Funicular. O transporte secular e sustentável que ainda faz falta às cidades (mas deve ser modernizado)
O Capital Verde foi saber que papel tem o funicular na mobilidade urbana, após o acidente que vitimou 16 pessoas em Lisboa. Especialistas falam da importância do seu papel, mas também de o modernizar.
Na terça-feira, o funicular que todos os dias transportava passageiros entre os Restauradores e São Pedro de Alcântara, tornou-se o centro das atenções pelas piores razões. Um descarrilamento, cujas causas estão ainda por apurar, ditou a morte de 16 pessoas e fez ainda vários feridos.
Em Lisboa, a Carris gere três funiculares: o ascensor da Glória, no qual ocorreu o acidente desta terça-feira, o do Lavra e o da Bica. No site da empresa lê-se que a capacidade e o ano de entrada em serviço dos dois primeiros coincide: movem-se desde 1914 e permitem 22 passageiros sentados e 20 de pé. O da Bica data de 1926, e conta nove lugares sentados e 14 em pé. Só o ascensor da Glória transportava, anualmente, três milhões de passageiros.

Este transporte histórico mantém, ao dia de hoje, um papel relevante para a vida na cidade. “São muito importantes para a mobilidade urbana porque ajudam a vencer o desnível, e fazem com que as pessoas possam aceder de partes baixas às altas e vice-versa”, explica o engenheiro mecânico Carlos Neves. Mário Vaz, professor Catedrático do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia do Porto e diretor da Unidade de Biomecânica e Saúde no INEGI, realça a utilidade para pessoas idosas, com dificuldades de locomoção ou que transportam pesos.
Caso este transporte não existisse, para uma pessoa se deslocar entre os mesmos dois pontos teria, muito provavelmente, de fazer um trajeto maior, exigindo um sistema de transportes mais denso, ou recorrendo ao transporte individual, desde carros a trotinetas, o que “teria um impacto maior no espaço público”, explica o mesmo.
Em paralelo, Graham Miller, diretor do Westmount Institute for Tourism e professor na Nova School of Business and Economics, destaca que os ascensores “são uma imagem icónica da cidade de Lisboa”, e que ajudam a projetar a ideia de que o país é um sítio bonito e atrativo para visitar, sendo nesse sentido relevantes também para o turismo.
São muito importantes para a mobilidade urbana porque ajudam a vencer o desnível, e fazem com que as pessoas possam aceder de partes baixas às altas e vice-versa.
O ascensor, que neste caso é um funicular porque se move em plano inclinado em vez de na vertical, tem “uma capacidade de integração muito favorável” na paisagem, realça Carlos Neves. Aliado a esta fusão com a paisagem está o valor cultural que o ascensor ganha, ao tornar-se parte da identidade da cidade, acrescenta Mário Vaz.
Por fim, os especialistas consideram o funicular um transporte que não só é sustentável como tem potencial para ser ainda mais amigo do ambiente. Em primeiro lugar, ao tirar viaturas do espaço público, insere-se no conceito de mobilidade urbana sustentável. Depois, um ascensor como o da Glória move-se com o auxílio de eletricidade e o consumo energético é baixo, avalia o engenheiro mecânico. Caso se recorra a eletricidade limpa, as emissões de gases com efeito de estufa na sua atividade podem ser reduzidas a zero.
São uma imagem icónica da cidade de Lisboa.
O professor catedrático da FEUP indica ainda que este sistema tem até o potencial de, em vez de consumir eletricidade da rede, passar a gerá-la. À semelhança dos carros elétricos, quando precisa de acelerar, vai buscar energia. Contudo, quando é necessário gerir o movimento, gera energia, a qual pode ser devolvida à rede.
Tendo em conta as vantagens e função descritas, as alternativas aos funiculares não são muitas. Carlos Neves aponta os teleféricos e Mário Vaz as escadas rolantes, mas realçam que o funicular é de facto uma boa solução para terrenos íngremes.
É necessária a modernização
O princípio de funcionamento de um funicular é o mesmo que o de um elevador, explica Mário Vaz. Está assente na lógica de contrapeso. Num caso como o da Glória, há dois veículos ligados por um cabo e, para que haja o movimento, aquele que se quer a descer tem de pesar mais do que o que sobe. Esse peso adicional, se não acontecer naturalmente pelo número e peso dos passageiros, é dado pela eletricidade ou, no caso emblemático do Bom Jesus de Braga, por água, um sistema secular. Por detrás destas obras esteve, aliás, a mesma pessoa: o arquiteto Raoul Mesnier Ponsard.
Apesar de os princípios aplicados a este transporte continuarem a fazer sentido aos dias de hoje, Vaz e Neves sublinham que há tecnologia complementar que é importante para modernizar estes transportes, assim como uma boa manutenção.
Será que devemos usar funiculares que têm 100 anos? Não faz sentido. Temos de fazer upgrade para os nossos dias.
“Será que devemos usar funiculares que têm 100 anos? Não faz sentido. Temos de fazer upgrade para os nossos dias”, defende o professor catedrático. “A questão não é trocar por outro, é fazer uma atualização tecnológica“, completa o engenheiro Carlos Neves. Até porque as alterações não têm de interferir com o aspeto característico do veículo — podem concentrar-se na parte inferior do veículo.
O professor Mário Vaz indica que sistemas igualmente antigos, dos elétricos do Porto, foram equipados há cerca de 10 anos com um sistema de travão elétrico de emergência. Nos funiculares, é possível acrescentar segurança colocando sensores nas carruagens que detetem uma aceleração excessiva, acionando um sistema automático de travagem, ou carga acima do suportado.
O mesmo indica que o cabo, sendo um elemento central, deve ser “acompanhado com muito cuidado”. Devem ser feitas estimativas do número de ciclos (voltas, no fundo) que aguenta, sendo que estes variam consoante a carga a que é sujeito a cada ciclo — quanto mais carga, mais curta a vida útil do cabo. O que importa não é o número de passageiros: é o seu peso, e até se vão sentados ou de pé, e se se movem dentro do ascensor, o que implica mais carga. Carlos Neves aconselha simulacros para os piores cenários e indica que deve ser feita uma atualização do programa de manutenção em função do uso.
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