Fazer da dificuldade uma oportunidade

  • Ricardo Nunes
  • 15 Junho 2022

Os tempos que hoje atravessamos expuseram a sociedade às fragilidades dos modelos de desenvolvimento adotados, e deixaram evidente que é necessário fazer mais e melhor.

Os últimos meses têm sido marcados por acontecimentos completamente inesperados para uma geração habituada à normalidade do empreendedorismo e do crescimento económico sem fronteiras ou limites.

Em paralelo com uma crise sanitária grave, veio uma crise energética global (primeiro na Europa), seguida de uma invasão militar que potenciou uma grave distorção em toda a cadeia de valor das diferentes commodities (energia, agricultura e metais), com a economia mundial a reagir quase de imediato com uma inflação galopante, obrigando os bancos centrais a aumentarem as taxas de juro. Uma tempestade perfeita e impossível de antecipar.

Os tempos que hoje atravessamos expuseram a sociedade às fragilidades dos modelos de desenvolvimento adotados, e deixaram evidente que é necessário fazer mais e melhor para criar economias mais resilientes. Atravessamos um verdadeiro teste à maturidade do nosso modelo de globalização, que é certo precisará de ajustes e melhorias, mas que continua a ser o único que vai ao encontro dos melhores interesses dos habitantes do nosso planeta. A memória recorda-nos que foi este modelo global que trouxe paz, prosperidade e inovação a um mundo demasiado afetado por crises e guerras anteriores.

O modelo global de desenvolvimento adotado nas últimas décadas, com todos os enormes benefícios que criou, ao retirar uma percentagem relevante de populações da pobreza em países em desenvolvimento, criou também pressões salariais nos países desenvolvidos e acelerou disparidades na distribuição de rendimentos que são cada vez mais notórias. Este modelo mostra a sua fragilidade quando as cadeias de abastecimento são interrompidas, e rapidamente uma crise iniciada num local recôndito pode criar uma crise de maiores proporções no mundo. Depende também em grande medida da estabilidade de um conjunto de países que produzem componentes ou matérias-primas essenciais para a produção de um determinado produto. Fator essencial para os mais diversos setores, da agricultura aos transportes, da produção industrial à construção, a disrupção em curso no setor da energia tem um profundo impacto aos mais diferentes níveis.

Este papel central desempenhado pela energia, que a atual crise destacou, torna evidente que é neste setor que devemos concentrar os nossos maiores esforços. Temos pela frente um enorme desafio geracional, o de conseguir fazer uma transição energética, no ritmo e na forma correta, para que as famílias e as empresas cheguem “vivas” a 2050 (data definida como limite por diferentes estratégias e documentos políticos para atingirmos a neutralidade carbónica).

A crueldade dos factos obrigou a UE a reposicionar-se e reconsiderar o gás natural e o nuclear como energias de transição, com uma taxonomia idêntica às tecnologias renováveis. Provavelmente, se o preço do gás e da eletricidade se mantiver por muito mais tempo nos valores atuais, obrigará a Europa a ajustar outras políticas energéticas, como por exemplo alterar o mercado marginalista ou, na minha opinião preferível, modificar o mercado de licenças de emissão de CO2 (EU ETS) que, como está construído atualmente, pressiona fortemente os preços de tecnologias de produção que continuam a ser essenciais para a segurança de abastecimento.

Por muitos anos será impossível que dependamos exclusivamente do sol, da água e do vento como únicas opções de produção de energia, mas isso não significa que tenhamos de nos resignar.

Devemos continuar a investir no desenvolvimento de melhores soluções, seja no armazenamento (é essencial conseguir quebrar instantaneidade do consumo versus produção renovável), seja em outras alternativas renováveis (biomassa, geotérmica e gases renováveis), seja no desenvolvimento de soluções mais robustas do ponto de vista técnico e financeiro para o hidrogénio verde como substituto parcial do gás natural. Não esquecendo os mercados, que devem ter a liquidez, profundidade e confiança suficientes para que produzam índices que remunerem e assinalem o valor económico correto para todos os agentes no setor. Também a eficiência energética terá um papel fundamental, porque não existe de facto nenhum MW mais verde que um MW não produzido, e consequentemente não consumido.

A dimensão da tarefa de transição energética e da descarbonização da nossa economia é tão grande que não existe uma solução única, mas sim uma matriz de soluções que deve ser quantificada e combinada com critério. Todas as decisões de política energética do futuro devem considerar 4 pilares fundamentais: Sustentabilidade Ambiental, Sustentabilidade Financeira, Independência Energética e Segurança de Abastecimento. É muito importante ter também em conta a especificidade de cada país ou zona económica, pois cada um deles tem uma situação geoestratégica, geográfica e económica particular, o que exigirá soluções diversas rumo ao mesmo objetivo.

No caso português, como já tantas vezes foi defendido na última década, é fundamental o reforço das interligações que permitam ligar a Península Ibérica ao restante continente europeu, permitindo que os Portugueses (e Espanhóis) tenham acesso a um mix energético mais diversificado e eficiente. Para aproximar o continente africano da Europa, deveria igualmente ser reforçada a interconexão da Península Ibérica com África, nomeadamente com Marrocos, dado o seu enorme potencial, seja em energias renováveis, seja em fontes energéticas tradicionais. Convém por exemplo recordar que algumas das maiores centrais fotovoltaicas do mundo, e com maior potencial, estão em Marrocos, ou que África será uma proveniência prioritária de gás natural para a Europa, quando deixarmos de importar gás russo.

Independentemente da evolução que venha a ter a guerra em curso, que todos desejamos que termine rapidamente, as alterações de relacionamento e geoestratégica entre os diferentes países subsistirão muito anos, e contribuirão para uma transformação do paradigma da energia, acelerando a descarbonização que é essencial para o combate climático e fundamental para o nosso futuro coletivo neste planeta a que chamamos casa.

  • Ricardo Nunes
  • Economista, Chief Strategy Officer do OMIP, membro do Observatório de Energia da Sedes

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