Negócios fundados por mulheres geram mais rápido receitas, mas, historicamente, levantam menos investimento. Com os fundos a serem mais cautelosos, qual o impacto na capacidade de angariar capital?
No mesmo ano em que foi batido o recorde de investimento em startups e em empresas tecnológicas na Europa, no valor superior a 100 mil milhões de euros, as mulheres ficaram com uma fatia residual: apenas 1,1%. Se este é o retrato em 2021, o que esperar a curto prazo para os negócios fundados por mulheres quando os mercados estão a dar sinais de travagem e a fechar a torneira do investimento? Com o inverno tech a ganhar cada vez mais força – com grandes tecnológicas a anunciar despedimentos em massa ou a travar contratações –, e a economia mundial a dar sinais de arrefecimento, que capacidade terão as mulheres founders de levantar dinheiro para dar nova energia ao seu negócio? Daniela Seixas, fundadora da Tonic App, plataforma de apoio aos médicos, antecipa. “A falta de liquidez irá agravar a diversidade de captação de financiamento. Os mercados, incluindo de capital de risco, tornar-se-ão mais conservadores.”
Em 2021, liquidez era o que não faltava no mercado. Mais de 100 mil milhões de euros foram injetados pelas sociedades de capital de risco no ecossistema de startups e tecnológicas na Europa. Mas apenas uma ‘gotinha’ foi canalizada para negócios fundados por mulheres: 15 mil milhões de euros. Foi a percentagem mais baixa desde 2015 (0,9%), segundo a plataforma Pitchbook. Quando os negócios tinham os dois géneros como sócios, a percentagem de capital foi de 14,1%.
Em Portugal, nesse ano o cenário não foi muito distinto. As startups portuguesas fundadas por mulheres apenas captaram 51 milhões de euros, segundo a Pitchbook. Ou seja, 3,4% dos 1,5 mil milhões de euros angariados pelas tecnológicas nacionais e uma fatia de 0,34% sobre o capital levantado em toda a Europa.
Avancemos para 2022. A inflação virou de avesso a política monetária e, de repente, os investidores ficaram muito mais cautelosos na hora de apostar em startups. Houve 90 mil milhões de dólares a irem parar a estas empresas no Velho Continente, menos 29 mil milhões do que em igual período de 2021, refere a base de dados Crunchbase. As mulheres, a solo ou com fundadores masculinos, ficaram com 12,3 mil milhões de euros, o que compara com os 15,5 mil milhões do ano anterior. Em proporção, caiu mais o investimento global do que o dedicado às mulheres.
No mercado nacional, as startups com mulheres entre as fundadoras conseguiram 54 milhões de euros no último ano, com a quota feminina a representar apenas 0,9% do montante levantado – o que compara com os 1,2% de 2021. Incluídos os dois géneros entre os criadores destas empresas, a percentagem de capital foi de 12,9%, inferior aos 14,4% de 2021, refere a base de dados Pitchbook. Em termos globais, as startups portuguesas arrecadaram 787 milhões de euros em 2022, menos 34,4% do que no ano anterior, segundo a plataforma DealRoom.
Porém, os estudos apontam que os negócios fundados por mulheres proporcionam um maior retorno no investimento: mais 10% de receitas ao longo do tempo, do que as startups fundadas exclusivamente por homens, segundo um estudo do Boston Consulting Group. O mesmo estudo – datado de 2018 – também refere que o PIB mundial poderia crescer mais 6% por ano se houvesse maior equilíbrio de género no empreendedorismo.
Menor liquidez: qual o impacto?
Mas, por agora, a realidade que se vive é de contenção. “O atual cenário irá ditar uma escolha ainda mais cuidada, curada e estratégica das áreas de investimento”, considera Fabiana Clemente, cofundadora e responsável de dados da startup Ydata. E não está sozinha nessa análise. O mesmo dizem as sociedades de capital de risco. “A falta de liquidez vai afetar a captação de fundos para startups, uma vez que a fasquia está mais alta”, nota Sofia Queiroz, investidora da Mustard Seed Maze (MSM). “Infelizmente, o desequilíbrio de género na captação de investimento ainda é uma realidade”, considera Lurdes Gramaxo, embora, ressalve a presidente da Investors Portugal, o cenário “não esteja a ser agravado” pela menor circulação de capital.
Não é claro que fases de investimento poderão ser afetadas pelo momento de travagem no capital de risco. Lurdes Gramaxo considera que os efeitos incidem, sobretudo, sobre as rondas das séries A, B, C e mais adiante. Já Sofia Queiroz entende que startups a levantarem rondas pre-seed (pré-semente) vão ser mais impactadas, “uma vez que vai haver mais consolidação em winners [projetos vencedores] e, consequentemente, menos distribuição de capital”.
Rita Vilas-Boas rejeita a ideia de que haja menos capital disponível no mercado. O tema, no entender da investidora da Shilling, é outro. “Muitos investidores estão a duplicar os seus investimentos em bons projetos. Acredito, ainda assim, que possa ter havido demasiado dinheiro disponível na última década e que tal tenha estado associado a alguma falta de due diligence [auditoria] e critérios específicos para avaliar empresas de uma forma séria.”
Infelizmente, o desequilíbrio de género na captação de investimento ainda é uma realidade.
