Resistência ucraniana surpreendeu Putin. Rússia mais organizada e aposta na Defesa vão marcar guerra em 2023

  • Joana Abrantes Gomes
  • 3 Janeiro 2023

Apesar do recuo nos últimos meses, espera-se que as tropas russas surjam mais organizadas no terreno em 2023. Da Alemanha ao Japão, vários países vão gastar mais em Defesa.

Cumpridos mais de dez meses do seu início, a guerra na Ucrânia tem sido marcada pelo fator “surpresa”. A leitura que o Presidente russo faz da história da Ucrânia e da Rússia levou-o a assumir que a sua invasão seria rapidamente bem-sucedida. Contudo, não só Moscovo não conseguiu tomar Kiev como também perdeu o controlo sobre cidades ucranianas como Kharkiv e Kherson. Numa altura do conflito marcada pela destruição generalizada das infraestruturas energéticas do país, deixando a população ucraniana sem acesso a luz, gás e água em pleno inverno, ainda não se avista o fim à guerra, pelo que o cenário mais provável é o seu prolongamento. Ao mesmo tempo, aumentam os orçamentos de Defesa e a produção de armas um pouco por todo o mundo.

As ambições de Vladimir Putin relativamente à “operação militar especial” que leva a cabo na Ucrânia desde 24 de fevereiro de 2022 têm saído furadas, com indícios de desorganização e falhas ao nível do comando de guerra. De momento, as forças russas seguem no seu quinto plano operacional e já perderam o controlo de mais de metade do território ucraniano inicialmente ocupado. O Presidente russo chegou a admitir recentemente, numa mensagem em vídeo para as forças dos serviços de segurança nas cidades conquistadas na Ucrânia, que a situação no terreno é “extremamente difícil”.

Putin no discurso em que autoriza o início da “operação militar especial” na Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022EPA/SERGEI ILNITSKY

“No papel, estava tudo a favor da Rússia. É difícil pensar que não conseguiria impor militarmente a sua solução, mas a verdade é que não conseguiu”, observa António José Telo, historiador da Academia Militar, em declarações ao ECO. Além da “surpresa extraordinária” de não o conseguir ao fim de seis meses, aponta que uma “surpresa maior” foi o seu recuo no terreno a partir do sétimo mês do conflito. “Não é um plano que falhou. Até agora, foram cinco planos que falharam, o que é de facto espantoso”, realça o analista de relações internacionais.

Embora a Ucrânia tenha iniciado uma contra ofensiva vitoriosa que, até ao momento, lhe permitiu recuperar cerca de 60% do território inicialmente ocupado pelas forças russas, certo é que mais de seis milhões de ucranianos foram forçados a fugir desde o início da guerra, a economia ucraniana deverá cair cerca de 35% em 2022 segundo estimativas do Banco Mundial e a destruição de infraestruturas energéticas do país ameaça com uma catástrofe humanitária.

O inverno será, por isso, crucial para o desenrolar do conflito. Apesar dos significativos recuos, as forças russas reagruparam-se e os peritos militares não preveem o seu colapso. A recente nomeação do general Sergei Surovikin para o comando de guerra indicia, aliás, que o Kremlin está a reorganizar as forças militares russas para uma nova campanha ofensiva no próximo ano. Ao mesmo tempo, os ataques contra a rede energética e a população civil ucraniana, com recurso a mísseis sem precisão e aos drones iranianos, têm sido “uma forma de ganhar tempo que confirma a barbaridade do modo de fazer a guerra do regime de Putin”, aponta Carlos Gaspar, investigador no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA).

Em 2023, para estar em condições de combater de forma muito mais disciplinada e concentrada do que no primeiro ano de guerra, a estratégia militar de Moscovo passará por, segundo o professor de Relações Internacionais, “reduzir as suas vulnerabilidades no terreno” – depois de, alegadamente, ter perdido mais de cem mil militares em nove meses – e “reconstruir as suas defesas”, na sequência da perda de mais de metade dos territórios ucranianos que conquistou na primeira fase da invasão.

