A um mês da despedida, PGR terá prova de fogo perante os deputados
Lucília Gago vai ao Parlamento na quarta-feira falar do relatório síntese relativo à atividade do Ministério Público do ano passado. Mas polémicas do seu mandato serão também abordadas na audição.
Seis anos depois de ter iniciado o mandato e precisamente um mês antes de o terminar, a procuradora-geral da República Lucília Gago vai ao Parlamento na quarta-feira, pela primeira e última vez, falar do relatório síntese relativo à atividade do Ministério Público do ano passado.
Lucília Gago já tinha transmitido ao Parlamento a sua disponibilidade para aceitar o convite para a audição, depois de ter sido aprovado o pedido do Bloco de Esquerda (BE), com abstenção do Chega. O requerimento foi aprovado na primeira comissão por maioria, com os votos a favor do PS, PSD, CDS, IL, PAN e BE. O Livre e PCP não estavam presentes no momento da votação. A procuradora-geral da República sugeriu que a audição pudesse ocorrer após a conclusão da elaboração do relatório reportado a 2023, ou seja, depois das férias.
Mas a apresentação do relatório – divulgado no site da PGR a 5 de agosto, três meses depois do suposto – é apenas a versão oficial da razão da titular da investigação criminal ir explicar-se perante os deputados. A verdade é que a ida da PGR ao Parlamento surge depois de várias polémicas que colocaram Lucília Gago no olho do furacão.
Ao ponto de, em julho, pela primeira vez ter quebrado o silêncio ao dar a sua primeira entrevista. Em entrevista à RTP, Lucília Gago assumiu que autorizou o comunicado e que ela própria escreveu o “famoso” parágrafo que levou António Costa apresentar a demissão, revelou que o inquérito do ex-primeiro-ministro ainda decorre, garantiu que Marcelo Rebelo de Sousa não acrescentou “nem uma vírgula” e ainda criticou a postura da ministra da Justiça.
Os deputados querem que a PGR explique as acusações de que existe uma campanha contra o Ministério Público, na sequência da entrevista. “A senhora procuradora virá ao Parlamento apresentar o relatório de atividades anual do Ministério Público”, afirmou na altura o líder parlamentar do CDS, Paulo Núncio, sublinhando que será “uma boa altura para que a procurador se explique perante os deputados”. “A procuradora referiu pessoas que fazem essa campanha contra o Ministério Público e nós gostaríamos de saber a que pessoas se refere”, sublinhou.
Uma entrevista que surgia duas semanas depois da titular da pasta da Justiça ter admitido querer que o próximo procurador-geral da República tenha um perfil de liderança, que seja comunicativo e que “ponha ordem na casa”. Disse ainda que deve ajudar a pôr fim a uma “certa descredibilização” do Ministério Público (MP), sublinhando que o Governo quer iniciar “uma nova era”. Horas depois, na rede social X, insistiu: “o novo PGR terá de ser alguém que reúna as condições técnicas necessárias, mas sobretudo com boa capacidade de liderança, de organização, de gestão de equipas e de comunicação. Deve ser alguém que tenha a capacidade de inaugurar uma nova era na relação com os cidadãos”.
Lucília Gago, que em seis anos nunca concedeu uma única entrevista a um órgão de comunicação social, tem-se escudado em comunicados pontuais através do seu gabinete de imprensa.
Mais ainda quando, quase um ano depois, o ex-líder socialista não foi constituído arguido, o juiz de instrução já veio dizer que não vê relevância criminal nesta investigação e o país tem vindo a assistir à divulgação constantes de escutas telefónicas com conversas de Costa, numa clara violação do segredo de Justiça. Essas mesmas escutas – que chegaram a gravar uma conversa com António Costa a falar sobre a demissão da presidente da TAP passaram por pelo menos 16 juízes – não foram sequer destruídas, segundo explicou a revista Visão. Além disso, durante mais de três anos, o telemóvel do ex-ministro João Galamba esteve a ser escutado e foram ouvidas conversas com Presidentes da Assembleia da República, ministros e autarcas.
