Autocarro anda mais depressa que o comboio em Portugal e põe “travão” à sustentabilidade

Aposta nas autoestradas e abandono da ferrovia penalizam passageiros e empresas no transporte de mercadorias. Compare custos e tempos de viagem nas rotas do Porto, Lisboa e entre capitais de distrito.

Os comboios mais rápidos em Portugal podem andar a 200 ou mesmo 220 km/h. Um autocarro não pode andar a mais de 100 km/h. Apesar da diferença nas velocidades, os autocarros que prestam serviço expresso são mais rápidos do que um comboio de longo curso: em 59 rotas analisadas, o veículo sobre rodas chega mais depressa do que a composição sobre carris em 29 casos, segundo um levantamento feito pelo ECO.

Para esta situação contribui a aposta de Portugal nas autoestradas e o abandono da ferrovia. Na véspera da entrada para a União Europeia, em 1985, havia 196 quilómetros de autoestradas e a rede ferroviária contava com 3.607 quilómetros. Em 2021, havia 3.065 quilómetros para o alcatrão e 2.527 quilómetros para os carris. A opção penalizou os passageiros, as empresas que pretendem transportar mercadorias e ainda está a contribuir para um território “pouco sustentável”.

Os efeitos notam-se sobretudo nas travessias do litoral para o interior do país. Por exemplo, quem entrar num autocarro no Porto e for para a Guarda chega lá em duas horas e 15 minutos, pagando 14,30 euros. Se escolher o comboio, paga mais 12 euros e demora praticamente o dobro do tempo. Se o destino for Castelo Branco, demora três horas e 35 minutos de autocarro e paga 20 euros; tomando o comboio, gasta mais cinco euros, sujeita-se a uma mudança de composição e perde quase uma hora. Não chega o passageiro ter mais espaço no comboio do que no autocarro.

Quando o autocarro demora mais tempo, o preço é normalmente mais baixo. É o que acontece entre o Porto e Lisboa e entre Porto e Beja, por exemplo. O efeito é ainda mais visível desde que abriu, junto à principal estação de comboios da Invicta, o terminal intermodal de Campanhã, de onde partem os autocarros expresso para todo o país.

“A aposta na rodovia contribuiu não só para concentrar a população e a atividade económica no litoral do país, mas também para intensificar o fenómeno de suburbanização nas grandes áreas metropolitanas e ampliar as dinâmicas de expansão urbana dispersa na generalidade do território. Este modelo tem associado um conjunto de custos socioeconómicos e ambientais, de difícil reversão no curto e médio prazos”, assinala Patrícia Coelho de Melo, do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa.

Do ponto de vista da internacionalização da economia, uma ligação ferroviária coerente à rede ibérica e europeia, a partir da região exportadora Braga-Aveiro, poderia ter diminuído a dependência do transporte rodoviário, com diminuição de custos, melhoria da competitividade das empresas e clara vantagem ambiental

José Rio Fernandes

Universidade do Porto

A especialista em Economia dos Transportes do ISEG foi uma das autoras de um estudo sobre o impacto da aposta em autoestradas entre 1981 e 2011. Neste período, o investimento em autoestradas foi quatro vezes superior ao da ferrovia: o alcatrão ficou com 28% de toda a verba das infraestruturas; para os carris restaram 7%, recorda a investigadora. Os fundos comunitários ajudaram a pagar as obras nas décadas de 1980 e de 1990; na década de 2000, entraram em cena as parcerias público-privadas (PPP).

Também as empresas saíram penalizadas por esta opção. “Há mais custos no transporte rodoviário porque é necessário comprar veículos e pagar a respetiva operação e manutenção”, nota António Fernandes de Matos, especialista em desenvolvimento regional da Universidade da Beira Interior (UBI).

A aposta na rodovia contribuiu não só para concentrar população e a atividade económica no litoral do país, mas também para intensificar o fenómeno de suburbanização nas grandes áreas metropolitanas e ampliar as dinâmicas de expansão urbana dispersa na generalidade do território. Este modelo tem associado um conjunto de custos socioeconómicos e ambientais, de difícil reversão no curto e médio prazos

Patrícia Coelho de Melo

Instituto Superior de Economia e Gestão

“Do ponto de vista da internacionalização da economia, uma ligação ferroviária coerente à rede ibérica e europeia, a partir da região exportadora Braga-Aveiro, poderia ter diminuído a dependência do transporte rodoviário, com diminuição de custos, melhoria da competitividade das empresas e clara vantagem ambiental”, acrescenta José Rio Fernandes, geógrafo da Universidade do Porto.

Patrícia Coelho de Melo acrescenta ainda que o transporte de cargas por comboio permite “obter custos unitários económicos e ambientais (por tonelada-quilómetro) substancialmente inferiores aos da rodovia“. Isto deve-se às “fortes economias de escala, menor consumo de energia e menores emissões (especialmente se for elétrico de fontes renováveis)”, o que contribui para a “redução na importação de combustíveis”. O cenário pode ainda gerar um “efeito multiplicador através de outros setores e indústrias (como a logística), bem como na sua interligação com outros interfaces de transporte como sejam os portos”.