Independentemente dos motivos da travagem, face ao apertar da torneira dos investidores é expectável que possa voltar a crescer a aposta no modelo de bootstrapping, em que o crescimento da startup é financiado com receitas próprias em vez da injeção de capital externo. Um modelo de financiamento ao qual as mulheres optam muitas vezes por recorrer não só porque são mais “avessas ao risco”, mas também porque “têm menos acesso a redes de contactos e capital de risco, uma vez que a indústria ainda é dominada por homens”, aponta Sofia Queiroz. As mulheres “começam os negócios com metade do capital dos homens, recorrendo, sobretudo, a poupanças pessoais e instrumentos de dívida”, diz a investidora da MSM. No final, “trazem mais 20% de receitas” do que startups iniciadas só por homens.
A menor fluidez de capital também pode servir como um travão ao surgimento de novas startups com ADN feminino. “Com um mercado mais conservador, mais avesso ao risco e à compra novos produtos, será menor a percentagem de pessoas que irão decidir iniciar a sua startup. As mulheres que, antes destas condições de mercado, já estavam decididas a fundar a sua própria startup assim o permanecerão”, afirma Fabiana Clemente, cofundadora da YData.
Estado deve ser protagonista
Alguns países europeus estão mais envolvidos no combate à desigualdade de género e de acesso ao capital. Baseada em Lugano, na Suíça, a Privilège Ventures tem 20 milhões de francos (valor equivalente em euros) para apostar apenas em startups fundadas por mulheres. “Não estamos aqui apenas para apoiar as mulheres. Os dados mostram que quando elas estão na liderança maior é o retorno do investimento”, justificou Jacqueline Ruedin Rüsch, diretora geral desta capital de risco no momento da apresentação do fundo. Mais robusto é o SistaFund, fundo pan-europeu com 100 milhões de euros prontos para apostar em startups fundadas por mulheres ou equipas com equilíbrio de géneros nas áreas da saúde, software como serviço, consumo e finanças. Os tickets [investimentos] por ronda serão de entre 250 mil a três milhões de euros.
Em Portugal, para já, ainda não há uma iniciativa pública ou privada dedicada ao tema. Os dados oficiais apontam para a existência de mais de 2.150 startups registadas em Portugal no final de 2021, embora não se saiba quantas contam com mulheres na equipa de fundadores. As empreendedoras e investidoras nacionais entendem que o Estado deve assumir maior protagonismo.
Com um mercado mais conservador e mais avesso ao risco e à compra novos produtos, será menor a percentagem de pessoas que decidiram iniciar a sua startup. As mulheres que, antes destas condições de mercado, já estavam decididas a fundar a sua própria startup assim o permanecerão.
“Cabe ao Estado e entidades públicas promoverem iniciativas que contribuam para o investimento na educação e que permitam aos negócios prosperar em momentos mais difíceis”, entende Fabiana Clemente, da Ydata. Para a investidora Sofia Queiroz, o capital público deve proporcionar formas de financiamento não diluidoras para as startups, isto é, sem que os fundadores percam capital na empresa, “principalmente quando as empresas estão numa fase embrionária e necessitam de capital para investigação e desenvolvimento”. A investidora da MSM diz mesmo que o Estado deve incentivar o empreendedorismo feminino através de iniciativas dedicadas. Lurdes Gramaxo admite, por seu lado, que o Estado possa ter programas de apoio pontuais para as startups lidarem com a falta de liquidez.
A intervenção do capital público, contudo, gera algumas dúvidas. “O Estado tem um papel difícil, porque é duplo e que, por vezes, tem conflitos de interesse: proteger a economia de um modo mais abstrato e proteger também os seus cidadãos”, atenta Daniela Seixas. Rita Vilas-Boas também não é apologista da mão reguladora do Estado. E explica porquê. O Estado “como investidor direto e a solo, é, em geral, um mau selecionador de empresas. Os burocratas usam o dinheiro dos contribuintes e, normalmente, perseguem fins políticos”, defende a investidora da Shilling.
Os privados não devem, no entanto, ficar de fora do combate à desigualdade de género. “As entidades privadas têm o dever de agir rapidamente no sentido de se adaptarem ao atual contexto de menor liquidez, para que se tornem mais resilientes e procurem oportunidades num momento de crise”, avalia Daniela Seixas, da Tonic App. Sofia Queiroz considera que as instituições privadas “têm de assegurar que as suas redes de contactos estão a captar negócios criados por mulheres”. E Lurdes Gramaxo entende que os fundos de capital de risco privados devem focar-se no apoio às startups do seu portefólio e “aconselhá-las na estratégia mais indicada”. A líder da Investors Portugal defende ainda que as sociedades de capital de risco “devem impor, nas suas prioridades, objetivos sérios de investimento em empresas fundadas por mulheres”.
“O trabalho a fazer na diversidade das equipas de investimento está aquém do género. Passa muito pela experiência de vida e experiência profissional, contexto académico, social, político. Rodearmo-nos de pessoas iguais a nós é, provavelmente, a maior desvantagem competitiva neste setor”, considera Rita Vilas-Boas.
Sociedades de capital de risco têm de contratar e promoverem mais mulheres a sócias. Sócias mulheres têm mais atenção a oportunidades de negócio criadas por mulheres fundadoras.
Para Sofia Queiroz, no tema de maior paridade de género no ecossistema, há muito também a fazer nas sociedades de capital de risco. “Têm de contratar e promover mais mulheres a sócias. Sócias mulheres têm mais atenção a oportunidades de negócio criadas por mulheres fundadoras.”
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O inverno tech está a chegar. E o investimento das mulheres founders poderá secar?
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