Nelson Mandela – o Advogado e o seu Legado
Como nos ensinou, há 60 anos, Nelson Mandela, a advocacia deve ser uma profissão honrada, diz Agostinho Pereira de Miranda.
MANDELA & TAMBO Attorneys, dizia a placa colocada na porta de entrada do velho edifício situado no lado oposto ao do Tribunal Judicial de Joanesburgo. Num gesto que mais parecia de desafio, os mesmos dizeres estavam escritos em letras garrafais na janela do 2º andar do prédio conhecido ainda hoje por Chancellor House. Corria o ano de 1952 e nunca se vira na África do Sul uma sociedade de advogados constituída por juristas negros. Nelson Mandela e Oliver Tambo eram, além de advogados, conhecidos ativistas contra o regime de apartheid instituído em 1948.
A reação das autoridades da maioria branca não se fez esperar. Argumentando que, nos termos da Lei das Áreas por Grupo, a firma não podia ter sede numa área exclusiva para brancos, ordenaram a mudança do escritório para um bairro negro. Mandela e Tambo resistiram ao que consideravam ser uma lei “imoral, injusta e intolerável”. Foi a primeira vitória da Mandela & Tambo.
Nelson Mandela contava apenas 33 anos, mas desde que, 10 anos antes, se mudara para Joanesburgo, já tinha trabalhado em 3 diferentes escritórios de advogados, brancos naturalmente e sempre de pendor progressista. Começara como paquete, mas concluiu o estágio na sociedade Helman & Michel, cujo sócio mais velho, o Dr. Helman, estava há muito envolvido em causas africanas. Já profissionalmente habilitado, Mandela integraria o escritório do advogado Hymie M. Basner, defensor apaixonado dos direitos da minoria e que mais tarde viria a ser líder destacado do ANC (Congresso Nacional Africano).
Por seu lado, Oliver Tambo, bacharel em matemática, também tinha concluído o estágio de advogado na sociedade Konalsky & Tuch. Tambo era, como Mandela, da província do Transkei e haviam sido colegas na universidade, antes de se mandarem para Joanesburgo.
Entre 1952 e 1960, quando Mandela foi preso e Tambo se viu forçado a deixar o país, a Mandela & Tambo foi, nas palavras de Mandela, “um lugar aonde os Africanos poderiam vir para encontrar um ouvinte compreensivo e um aliado competente, um lugar onde não seriam rejeitados ou enganados, um lugar onde podiam realmente sentir-se orgulhosos por serem representados por homens da sua própria cor. Era para isso que eu me tinha tornado advogado”. (Longo Caminho para a Liberdade, 1994, Campo das Letras, pg. 157).
Como todos os grandes advogados, Mandela teve bons exemplos e bons companheiros de profissão. De Mahatma Gandhi a Brahm Fischer, este último prematuramente desaparecido em 1975, Nelson Mandela inspirou-se nos maiores e melhores advogados da África do Sul.
Entre todos há que destacar George Bizos que defendeu Madiba (nome por que era carinhosamente tratado) junto do Supremo Tribunal quando ele se recusou acatar a decisão arbitrária de um juiz branco que, em plena audiência, pusera em causa a sua qualidade de advogado. O mesmo Dr. Bizos, um judeu de origem grega que viria a morrer em 2020, aos 92 anos, representou Mandela no famoso julgamento Rivonia em que terá impedido a condenação à morte do líder do ANC. Trabalhou até ao ano da sua morte, liderando o Legal Resoures Center de Joanesburgo, um organismo dedicado ao direito do interesse público.
Igualmente notável foi a influência do advogado Albert (“Albie”) Sachs, hoje juiz jubilado do Tribunal Constitucional da África do Sul e que já nos anos 80 trabalhara com Tambo e Mandela na conceção da arquitetura constitucional da África do Sul pós-apartheid. Aos 87 anos, conta com 27 doutoramentos honoris causa de outras tantas universidades mundiais, incluindo a Universidade Nova de Lisboa. Sachs, então professor de direito exilado em Moçambique foi, em 1988, vítima de um ataque bombista que lhe ceifou o braço direito e cegou o olho esquerdo. Quando o conheci, em 1999, falava do crime como algo que “enriquecera a sua humanidade”.
Como Albie Sachs, Mandela utilizou as ferramentas da lei para ganhar a vida e, simultaneamente, para defender os princípios e valores em que acreditava. Como alguém já disse, não há qualquer conflito entre Mandela o advogado e Mandela o militante político. O que, por si só, deveria ser uma lição para todos nós. Os advogados aqui referidos exerceram a profissão, não por dinheiro, poder ou estatuto, mas sim para servir a comunidade e o bem público. Disse Mandela em 1962, ao justificar as suas ações num julgamento em que era acusado de traição: “Eu entendo que ao levantar-me contra a injustiça estou a defender a dignidade do que deve ser uma profissão honrada”.
Uma profissão honrada, eis o que a advocacia deve ser. A luta contra a xenofobia, o racismo e outras formas de discriminação e intolerância é dever cívico de todos. Mas, para os advogados, essa luta é também um dever profissional. Como nos ensinou, há 60 anos, Nelson Mandela.
Agostinho Pereira de Miranda
Advogado. Presidente da associação ProPública – Direito e Cidadania
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