Também a partir de Lisboa se notam as dificuldades nas ligações para o interior. Por exemplo, entre Lisboa e a Covilhã o autocarro demora três horas e 15 minutos e custa 16,5 euros. No comboio, pela Linha da Beira Baixa, paga-se mais e demora-se mais 17 minutos. Para Portalegre, a viagem sobre rodas é praticamente uma hora mais rápida (2h45) e o bilhete custa apenas mais 55 cêntimos do que na deslocação pela Linha do Leste.

Parte das linhas da Beira Beixa e do Leste foram modernizadas nos últimos anos. As obras, contudo, serviram sobretudo para repor as normais condições de circulação, em vez de aumentar a velocidade dos comboios, com a construção de variantes, por exemplo.

“O que nos traduzem os eixos onde o comboio é mais fraco que o autocarro é apenas e tão-somente um território dependente do automóvel particular. Um local que não é de todo inclusivo, não assenta em qualquer tipo de mobilidade sustentável, e paradoxalmente, por muita mobilidade que possua, não tem acessibilidade significativa“, sentencia Manuel Tão.

A substituição da ferrovia pela rodovia saldou-se por uma diminuição da qualidade das deslocações, seja em termos de frequência, seja em termos de cobertura do território: as empresas de transportes rodoviários oferecem o serviço numa lógica de mercado e não de serviço público

António Fernandes de Matos

Universidade da Beira Interior

Este especialista em transportes da Universidade do Algarve dá mesmo o exemplo da cidade de Viseu: há mais de três décadas sem comboio, com mais de 100 mil habitantes, mas que fica “pouco inclusiva e competitiva na captação de investimento, emprego e de turismo”. Viseu é uma das três capitais de distrito que atualmente não vê os comboios a passar, em conjunto com Vila Real e com Bragança. Portalegre também está num cenário semelhante porque a estação fica a mais de 10 quilómetros da cidade.

Insistindo na maioria dos centros urbanos do interior, “a substituição da ferrovia pela rodovia saldou-se por uma diminuição da qualidade das deslocações, seja em termos de frequência, seja em termos de cobertura do território: as empresas de transportes rodoviários oferecem o serviço numa lógica de mercado e não de serviço público”, complementa António Fernandes de Matos.

O forte desinvestimento na ferrovia é ainda mais visível quando se procuram viagens entre capitais de distrito no interior do país. Como as linhas estão organizadas em estilo radial e não em rede, as mudanças de comboio são obrigatórias. Entre Évora e Portalegre, demora-se o triplo do tempo de comboio do que autocarro e ainda por cima paga-se mais. Acontece o mesmo entre Castelo Branco e Portalegre, por exemplo.

Tudo seria diferente se a aposta não tivesse sido exclusiva nas autoestradas, entende António Fernandes de Matos. “O investimento na ferrovia teria contribuído para atenuar a desertificação do interior do país ao criar condições para a fixação das populações e da atividade produtiva. Também a atividade turística, sobretudo nas zonas de baixa densidade, seria positivamente afetada pela redução dos custos de transporte e, por exemplo, pela criação de circuitos turísticos ferroviários, valorizando as suas paisagens e património edificado e cultural.”

O Plano Ferroviário Nacional pretende reverter a situação até 2050, ao voltar a colocar o comboio nos distritos onde ele não passa, criar uma verdadeira rede ferroviária e ainda fazer com que a alta velocidade chegue às 10 maiores cidades nacionais. Teme-se, contudo, que o documento seja meramente orientador.

“O documento carece de uma calendarização clara e de um plano diretor financeiro que lhe dê suporte. Tem de se saber quais os montantes que o Estado lhe deverá alocar, via Orçamento do Estado e de fundos europeus, para que, pelo menos parte do que se propõe fazer venha a sair do papel”, avisa Manuel Tão.

A especialista do ISEG defende uma “abordagem integrada entre modos que se podem complementar, em que os serviços rodoviários de passageiros/mercadorias se coordenam com o sistema ferroviário de forma a garantir maior cobertura, acessibilidade e eficiência económica, social e ambiental”.

O modelo assente nas estradas mostrou-se incapaz de o fazer nas deslocações dos passageiros numa expressão significativa, suscetível de aproximar territórios, ao mesmo tempo que privilegiou uma logística desprovida economias de escala, ditando a incapacidade de muitas localizações se evidenciarem opções de investimento empresarial. Para a mudança necessária o tempo é curto. E corre contra nós

Manuel Tão

Universidade do Algarve

O Governo também defende o regresso da aposta nos carris. No entanto, o plano de investimentos Ferrovia 2020 ainda só foi executado em 15% ao fim de quase sete anos e terá benefícios marginais para os passageiros. O Programa Nacional de Investimentos 2030 pretende acelerar os comboios, mas praticamente só têm sido apresentadas as novas linhas Porto-Lisboa e Porto-Vigo, quando o documento também aponta à eletrificação da restante ferroviária nacional até ao final desta década.

Manuel Tão conclui, por isso, que “o modelo assente nas estradas mostrou-se incapaz de o fazer nas deslocações dos passageiros numa expressão significativa, suscetível de aproximar territórios, ao mesmo tempo que privilegiou uma logística desprovida economias de escala, ditando a incapacidade de muitas localizações se evidenciarem opções de investimento empresarial. Para a mudança necessária o tempo é curto. E corre contra nós.”

 

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