Na Suíça, o comboio chega a todo o lado com uma pontualidade digna de um relógio e o serviço público para os passageiros mistura-se com as opções turísticas.
A Suíça é muito mais do que chocolates, queijo, lagos e os Alpes. É considerado um dos melhores países do mundo a pôr comboios a circular, a par do Japão e da Áustria. Para isso contribui a pontualidade… suíça, a alta frequência e variedade de serviços, além de uma política de comunicação com o passageiro que privilegia a transparência mesmo nos piores momentos. Mesmo quando se sai do comboio, a ligação com os autocarros, barcos e outros meios de transporte é feita em perfeita harmonia, conforme o ECO vivenciou durante uma semana.
Começamos na estação de Mattenhof, na periferia da cidade de Lucerna. O comboio está perfeitamente alinhado com a plataforma e é possível sair da composição sem ter de descer qualquer degrau. Quem precisa de apanhar um autocarro não precisa de se esforçar muito: a paragem está mesmo ao lado, com indicação precisa do tempo de espera. Outro pormenor: a passagem de nível é inferior e facilmente acessível para quem está em cadeira de rodas ou é cego. A solução também reduz os impactos para a paisagem.
Nesta linha circulam comboios da Zentralbahn, operador regional de capital privado que presta serviço público na região de Lucerna. Fazem-se comboios locais em que a viagem dura pouca mais de meia hora. Como também são exploradas viagens expresso, que vão até à estação de Interlaken, um dos pontos turísticos mais procurado no país.
A estação de Mattenhoff conta com duas linhas, ambas em bitola métrica – com um metro de largura entre carris –, a mesma utilizada na Linha do Vouga, na região de Aveiro. Mas numa das linhas é possível observar que os carris da bitola métrica estão dentro dos carris da bitola padrão (1,435 m de distância). Esta configuração permite que as empresas industriais junto à linha possam usar o comboio para expedirem as suas encomendas sem precisarem de mudar de comboio. Mesmo que em dezembro tenha sido posto a circular o primeiro comboio de passageiros que pode circular numa linha em bitola métrica e bitola europeia sem ser preciso trocar os rodados.
A partir desta estação seguimos para o centro de Lucerna. Saímos da estação de uma das cidades mais antigas da Suíça sem qualquer dificuldade para apanharmos um autocarro articulado trolley (com catenária) para o museu Verkehrshaus, onde está patente uma exposição sobre os 175 anos dos caminhos-de-ferro no país. Mesmo à entrada, o visitante sabe perfeitamente quanto tempo falta para apanhar o comboio, o autocarro ou o barco. A sensação de previsibilidade facilita a vida de quem quer usar o transporte público.
Do museu também dá para apanhar o barco, que percorre o lago dos Quatro Cantões, como também é conhecido. A embarcação tem dois andares: serve como transporte público regular — é mais rápido do que o carro — como também conta com um restaurante, fazendo com que a companhia naval SGV (Lake Lucerne Navigation Company) não dependa exclusivamente dos subsídios do serviço público. Voltamos aos carris depois da viagem de barco, para apanhar um comboio da estação central de Lucerna até Alpnachstad.
Comboio chega ao topo do monte
A partir desta vila, a 435 metros de altitude, vamos apanhar o comboio do Monte Pilatus, a 2.132 metros de altitude. Mais alto do que os 1.993 metros da Torre, na Serra da Estrela. Estamos na linha de comboio com maior inclinação do mundo e que é praticamente um elevador sobre carris. Para vencer uma pendente tão grande — chega a superar os 42% de inclinação — foi preciso construir uma linha de comboio com cremalheira. As rodas dentadas são fundamentais para que a composição tenha força suficiente para escalar o monte. Subimos num veículo novo, de 2022, fabricado pelos suíços da Stadler. A velocidade máxima varia entre 9 e 12 km/h, caso a pendente seja inferior ou superior a 30%. Na descida,
Parece uma montanha impossível de escalar, mas o comboio supera as curvas com toda a força. A partir de maio de 2023, o Monte Pilatus vai contar apenas com os novos comboios, melhores acessos para pessoas em cadeira de rodas e vai gastar menos 30% de energia, depois de um investimento de 55 milhões de francos suíços (apenas com fundos próprios). A Suíça fez questão de manter este serviço, de 1888, e que ainda utiliza o traçado original. A atração ferroviária transporta 700 mil pessoas por ano, metade das quais estrangeiras.
O comboio também supera barreiras quando queremos chegar ao Monte Rigi. Em maio de 1871, foi a primeira linha com cremalheira posta a funcionar na Europa e que facilitou o acesso aos seus dois hotéis. Na fundação, foram usados comboios que consumiam 450 quilos de carvão até chegar ao topo, numa viagem que demorava mais de uma hora. A corrente elétrica chegou em 1907, muito antes da massificação do automóvel.
O Rigi Railways também presta serviço público em parte do percurso: em plena pandemia, a população local pôde usufruir deste meio de transporte enquanto os turistas não podiam deslocar-se. Aqui também há investimento: 36 milhões de francos suíços para comprar seis novos comboios, que começaram a chegar em abril deste ano e que também foram fabricados no país. Graças a um sistema de regeneração das novas unidades, o comboio que sobe usa a energia devolvida à rede pelo comboio que desce.
