um ótimo investimento” e que todo o processo foi explicado por carta da administração do banco. Segundo Pessoa e Costa, iria permitir “a criação de cerca de 15 mil postos de trabalho”.

Tal como tinha sido referido por Ricardo Gonçalves, também ex-administrador da Santa Casa Global, Pessoa e Costa relevou que apresentou “duas propostas concretas de entrada de novos parceiros no capital social das empresas no Brasil”, mas que não teve resposta por parte da mesa da SCML. O mesmo sucedeu com uma proposta para comprar 20% da Ainigma Holdings, empresa sediada no Reino Unido. Ambos dizem ter sido destituídos de forma “rude”, “caluniosa” e sem justa causa.

4. Revisão das contas ditou subavaliação dos imóveis

Os critérios utilizados para efeitos de registo contabilístico das propriedades arrendadas da instituição foram um dos motivos de “grande debate interno” da atual mesa da SCML, tendo existido “duas correntes diferentes”. Os auditores externos contratados pela atual mesa, na sequência do pedido de auditoria às contas de 2021 e 2022 da anterior ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, “entenderam que os critérios de determinação do Justo Valor”, utilizados por avaliadores independentes e certificados pela CMVM “não respeitavam integralmente as normas aplicáveis”, segundo explicou a vogal e responsável pelo pelouro financeiro da Santa Casa, ao ECO, o que resultou numa reavaliação dos imóveis da instituição, que ditaram perdas de 57,9 milhões de euros.

A metodologia gerou debate interno e os auditores não gostaram de ser colocados em causa e chegaram a ameaçar não certificar as contas, sabe o ECO. As divergências levaram, inclusivamente, a vice-provedora demissionária, e responsável pelo pelouro do património, a questionar o método utilizado e a pedir uma avaliação ao Tribunal de Contas, que poderá obrigar a um novo ajuste das contas.

Em declarações ao ECO, Ana Vitória Azevedo reiterou as críticas que tinham feito na audição no Parlamento, adiantando que os revisores oficiais de contas “deitaram por terra as avaliações feitas por avaliadores independentes” e certificados pela CMVM, de forma “completamente administrativa e oficiosa”, o que “resultou numa subavaliação do património” da Santa Casa.

Já a vogal e responsável pelo pelouro financeiro da Santa Casa, Teresa do Passo, argumenta, ao ECO, que esta foi uma matéria “longamente, estudada, debatida e fundamentada com base na regulamentação nacional aplicável” e que os auditores da Santa Casa “justificaram e fundamentaram pedagogicamente, até à exaustão” o método seguido. Nesse sentido, Teresa do Passo defendeu que esperar pela decisão do TdC “seria uma irresponsabilidade” e “teria consequências graves” para a Santa Casa.

Certo é, que caso o Tribunal de Contas venha a considerar que o anterior método de avaliação estava correto e não o usado pelos auditores, as contas poderão ter de ser novamente corrigidas. No limite, poderiam ser revertidas as perdas estimadas de 57,9 milhões em 2021 e 2022. A confirmar-se, os resultados líquidos da Santa Casa passariam a ser positivos, tal como o ECO noticiou.

5. Governo e CML acusam Santa Casa de reduzir ação social

Um dos argumentos do Governo para exonerar a mesa da Santa Casa prendeu-se também com múltiplos “alertas de redução significativa da atividade da ação social da SCML em território nacional”. Horas antes de oficializada a decisão do Executivo, também a Câmara Municipal de Lisboa (CML) tinha denunciado “a falta de capacidade de resposta que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tem vindo a demonstrar, ao longo dos últimos dois anos, no domínio da Ação Social”.

Em comunicado, a vereadora Sofia Athayde veio dar conta de que “reiteradamente” tem transmitido essa “preocupação” à própria instituição e que “não pode aceitar que a Ação Social junto das pessoas mais vulneráveis da cidade seja posta em causa”, lembrando ainda que, ao contrário do que sucede nos restantes municípios do país, esta competência “é da responsabilidade da SCML, tanto através dos seus estatutos próprios, como através dos vários protocolos estabelecidos com a Segurança Social”

De notar que, as principais áreas da despesa corrente são a ação social e a saúde que, no seu conjunto, representavam 78% do total da despesa da SCML em 2022. A despesa da instituição na área da saúde social, entre 2017 e 2022, cresceu quase 17%, enquanto com a saúde aumentou cerca de 21,5%.

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