Sexo, mentiras e escutas no terceiro dia de julgamento de Sócrates

O Ministério Público recorreu a escutas ao motorista de Sócrates para tentar demonstrar que o antigo primeiro-ministro mentiu quando afirmou que nunca jantou com o ex-banqueiro Ricardo Salgado.

Mais uma sessão de julgamento da Operação Marquês e mais uma série de críticas apontadas à Justiça (e não só) por parte do principal arguido, José Sócrates, às juízas do coletivo, aos jornalistas e, acima de tudo, ao Ministério Público (MP). O ex-primeiro-ministro socialista – em tempos um “animal feroz” político – assumiu perante o coletivo de juízes que não tem respeito nenhum pelo MP, chegou a perguntar se podia dizer “que as perguntas são idiotas e por isso recusar-se a responder” e disse ainda que os procuradores se limitam a “disfarçar o vazio fingindo que fazem perguntas”.

Na terceira sessão de julgamento do processo Marquês, Sócrates continuou a prestar declarações mas desta vez o Ministério Público também questionou diversas vezes o principal arguido. Esta foi a primeira vez – em sede de julgamento – que os procuradores confrontaram Sócrates com a acusação.

Perante as críticas, o procurador Rui Real pediu ao tribunal para avisar o arguido no sentido de impedir um “bate-boca” no tribunal e “desrespeito” perante os magistrados. E Sócrates insiste: “Se o MP achou que me dirigi ao MP em termos desrespeitosos tem toda a razão. Depois de o que aconteceu esta manhã não tenho qualquer respeito pelo Ministério Público”, defendeu-se.

E o que aconteceu no julgamento, que levou a juíza Susana Seca a pedir desculpas?

O MP optou por revelar (para que todos ouvissem na sala de tribunal) uma escuta de uma conversa entre Henrique Granadeiro e José Sócrates – de julho de 2013 – em que se ouve o último a relatar uma conversa ao jantar com Mário Soares e Almeida Santos em que comentavam as relações sexuais de Salazar. Sócrates ficou ainda mais irritado, acusando o tribunal de produzir um “momento de puro voyeurismo”. O MP considerou pertinente a audição desta escuta – que continha “certos vernáculos” – para se perceber a proximidade da relação entre ambos. A juíza, porém, discordou dessa interpretação: “O tribunal lamenta o incidente ocorrido”.

Sócrates disse então que essa escuta era, nada mais nada menos, que um exercício de voyeurismo. Um exercício “indigno e que envolvia pessoas falecidas, e por um procurador que decide pedir ao tribunal uma coisa destas. Custa-me vê-los assim expostos de uma forma lamentável por um Ministério Público que não tem o direito de usar isto”, atirou.

O ex-primeiro-ministro José Sócrates, à chegada ao Tribunal Central Criminal de Lisboa, no Campus de Justiça.Hugo Amaral/ECO

Momento tenso, parte dois: as escutas que provam uma relação próxima entre Sócrates e Salgado

O Ministério Público recorreu ainda a escutas ao motorista de Sócrates, João Perna, para demonstrar que o antigo primeiro-ministro mentiu quando afirmou que nunca jantou com o ex-banqueiro Ricardo Salgado.

Depois de na sessão do dia anterior terem sido ouvidas escutas de conversas entre Sócrates e Salgado – em que se ouviam vários convites para almoçar ou jantar, que o ex-governante negou que tivessem acontecido, nomeadamente o jantar em casa do antigo presidente do Banco Espírito Santo (BES) –, esta quarta-feira o procurador Rui Real tentou demonstrar que esse jantar aconteceu, reproduzindo duas escutas ao ex-motorista, João Perna, também arguido no processo.

Nessa escuta, João Perna é ouvido a dizer isto: “É mesmo à magnata, sabes quem é o Ricardo Salgado, dono das moradias da Boca do Inferno? O Sócrates foi ali comer e agora tenho de estar aqui a servir de vela até à meia-noite”. No dia a seguir, Perna é apanhado numa outra escuta: “Fui levá-lo a jantar a casa do Ricardo Salgado, só saí de lá à uma da manhã, porra”.

