Portugal cai a pique no combate à corrupção. Casos Influencer, Tutti-Frutti e Vórtex contribuíram
Portugal desceu no Índice de Perceção da Corrupção 2024. Aumentar o rigor do controlo de património e rendimentos dos políticos é uma das recomendações, mas como se pode mudar o estado das coisas?
Portugal desceu quatro pontos na pontuação do Índice de Perceção da Corrupção 2024 da organização Transparência Internacional. Um dos piores desempenhos entre os países da Europa Ocidental e o pior do país desde que o índice começou a ser publicado, em 2012. Numa escala de 0 a 100, em que 100 é percecionada como muito transparente e 0 com muito corrupto, Portugal ficou posicionado com 57 pontos, abaixo da média da União Europeia, que se situa nos 64. Já em termos globais, o país está na 43.ª classificação, descendo nove posições.
Segundo o estudo, a descida deveu-se à deterioração das avaliações de várias fontes utilizadas no cálculo do índice, sendo que o declínio foi particularmente impulsionado pela perceção de abuso de cargos públicos para benefícios privados e por fragilidades nos mecanismos de integridade pública para evitar esse abuso. À Advocatus, os advogados apontam que a metodologia usada é apenas baseada em perceções de corrupção no setor público e não na medição objetiva da corrupção.
“Não se foca apenas na prevalência dos crimes praticados, mas também na efetiva investigação e julgamento destes, o que nos ajuda a compreender que a falta de celeridade, a proliferação de megaprocessos e os atrasos e adiamentos nos tribunais, motivados pela falta de investimento e recursos humanos, são, por si só, fatores preponderantes para esta perceção. Ao mesmo acresce a notoriedade de certos megaprocessos, com repercussões na vida política nacional – notoriamente, a Operação Influencer, Processo Tutti-Frutti, Processo Vórtex, Processo Babel -, que têm criado a perceção da infiltração da corrupção na esfera pública, ao mais alto nível“, refere a associada da MFA Legal Juliana Vasconcelos Senra.
A advogada alerta que não deixa de ser paradoxal que o aumento da repressão da corrupção através da investigação e julgamento de processos ligados a esse fenómeno tenham o “efeito perverso de gerar um aumento do índice de perceção pública da corrupção no nosso País”.
“Embora não seja positiva a descida destes nove lugares, o sentido de urgência que transmite, e que já vem sendo reconhecido pelo governo, será importante para legitimar a implementação de mudanças que se esperam efetivas, sensatas e duradouras“, acrescenta.
O Índice aponta ainda alguns fatores como a avaliação negativa da eficácia do combate à corrupção e do funcionamento das instituições públicas, as fragilidades na implementação de política anticorrupção e na supervisão do setor público, incluindo lacunas na prevenção de conflitos de interesse e na declaração de bens por políticos, e a avaliação negativa devido a nepotismo, favoritismo político e financiamento partidário pouco transparente.
Mas o que pode ser feito para reverter esta situação que coloca em causa os mecanismos contra a corrupção? Segundo a advogada Juliana Vasconcelos Senra, é essencial que as magistraturas tenham “mais recursos humanos” para prosseguir a investigação e o julgamento destes processos, “o que requer a valorização destas carreiras e a alocação de mais fundos para o sistema de justiça”.
“Um sistema de justiça eficaz, célere e imparcial é um garante do funcionamento das medidas anticorrupção nacionais, mas o mesmo não pode ser atingido à custa da diminuição dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos arguidos. Certamente não se medirá o sucesso de uma política anticorrupção pelo aumento do número de condenações efetivas, sem assegurar que o regime processual, as garantias de recurso e os direitos de todos os intervenientes processuais são protegidos”, acrescenta.
A associada da MFA Legal considera ainda que o enfoque principal deverá ser a “aposta em medidas preventivas”, com o reforço do papel do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) através, por exemplo, do reforço de recursos materiais e humanos. “Tal como anunciado pela Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, devem encetar-se esforços para detetar os riscos de corrupção no setor público e assim legislar de forma informada sobre estes”, disse, sublinhando que o país deve ainda aproveitar as avaliações e recomendações feitas por organismos internacionais dedicados a este fenómeno, como o GRECO, OCDE e Comissão Europeia.
O próprio Índice apresenta algumas recomendações de forma a melhorar a reputação internacional de Portugal no combate à corrupção:
- Fortalecer a implementação da estratégia nacional anticorrupção, “garantindo não apenas a identificação e correção das falhas que persistem até hoje, mas também a definição de metas objetivas e métricas claras que permitam avaliar progressos anuais até 2030, alinhadas com recomendações internacionais”;
- Reforçar as entidades responsáveis pelo combate à corrupção, como a Entidade para a Transparência e o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), com recursos financeiros e autonomia orçamental adequados, “permitindo-lhes atuar de forma eficaz e independente no cumprimento da sua missão”;
- Aprovar uma legislação específica para o lobbying, seguindo as melhores práticas internacionais;
- No setor judicial, reforçar a eficácia da aplicação da lei no combate à corrupção, devendo ser adotado um novo quadro legal e operacional que permita “acelerar investigações e julgamentos de crimes económico-financeiros, eliminando a complexidade dos megaprocessos, combatendo expedientes dilatórios e reduzindo o risco de prescrição por atrasos processuais”;
- Melhorar a transparência na administração pública através, por exemplo, do “desenvolvimento de ferramentas digitais acessíveis à sociedade civil” que permitirá um escrutínio independente e informado sobre o funcionamento das instituições públicas;
- Aumentar o rigor do controlo de património e rendimentos dos políticos, de forma a “evitar conflitos de interesse e garantir uma administração pública íntegra”.