Não veio ajudar o Manifesto dos 50, divulgado em abril. O Manifesto dos 50 foi conhecido em finais de abril, com um grupo de 50 personalidades a assinarem o documento em defesa de um “sobressalto cívico” que acabe com a “preocupante inércia” dos agentes políticos relativamente à reforma da Justiça, num apelo ao Presidente da República, Governo e parlamento.
Uma “verdadeira reforma da Justiça”, com a recondução do MP a uma estrutura hierárquica para evitar o que chamam de atual “poder sem controlo” do mesmo, um escrutínio externo e avaliação independente aos tribunais e magistrados. Estas são algumas das ideias e conclusões do manifesto assinado por 50 nomes sonantes da sociedade civil.
Desde então, quer partidos quer a sociedade civil tem alertado para a necessidade da PGR ir dar explicações aos deputados, não só pela violação do segredo de Justiça com a divulgação das escutas como para explicar a falta de resultados, até agora, na investigação que teve consequências políticas relevantes para o país.
O polémico parágrafo do comunicado
O polémico parágrafo do comunicado relativo à Operação Influencer e que levou à demissão de António Costa foi um dos pontos que levou a sociedade civil e política a tecer duras críticas a Lucília Gago. Na entrevista, a procuradora assumiu que escreveu e autorizou o parágrafo e que, por “razões de transparência”, não poderia ter agido de outra forma.
“Esse parágrafo foi concebido conjuntamente entre mim e o gabinete de imprensa. Acontece que em todas as situações, não só essa, em que os temas são particularmente sensíveis, relevantes, há um acompanhamento muito próximo sobre o que é dito. A inclusão desse parágrafo é da minha inteira responsabilidade. Não o escondo. Aliás, já o assumi publicamente”, assumiu Lucília Gago, que acrescentou ainda que também a divulgação do mesmo foi da sua “inteira responsabilidade”.
Para a procuradora não seria admissível a omissão a essa referência – a das suspeitas à intervenção do na altura primeiro-ministro António Costa. “Ninguém iria perceber que devesse ser omitida essa referência. Pelo contrário, teria havido uma tentativa de branquear ou de proteger. Não acho que, por razões de transparência, devesse ser omitida a referência”, acrescentou.
Consciente que o “famoso” parágrafo poderia desencadear uma “reação forte ao seu conteúdo”, Lucília Gago assumiu que a avaliação feita por António Costa é “pessoal” e “política” — e que culminou na sua demissão do cargo de primeiro-ministro — e que não cabe ao Ministério Público fazer.
“O Ministério Público fez o seu trabalho. Com transparência, revelou o que tinha de revelar e não tem mais que se preocupar, não deve fazê-lo, com as consequências que daí advêm para o próprio, se ele quiser optar por determinada solução. Volto a dizer: é uma decisão que tomou, pessoal e politicamente”, disse, dando exemplos de outros casos políticos na Europa.
Sobre a instauração do inquérito, assume que decorreu da “singela circunstância de o Ministério Público estar obrigado, por razões de legalidade, a dar essa sequência”. “A mera alusão à prática de um crime obriga o Ministério Público à instauração de inquérito. Não se pode ter dois pesos e duas medidas. Não se pode dizer que todos os cidadãos são iguais perante a lei e depois querer dar um tratamento diferenciado à figura de um primeiro-ministro. Todos os cidadãos têm de ter um tratamento igual”, notou.
O inquérito a Costa ainda decorre
Depois de explicar que a certidão dos autos da Operação Influencer chegou à Procuradoria-Geral da República (PGR) e foi reencaminhada para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) com a sua “chancela”, Lucília Gago confirmou que o inquérito que visa António Costa ainda decorre. Agora, dois meses depois, ainda muito pouco se sabe desta investigação a não ser que Costa foi ouvido pelo DCIAP.
“Coisa que ainda se está a apurar no inquérito que ainda está pendente. Ou seja, o senhor primeiro-ministro à data foi ouvido nesse inquérito, a seu pedido. Na altura, o magistrado que procedeu à audição entendeu que não havia indícios fortes da prática de ilícitos, logo não o constituiu como arguido. Foi ouvido como testemunha naquele momento. O inquérito ainda corre. Não sei, nem poderia saber, se vai haver encerramento de inquérito a breve trecho, quanto tempo vai demorar essa investigação”, revelou.