A confirmação dos EUA como o maior arsenal da Ucrânia

Foi precisamente tendo em vista a preparação para a continuação da guerra que o Presidente ucraniano fez uma visita relâmpago aos Estados Unidos no passado dia 21 de dezembro. Naquela que foi a primeira vez que Volodymyr Zelensky deixou o território ucraniano desde a invasão russa, não é em vão que a viagem tenha sido a Washington: afinal, os EUA têm sido o principal apoio ao esforço de guerra da Ucrânia, com 47,8 mil milhões de euros gastos até 20 de novembro (dos quais quase 23 mil milhões em equipamento militar), de acordo com dados do think tank alemão Instituto Kiel para a Economia Mundial.

Discursando no Congresso norte-americano, Zelensky agradeceu o apoio financeiro que os EUA já deram ao seu país e reforçou que está a lutar por valores comuns das democracias contra a “tirania” russa e que não haverá qualquer cedência territorial por parte da Ucrânia em troca de paz. “O vosso dinheiro não é caridade. É um investimento na segurança global e na democracia, que gerimos da forma mais responsável possível”, sustentou. Antes, num encontro na Casa Branca, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, prometeu continuar a apoiar a Ucrânia “pelo tempo que for preciso”.

O apelo ucraniano por mais armas, repetido na visita aos EUA, surtiu efeito e Zelensky levou “boas notícias” para Kiev: um novo pacote norte-americano de ajuda militar, no valor de dois mil milhões de dólares, que inclui o envio do sistema de defesa antiaérea Patriot.

Um dia depois da visita do Presidente ucraniano aos Estados Unidos, Putin disse, de acordo com a agência Interfax, que quer “acabar com a guerra”. “Estamos a esforçar-nos por isso e continuaremos a fazê-lo”, vincou, ressalvando, porém, que o sistema de mísseis Patriot que Washington vai fornecer a Kiev “só vai prolongar o conflito”. Entretanto, a 25 de dezembro, afirmou, em entrevista à televisão estatal, que estava “pronto a negociar com todos os envolvidos sobre soluções aceitáveis”. “Mas isso é com eles. Não somos nós que nos recusamos a negociar, são eles”, afiançou. Putin acusou ainda o Ocidente de ter começado o conflito na Ucrânia em 2014, ao derrubar um Presidente pró-russo nos protestos da Revolução Maidan.

O Presidente ucraniano não recusou negociar com a Rússia e apresentou à cimeira do G20 na Indonésia os termos da Ucrânia para iniciar conversações com a potência agressora”, assinala Carlos Gaspar ao ECO. O investigador do IPRI-NOVA refere-se às dez condições para a paz apresentadas por Volodymyr Zelensky na abertura daquela reunião em novembro, entre elas a retirada total das tropas russas e a restauração do controlo de todo o território ucraniano. Na altura, o chefe de Estado da Ucrânia afirmou que “isso resultará numa cessação real e completa das hostilidades”.

Carlos Gaspar defende, ainda assim, que a cessação das hostilidades pode ser separada de um acordo de paz e da resolução dos problemas territoriais. “É possível negociar primeiro uma cessação das hostilidades, que não implica nenhuma concessão territorial e, depois, um acordo de paz onde as questões territoriais e as garantias de segurança são negociadas”, explica, notando que, “em todo o caso, a Rússia faz pouco caso de acordos, como ficou demonstrado quer na anexação da Crimeia quer, mais tarde, nos acordos de Minsk”.

Nenhum Governo ucraniano pode sobreviver politicamente se aceitar ceder os territórios conquistados depois da invasão de 24 de Fevereiro e se reconhecer uma mudança permanente nas fronteiras entre a Rússia e a Ucrânia imposta pela força das armas.

Carlos Gaspar

Investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI–NOVA)

Prolongamento da guerra alimenta narrativa de Putin

É impossível prever como vai acabar o conflito. A guerra terminar com uma mudança de regime na Rússia, imposta por forças internas, é uma possibilidade, mas improvável de acontecer. Como descreve Vladislav Zubok, um historiador nascido em Moscovo, num ensaio na revista norte-americana Foreign Affairs, a vitória completa da Ucrânia exigiria “uma guerra muito longa”, dependente de “fatores políticos fora do controlo do Ocidente”.

