“Nómadas digitais são mais uma ameaça a Portugal”

Líder do INESC TEC pede maior planeamento ao Estado e aposta das empresas em produtos com maior valor acrescentado. José Manuel Mendonça lamenta falta de capacidade para atrair investigadores.

É considerado como um dos mentores da ligação entre as empresas e a academia. José Manuel Mendonça licenciou-se em Engenharia Eletrotécnica na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e obteve o doutoramento em Engenharia Eletrotécnica no Imperial College of Science and Technology, no Reino Unido.

Conta ainda com passagem na indústria em Portugal (na EDP) e numa empresa na Suíça. O engenheiro também foi diretor científico do programa UTAustin Portugal, que liga o país a esta universidade do estado do Texas, nos Estados Unidos.

Na primeira entrevista como professor jubilado da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, o presidente do INESC TEC critica o défice de planeamento do Estado e pede que as empresas apostem em produtos com maior valor acrescentado. José Manuel Mendonça critica ainda a dependência do investimento estrangeiro e considera os nómadas digitais como “mais uma ameaça”.

Qual o papel da indústria para começarem a ser pagos melhores salários?

Os melhores salários têm de vir do modelo económico das empresas e da capacidade de terem negócios com maiores margens, maior valor acrescentado e maior capacidade competitiva a nível internacional. Felizmente, já ultrapassámos os 50% do PIB em exportações e a balança tecnológica é positiva. Ainda assim, temos um nível salarial muito modesto. Há uma parte das exportações relacionada com o turismo, em que somos competitivos pela diferenciação no clima, na gastronomia e nas localizações mas que não é uma atividade complexa, de pessoas muito qualificadas, em geral.

Temos de sustentar os 50% de exportações ou mesmo aumentar, que é o que fazem as economias dos países mais pequenos. Para isso, as empresas têm de subir na cadeia de valor dos negócios internacionais e a economia tem de aumentar a complexidade, fazendo produtos mais sofisticados, componentes com eletrónica e materiais com valor maior e que sejam vendidos mais caros para que as empresas possam pagar melhores salários. Com os impostos que as empresas privadas pagam, o Estado vai por arrasto e poderá pagar melhores salários. É necessária mais inovação e mais ciência.

Atualmente, quais são os setores em melhor posição para concretizar esse objetivo?

Além do turismo, que não podemos deitar fora, devemos destacar o têxtil e o vestuário (5 mil milhões de euros), o calçado (2 mil milhões de euros), a metalomecânica (20 mil milhões de euros) e a floresta (4 mil milhões de euros). Se puxarmos para cima estes setores, o resto virá por arrasto. Também temos os nossos unicórnios, algo praticamente desproporcional face à dimensão do país.

Embora apenas um deles esteja sedeado em Portugal.

A culpa é da falta de capital. Os unicórnios foram praticamente todos buscar dinheiro aos Estados Unidos. É um problema de Portugal e da Europa, ligado ao subfinanciamento e à capacidade de atrair capital para as empresas. São questões que temos de ir resolvendo.

Que setores poderão atingir a linha da frente das exportações?

Nos setores que estão na linha da frente temos uma situação heterogénea: há empresas na frente, outras em estado intermédio e algumas sem escala, subcontratadas de outros. As empresas têm de melhorar nas cadeias de valor, de se capitalizar e de criar mais massa crítica.

Estamos muito dependentes de os estrangeiros virem trazer o investimento e o mercado, a troco de vantagens fiscais, melhores condições de acolhimento, licenciamentos especiais e mão-de-obra qualificada barata em comparação com a Alemanha e o centro ou norte da Europa.

Que estratégia Portugal e a Europa têm de seguir para conseguir resolver o problema de financiamento?

Portugal tem um problema de financiamento, com exceção dos projetos de investimento estrangeiro, que disputam um lugar na economia.

Mas acabamos por estar sempre dependentes de alguém, em vez de ser autónomos.

Não tem havido projetos nacionais, embora com honrosas exceções, de grupos privados portugueses. De resto, estamos muito dependentes de os estrangeiros virem trazer o investimento e o mercado, a troco de vantagens fiscais, melhores condições de acolhimento, licenciamentos especiais e mão-de-obra qualificada barata em comparação com a Alemanha e o Centro ou Norte da Europa.