Operadores privados convivem com a SBB
Do monte Rigi descemos para a estação ferroviária de Arth-Goldau. Mais uma vez, os meios de transporte estão todos ligados num só sítio: bastou um lanço de escadas para apanharmos um comboio para a estação central de Zurique, operado pela companhia regional Südostbahn (SOB). De Zurique seguimos para Landquart, num comboio operado pela companhia nacional SBB (CFF em francês). De Landquart até Davos seguimos numa automotora da Rhaestich Train (RhB).
Por esta altura poderá haver alguma confusão porque estamos a falar de três companhias a operarem na mesma rede ferroviária dentro de um país como a Suíça. Mas as relações entre si são de perfeita harmonia e sem qualquer problema para o passageiro. Em qualquer estação, sabe-se perfeitamente em que local da plataforma o comboio vai parar, quais as carruagens de primeira e de segunda classe e ainda onde fica o café ou o restaurante sobre carris.
Explicação: os comboios nacionais são operados apenas pela SBB e, através de parcerias, com a SOB e a BLS (companhia do cantão de Berna); os comboios regionais estão a cargo de companhias que pertencem aos cantões – como a SOB, BLS e RhB – “com as quais a SBB mantém uma relação de proximidade”, explica ao ECO fonte oficial dos caminhos-de-ferro suíços. Em suma, as empresas não se “atacam” mutuamente e o viajante tem prioridade.
Transparência para o passageiro
Quando se anda num comboio na Suíça também ninguém se pode queixar de falta de informação. Dentro da estação, sabe-se perfeitamente em que local preciso vai ficar cada carruagem e qual a respetiva classe. Não há confusão em encontrar o local certo, ao contrário do que acontece nas estações ferroviárias portuguesas, onde se apanha um Alfa Pendular e/ou um Intercidades, onde há lugares com reserva e na hora de embarque é preciso procurar pela carruagem certa.
Já no interior, ninguém fica perdido sobre o próximo passo. Os ecrãs junto às portas mostram-nos em que linha se apanha o próximo comboio, autocarro ou mesmo outro meio de transporte, independentemente do operador. Só com tamanha partilha de informação e partilha é que a Suíça consegue vender um passe nacional de transportes. O Swiss Travel Pass ainda dá acesso grátis a mais de 500 museus em todo o país e descontos para entrar nos comboios mais exclusivos.
A comunicação ao passageiro também está presente nos maus momentos. Durante uma das viagens numa linha da RhB , o comboio ficou repentinamente parado numa curva. Em menos de dois minutos, o maquinista comunicou aos altifalantes – embora em alemão – que tinha havido uma avaria na locomotiva, prontamente resolvida. Em conversa com o ECO, um maquinista português na SBB confirmou que há instruções para informar o cliente.
“Temos várias listas de verificação, semelhantes às da aviação, para ver todo o tipo de avarias e de problemas, como falha de luz, acidente com pessoa. Temos de seguir cada passo e não seguir de cabeça. Assim não nos esquecemos de qualquer passo”, refere o “condutor”, que pediu para não ser identificado. Na Suíça também há vários serviços ferroviários realizado sob o regime de agente único, em que apenas há o maquinista a bordo e o comboio segue sem revisor.
“Só há revisores de vez em quando, para controlar os bilhetes. Estando sozinhos, temos de fazer tudo: se houver um problema no comboio, tenho de informar o chefe de circulação, dar informação ao cliente, ligar para uma linha de ajuda e ainda tentar resolver o problema. É um pouco stressante mas uma pessoa habitua-se”, assume o maquinista português.
Resgate em menos de 45 minutos e pessoal de reserva
Com uma rede com mais de 5.300 quilómetros, o sistema ferroviário suíço consegue ser bastante resistente. A SBB, que também gere linhas de comboio, conta com brigadas de intervenção em 16 locais em todo o país. No total, há 16 comboios para resgate e combate a incêndios, seis veículos auxiliares, novo camiões para recarrilamento e 50 veículos rodoviários de emergência.
“Isto permite a qualquer uma das nossas equipas estar no local de um incidente, no máximo, em 45 minutos – normalmente, são mais rápidos”, refere fonte oficial da companhia ferroviária. Em Portugal, se houver uma falha grave de comboio no Algarve, o socorro é enviado a partir de Campolide, a mais de 300 quilómetros de distância – e num percurso que pode levar mais de quatro horas.
Em caso de avaria, a SBB também garante que os passageiros não ficam muito tempo à espera. “Há sempre um maquinista de piquete para o caso de um comboio avariar e ser preciso pôr alguma coisa em marcha”, refere o maquinista português.
O que falta aos comboios?
Depois de uma semana a conviver com a rede ferroviária da Suíça, a única coisa que escasseia a bordo é a internet. Ter um comboio com wi-fi é uma raridade no país. Ainda assim, em todas as estações principais é disponibilizada, gratuitamente, internet sem fios. Para isso, tem de indicar o número de telemóvel ou adicionar o seu perfil em alguma das principais redes sociais.
No regresso a Portugal, a sensação que fica é que muito se pode aprender com a Suíça sobre gestão da rede ferroviária e de comunicação com os passageiros.
O jornalista viajou a convite do Turismo da Suíça.
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Sem barreiras nem muros. O que Portugal pode aprender com os comboios na Suíça?
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