Colocando de lado essa hipótese, António José Telo vê apenas quatro cenários possíveis para o conflito no próximo ano. Dois deles, nas palavras do historiador, “dependem essencialmente do conflito convencional e da primavera” de 2023 e consistem em um dos lados conseguir impor ao outro as suas condições, nomeadamente, “em termos de ocupação do território ucraniano e do estatuto desse território”.

Também pode dar-se “uma escalada do conflito”, caso nem Kiev nem Moscovo consiga impor as suas condições. Nesse caso, a Rússia decide continuar a guerra a uma escala superior, seja por não ter meios de continuar a guerra convencional ou por considerar “que o regime e a própria existência do dirigente estão em risco”.

O quarto cenário apontado por António José Telo consistiria, em termos convencionais, àquele que existia antes de fevereiro de 2022. Ou seja, a Rússia manteria a ocupação da Crimeia e haveria uma zona separatista pró-russa no Donbass. “Havia uma situação de nem guerra nem paz em que se tolerava a ocupação do território sem que isso implicasse uma guerra”, resume o professor catedrático de História na Academia Militar. Para Zubok, este seria o “melhor resultado plausível para a Ucrânia”.

Mas o cenário mais provável em 2023 é o prolongamento da guerra da Ucrânia. Segundo Carlos Gaspar, “não obstante o recrutamento de 300 mil soldados, a Rússia não tem condições para recuperar uma capacidade ofensiva contra as forças armadas ucranianas”, enquanto estas puderem contar com aquilo que apelida de “arsenal da democracia”, designadamente com as armas norte-americanas e europeias.

Vladislav Zubok, que atualmente é professor na London School of Economics, considera “improvável” que as derrotas militares das forças russas possam ser suficientes para fazer o Kremlin iniciar negociações de paz. Porém, vê também riscos “na abordagem atual do Ocidente de simplesmente deixar a guerra continuar”, visto que “sujeita os ucranianos aos horrores contínuos do conflito”, enquanto “o número de mortos e os custos financeiros dos combates continuarão a aumentar”. Ao mesmo tempo, “alimenta a narrativa de Putin de que a Rússia está numa batalha existencial com o Ocidente e encoraja a crença dos nacionalistas russos de que a Rússia deve ou vencer ou perecer”, argumenta.

O que falta, então, é um plano político coerente para pôr fim ao sofrimento e para assegurar aos ucranianos que a Rússia não começará uma nova guerra na primeira oportunidade, mesmo que Putin permaneça no poder. Isso exigirá que os russos aceitem uma derrota, mas também que os ucranianos aceitem que a vitória completa pode ser inalcançável. Mas, para que esses objetivos sejam alcançados, as populações ocidentais terão de aceitar o fim do estatuto de pária da Rússia e o seu ‘regresso à Europa’, dando ao mesmo tempo garantias de segurança credíveis a Kiev.

Vladislav Zubok

Professor de História Internacional na London School of Economics

Gastos militares aumentam, mas problemas de fornecimento podem atrasar produção de armas

As nações com maior poder militar já vinham a aumentar as verbas destinadas à Defesa antes do início da invasão russa da Ucrânia. Mas a guerra deverá fazer disparar os gastos com as forças militares em países europeus que, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, pouco dinheiro alocavam a este setor ou mantinham uma postura de neutralidade. É o caso da Bélgica, Alemanha, Roménia, Itália, Polónia, Noruega, Finlândia e Suécia – este último país voltou até a impor o serviço militar obrigatório –, cujos orçamentos deverão finalmente aproximar-se da meta de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) estabelecida pela NATO.

Neste campo, nenhum país bate os EUA: desde a Segunda Guerra Mundial para cá que têm o maior orçamento de Defesa no mundo. Em 15 de dezembro, o Senado norte-americano (Câmara alta do Congresso) aprovou um orçamento para o Pentágono na ordem dos 858 mil milhões de dólares (cerca de 806 mil milhões de euros à taxa de câmbio atual) para 2023, cerca de 10% mais elevado do que os 778 mil milhões de dólares (quase 732 mil milhões de euros) do ano passado.