A procuradora frisou que não se sente responsável pela demissão do ex-primeiro-ministro. “Não me sinto responsável pela demissão do primeiro-ministro. O primeiro-ministro fez uma avaliação pessoal e política. Poderia ter continuado a exercer as suas funções. Ursula von der Leyen permaneceu em funções. Como aqui ao lado em Espanha, Pedro Sánchez tem a sua mulher alvo de uma investigação. Portanto, não é de modo algum automática”, sublinhou.
Marcelo não acrescentou “nem uma vírgula” ao comunicado
Na entrevista dada à RTP, Lucília Gago garantiu que Marcelo Rebelo de Sousa não teve influência na introdução do parágrafo no comunicado. “Quando fui à Presidência da República, o comunicado estava já preparado, com aquele parágrafo”, disse.
O Chefe de Estado não acrescentou “nem uma vírgula”, assegurou a procuradora-geral da República. “O que acontece é que não podíamos revelar aquele comunicado antes do início da audiência porque ainda estava uma detenção por concretizar”, revelou.
Sobre a acusação feita por Marcelo Rebelo de Sousa, que a acusou de “maquiavelismo” por ter instaurado o inquérito do caso das gémeas no mesmo dia das buscas do caso Influencer, a procuradora assume que as palavras causaram alguma “perplexidade”, “desconforto” e “surpresa” e garante que não existiu um “esforço” para alinhar as diligências.
“Tive de ouvir sucessivas alusões a essas frases. Provocaram até, naquele específico contexto, umas gargalhadas que eram audíveis no registo áudio. Isso criou a ideia de que houve um esforço de serem alinhadas datas para aquelas diligências. Não fui eu que instaurei o inquérito e não sabia dessa data no momento em que fui à Presidência da República. Quis o destino que tivesse assim ocorrido”, disse.
Criticas à ministra da Justiça
A procuradora confessou que ficou “incrédula” e “perplexa” e classificou as declarações de Rita Júdice como “indecifráveis” e “graves”.
“Indecifráveis porque se o diagnóstico está feito, não revelou qual fosse, e também não o disse numa audiência que lhe pedi, que me concedeu e que durou três horas. Se havia qualquer elemento relevante que quisesse apontar, seria uma ocasião ótima para o fazer”, explicou.
Lucília Gago considera também as declarações “graves” por afirmar que o Ministério Público tem uma situação de “falta de liderança”, de “falta de capacidade de comunicação”, e que “tem de arrumar a casa” e haver uma “restituição da confiança”. “Ou seja, dizendo ou querendo dizer implicitamente que nos últimos tempos houve uma perda de confiança imputável ao Ministério Público e à liderança da procuradora-geral. A minha conclusão é a de que estas declarações, que se juntam a muitas outras, imputam ao Ministério Público a exclusiva responsabilidade pelas coisas más que acontecem na Justiça, coisa que eu rejeito em absoluto”, sublinhou.
PGR garante que nunca ponderou demitir-se
Outro dos “pontos-chave” na entrevista dada pela procuradora-geral da República foi se ponderou ou não demitir-se do cargo. Lucília Gago garantiu que não e que está consciente da “campanha orquestrada” para esse efeito.
“Não, nunca ponderei demitir-me. Não coloquei nunca essa questão, porque encaro o meu mandato como sendo um mandato que leva um cunho de rigor, de objetividade e de isenção. Estou perfeitamente consciente de que há uma campanha orquestrada por parte de pessoas que não deviam. Campanha orquestrada na qual se inscrevem um conjunto alargado de pessoas que têm ou tiveram no passado responsabilidades de relevo na vida da nação”, disse.
Desde então, quer partidos quer a sociedade civil têm alertado para a necessidade da procuradora-geral da República dar explicações aos deputados, não só pela violação do segredo de Justiça com a divulgação das escutas, como para explicar a falta de resultados, até agora, na investigação da Operação Influencer que teve consequências políticas relevantes para o país. Na semana passada, Lucília Gago transmitiu ao Parlamento “a disponibilidade para aceitar o convite para a audição que aquela lhe endereçou.
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