“É verdade que tenha lá estado em casa de Ricardo Salgado?”, pergunta o procurador. “Essa investigação policial parece-me muito interessante, mas vou desiludi-lo, estive até às 22:00 e fui a outra casa no Estoril, não quero dizer qual”, disse Sócrates, acusando o procurador do MP de querer “fazer um vaudeville” com as escutas”. Sócrates reiterou que apenas foi a casa de Ricardo Salgado para lhe entregar um livro e que terá permanecido cerca de meia hora.

Lá fora, já a falar para os jornalistas, no final da sessão, insistia que não tinha estado em casa de Salgado. “Mas então esteve”, questionou uma jornalista. “Não estive! Vocês não sabem fazer as perguntas certas, parecem o Ministério Público!”.

Ainda sobre as relações com Ricardo Salgado, o MP voltou à questão de Sócrates ter ou não o número de telefone do ex-banqueiro e de ter ou não uma relação de proximidade com este e reproduziu uma interceção telefónica do ex-primeiro-ministro com o ex-administrador do BES Internacional e primo de Salgado, José Maria Ricciardi, na qual se refere a Salgado apenas pelo nome próprio, Ricardo, e de quem diz ser “muito amigo”.

A chamada, gravada em 2011, é reproduzida e ouve-se o ex-primeiro-ministro a desejar-lhe um “abraço de boas festas”. “Sou muito vosso amigo e queria dizer-lhe que, nesta época natalícia, pensei em vós”. Sendo o “vós” Ricciardi e Ricardo Salgado.

“Quando uso o termo amigo, é um termo que eu uso coloquialmente no convívio social, mas que não deve ser interpretado na condição de amigo. O Ricardo Salgado não é meu amigo, ele não me ligava nas festas”, justificou-se na sala de audiências.

Ouviram-se ainda escutas com a secretária do antigo primeiro-ministro, na qual Sócrates pede para contactar Salgado, tendo a sua secretária referido um número especial para uso exclusivo pelo ex-governante.

Segundo explicou Sócrates em tribunal, a escuta prova que não tinha o número de telefone de Ricardo Salgado, nem sequer na sua agenda, tendo tido necessidade de voltar a pedi-lo à sua secretária quando mudou de telefone. E explicou ainda que a referência a um número específico para ser usado diretamente por si nos contactos com Salgado significava apenas que era um número reservado, que não devia ser partilhado com terceiros, não se tratando de nenhuma linha direta com o ex-banqueiro.

“Então a sua secretária tinha o telefone?”, pergunta a juíza Susana Seca. “A minha secretária era secretária do primeiro-ministro. E tinha o número de telefone de outras pessoas, e tinha o número de telefone de Ricardo Salgado que a secretária disse para utilizar, mas só se fosse o primeiro-ministro”, respondeu Sócrates.

“Esse facto não se pode retirar. O facto de o primeiro-ministro ter um telefone dedicado a esse contacto”, sublinha a juíza. “Não é isso que está escrito. O que está escrito é que a minha secretária tinha um telefone para utilizar e se o fizer, que seja só o primeiro-ministro a utilizar. O Ricardo Salgado dava número de telefone e pedia use só você. O que eu quero dizer é… oiça eu não tinha contactos”, respondeu, já visivelmente exausto. A sessão acabou por terminar mais de meia hora mais cedo do que o previsto, precisamente porque Sócrates admitiu estar muito cansado.

O julgamento prossegue esta quinta-feira com a continuação das declarações de José Sócrates e os esclarecimentos que o MP e a juíza acharem pertinentes.

Onze anos após a detenção de José Sócrates no aeroporto de Lisboa, arrancou na passada quinta-feira o julgamento da Operação Marquês, que leva a tribunal o ex-primeiro-ministro e mais 20 arguidos e conta com mais de 650 testemunhas.

Estão em causa 117 crimes, incluindo corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, pelos quais serão julgados os 21 arguidos neste processo. Para já, estão marcadas 53 sessões que se estendem até ao final deste ano, devendo no futuro ser feita a marcação das seguintes e, durante este julgamento serão ouvidas 225 testemunhas chamadas pelo Ministério Público e cerca de 20 chamadas pela defesa de cada um dos 21 arguidos.

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