“Mesmo nos tempos da Guerra Fria, a economia russa era cerca de um décimo da economia norte-americana e o orçamento de Defesa russo era cerca de um terço ou um quarto do orçamento de Defesa norte-americano. Portanto, esse domínio em termos numéricos e financeiros do orçamento de Defesa dos Estados Unidos é uma realidade desde há muito tempo”, aponta António José Telo.

Mas estes recentes aumentos dos orçamentos para a Defesa não têm só a ver com a guerra na Ucrânia. Exemplo disso é o Japão, que durante décadas manteve o estatuto de Estado pacifista até anunciar, em dezembro, uma revisão da sua política de Defesa que o transformará, brevemente, no terceiro país do mundo com maiores gastos em orçamento militar – apenas superado pelos EUA e pela China, que são também as duas maiores potências mundiais. Face às ameaças vindas da China e da Coreia do Norte, o Governo liderado por Fumio Kishida estabeleceu um aumento do orçamento de Defesa japonês de 1% para 2% do seu PIB nos próximos cinco anos, o que corresponde a um investimento de cerca de 295 mil milhões de euros nesse período.

Deste modo, “tudo indica que a Rússia vai ser ultrapassada no ranking internacional dos orçamentos de Defesa pelo Japão e pela Alemanha”, sendo que “a Índia já tinha ultrapassado a Rússia, em resposta à postura agressiva da China na linha de demarcação entre as duas potências asiáticas nos Himalaias”, nota o investigador Carlos Gaspar.

É preciso ter em conta, contudo, que estamos a falar de realidades económicas muito diferentes. A economia russa, neste momento, anda ao nível da economia espanhola, muito abaixo da economia alemã. (…) Portanto, o esforço russo para elevar o seu orçamento de Defesa é muito maior em termos relativos do que na Alemanha, que também sobe o seu orçamento de Defesa, mas, perante uma economia alemã que é bastante superior à russa, isso em termos relativos implica bastante menos.

António José Telo

Historiador e professor na Academia Militar

Ao mesmo tempo, tanto a invasão russa como a resposta da Ucrânia (e do Ocidente) têm impulsionado a procura de armas. As duas partes envolvidas no conflito estão, aliás, a aumentar a sua produção de armamento e “tudo indica que o mesmo vai acontecer com todos os principais produtores”, adianta Carlos Gaspar ao ECO. Só que a guerra na Ucrânia também está a fazer com que os países produtores enfrentem desafios na aquisição de matérias-primas e componentes necessárias à produção de armas, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês).

Num relatório divulgado em dezembro, o SIPRI, um instituto internacional que se concentra na investigação de conflitos, armamento, controlo de armas e desarmamento, observa que a Rússia é um importante fornecedor de matérias-primas utilizadas na produção de armas, o que “pode dificultar os esforços em curso nos EUA e na Europa para reforçar as suas forças armadas e reabastecer as suas reservas após o envio de munições e outros equipamentos no valor de milhares de milhões de dólares para a Ucrânia”.

Ainda que as empresas russas estejam a aumentar a produção devido ao conflito, o relatório do SIPRI indica que estas têm tido dificuldades no acesso a semicondutores, visto que as sanções impostas pelos países aliados da Ucrânia dificultam a sua importação. Como tal, a Coreia do Norte e o Irão estão a aumentar a sua produção de armas para apoiar Moscovo. “Se as perturbações na cadeia de fornecimento continuarem, pode levar vários anos para que alguns dos principais produtores de armas satisfaçam a nova procura criada pela guerra da Ucrânia”, acrescenta Diego Lopes da Silva, investigador do instituto sediado em Estocolmo.

A maior produção de armas é ainda notória na China, que está a aumentar a sua produção de mísseis balísticos com capacidade nuclear “para consolidar a sua posição como a terceira maior potência nuclear e aumentar a sua capacidade para invadir Taiwan”, e, “no mesmo sentido, os crescentes riscos de guerra no Golfo Pérsico não podem deixar de contribuir para o aumento da produção de armamento”, conclui Carlos Gaspar.

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