Portugal cai nove posições a nível global
A média global dos 180 países avaliados manteve-se baixa, nos 43 pontos, com mais de dois terços dos países a registarem pontuações abaixo de 50. A Dinamarca (90), a Finlândia (88) e a Singapura (84) ocupam o topo da lista como sendo vistos como os mais transparentes. Já o país com maior perceção de corrupção é o Sudão do Sul, com 8 pontos em 100. No ranking global, Portugal desceu nove posições, para 43.º lugar em 180 países.
Segundo o estudo, o Índice de Perceção da Corrupção 2024 revelou uma “tendência preocupante de estagnação” e “retrocesso global” no combate à corrupção. “Países com democracias frágeis ou regimes autoritários continuam a apresentar as piores classificações, demonstrando a forte correlação entre corrupção, falta de transparência e ausência de instituições democráticas robustas. Alguns países do Golfo Pérsico, como Bahrein, Omã e Arábia Saudita, registaram melhorias significativas, nomeadamente em resultado de implementação de reformas de governança e digitalização de processos públicos”, lê-se.
Com 64 pontos de pontuação média, a região da Europa Ocidental e União Europeia é a mais bem pontuada no ranking. Ainda assim, no ano passado esta região apresentou cerca de um terço dos seus 31 países com reduções de pontuação iguais ou superiores a três, “refletindo uma degradação generalizada das pontuações nos países europeus, pelo segundo ano consecutivo, e onde apenas Islândia, Eslovénia, Luxemburgo e Chipre se destacam pela positiva”. Malta e Eslováquia, com menos cinco pontos, foram os países da região com maior degradação na sua pontuação. Portugal é um dos 5 países com quedas de quatro pontos.
“Registe-se o retrocesso em grandes economias europeias, como França (-4 pontos), Alemanha (-3 pontos), Espanha (-4 pontos) e Itália (-2 pontos), evidenciam falhas nos mecanismos de integridade e aplicação da lei. Salienta-se a existência de desafios na transparência de contratos públicos, onde continuam a surgir casos de favoritismo e corrupção em grandes projetos de infraestrutura. A queda de vários países europeus é também atribuída a desafios na implementação de medidas anticorrupção e na fiscalização de crimes financeiros e empresariais”, referem.
Qual deve ser a prioridade do Governo no combate à corrupção?
O Governo apresentou, assim que tomou posse em abril de 2024, uma agenda anticorrupção que tem vindo a trabalhar. A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, avançou que na próxima quinta-feira o Conselho de Ministros vai aprovar novas medidas para combater a morosidade processual. Mas qual deve ser a prioridade do Executivo?
A advogada Juliana Vasconcelos Senra defende que a transparência das instituições é “essencial” para o combate à corrupção no setor público, sendo assim necessária a transparência do processo legislativo, nomeadamente na legislação em matéria do combate à corrupção. “A prioridade neste momento deve ser a de envolver a sociedade civil na definição destas políticas – numa altura em que se anunciam várias medidas legislativas vindouras e a revisão de normas processuais, deverão ser atendidos os contributos da comunidade jurídica, privilegiando mudanças informadas e garantísticas, e não movidas pelo imediatismo e pela urgência de alterar positivamente a perceção pública”, aponta.
A associada da MFA Legal sublinha ainda que a transparência em processos de contratação pública, quanto às declarações patrimoniais de titulares de cargos públicos e o registo de interações do setor público com entidades privadas, são alguns exemplos de como esse mote pode ser atingido. “O setor público tem de dar o exemplo: se proliferam os estudos que identificam uma permissibilidade de certas condutas de corrupção no setor público e privado, é certo que esta perspetiva top down verterá os seus benefícios também para o setor privado, ao sinalizar uma mudança de paradigma“, acrescenta.
Uma coisa é certa, segundo revela o Índice de Perceção da Corrupção 2024, apesar do reforço do quadro normativo e institucional nos últimos anos, como a criação do MENAC e a adoção da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, Portugal continua a enfrentar desafios estruturais significativos. Entre os desafios apontados estão:
- Falta de clareza e compromisso político: a estratégia anticorrupção carece de metas concretas, convicção e empenho político, resultando numa implementação tardia e ineficaz;
- Baixa eficácia na aplicação das leis anticorrupção: os processos judiciais são excessivamente demorados, frustrando as expectativas dos cidadãos e revelando fragilidades na condução justa e célere da justiça;
- Recursos insuficientes nas entidades de fiscalização: a falta de meios humanos e financeiros compromete a capacidade de monitorização, punição de infrações e atuação eficaz, gerando desconfiança na sociedade quanto à real utilidade dessas instituições;
- Ausência de regulamentação do lobbying: Portugal continua sem um quadro legal específico para a representação de interesses, ao contrário de vários países europeus. Essa lacuna prejudica a transparência, a qualidade do processo legislativo e a confiança na tomada de decisões públicas;
- Deficiências na declaração de património e rendimentos de políticos: a Entidade para a Transparência, criada em 2019, apenas começou a operar efetivamente em 2024, tendo ainda um longo percurso para ganhar a confiança da sociedade civil e de organismos internacionais.
“Portugal tem agora o desafio de demonstrar progressos concretos na implementação de reformas, para evitar que a sua posição continue a deteriorar-se nos próximos anos e para recuperar a confiança internacional na integridade do seu setor público”, revelam.
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