Na crise financeira de 2011, muitos portugueses emigraram e a economia do Centro da Europa beneficiou dos nossos médicos e engenheiros bem qualificados. As empresas estrangeiras rapidamente perceberam que era melhor negócio ainda montar os seus centros de inovação, de investigação e de negócio em Portugal. Vieram empregar licenciados em segmentos e unidades de negócio sofisticadas. Não vieram à procura da mão-de-obra indiferenciada. Isto traz um problema de captação de talento para as empresas de capital português e até mesmo às universidades, pois há áreas de engenharia em que é difícil recrutar bons investigadores por causa da capacidade de atração para o mercado. É o que acontece quando há muito emprego.

José Manuel Mendonça, presidente do INESC TEC e do Conselho Nacional de Ciência.

Isto dificulta a criação de valor acrescentado.

É bom que estas pessoas vão para as empresas. Mas precisamos de mais pessoas formadas para a investigação.

Qual é a estratégia para captar mais pessoas para a carreira científica?

Os numerus clausus dos cursos são um problema de território e ao nível político. O nosso modelo de universidades é maioritariamente público, pelo que para aumentar os numerus clausus é necessário maior financiamento do Estado. Na minha opinião, deve haver uma aposta mais clara nas áreas em que não temos pessoas e onde o país pode subir na cadeia de valor, proporcionando, a prazo, maiores salários para todos.

Há áreas de engenharia em que é difícil recrutar bons investigadores por causa da capacidade de atração para o mercado.

Tanto falta pessoal mais como menos qualificado.

Também temos a questão da imigração. Muitas vezes, por motivos políticos, existem algumas críticas. Mas temos de ter boa imigração.

Pode explicar isso, para não ser mal interpretado?

Temos de ser capazes de acolher, recrutar, integrar e educar estas pessoas. A nossa demografia é uma ameaça, pois há cada vez menos pessoas a irem para a universidade todos os anos. Não podemos ficar de braços cruzados e esperar que sejamos um país de velhos. Mas precisamos também de imigração qualificada e sofisticada.

Esquemas como os nómadas digitais servem para isso?

Os nómadas digitais são mais uma ameaça: têm os custos de Portugal e trabalham, por exemplo, para os Estados Unidos.

Não é um pouco o que acontece também com as empresas que andam a abrir unidades de serviços em Portugal?

É e não é: as empresas de serviços, ao instalarem-se cá, aproveitam-se dos salários baixos mas acabam por ter encargos cá. Com um nómada digital não há encargos: não se paga a renda de um escritório e outros serviços associados. Colocar os centros de serviços é mais do que usar mão-de-obra barata.

Mas não tem havido investimento estrangeiro de indústria pesada.

Apesar dos salários baixos, vamos fugindo disso, porque há outros países ainda mais baratos. São fábricas que competem entre si. A Autoeuropa, se não for competitiva um ou dois anos, é logo mudada. Temos de ter capacidade de nos destacarmos nos serviços, na engenharia, na investigação e nos centros de inovação para que nos coloquem cá mas também temos de continuar a ser competitivos na manufatura. Fazer produtos mais sofisticados em Portugal seria o ideal.

A nossa demografia é uma ameaça, pois há cada vez menos pessoas a irem para a universidade todos os anos. Não podemos ficar de braços cruzados e esperar que sejamos um país de velhos. Mas precisamos também de imigração qualificada e sofisticada.

Em que o INESC TEC tem contribuído para isso? Preside a este instituto desde 2005.

Nascendo de uma universidade, o INESC TEC tem um modelo de interligação com as empresas, com os hospitais e com a administração pública. O nosso lema é a ciência com impacto, a nível económico e em resposta aos principais desafios da sociedade. Isso implica a entrega de conhecimento e de tecnologia às empresas que apostam no mar, na indústria, nas telecomunicações, na energia, na saúde e na floresta. Nas nossas áreas de investigação — na informática, na automação, nos sensores — temos uma certa capacidade multidisciplinar, de pôr uma pessoa de robótica com um especialista em comunicações debaixo de água e ainda uma pessoa que está na área da cibersegurança. Aliamos com outros institutos e empresas para conseguir empurrar ideias inovadoras.

Recentemente, as tecnologias começaram a ser cada vez mais transportáveis entre setores.

É o que acontece cada vez mais.

Sobretudo na energia eólica. Em 1978, quando estive na Dinamarca, a Vestas estava a dar os primeiros passos. Fazia eólicas com 30 kW, umas ventoinhas para se pôr no quintal. Já no doutoramento, no final da década de 1980, conseguiam fazer máquinas de 300 kW. Atualmente, fazem máquinas de 15 MW em offshore, no mar. A empresa esteve quase ir à falência porque o Governo começou a cortar nos subsídios numa altura em que eles eram fundamentais.

Aí o Estado teve um papel importante.

Na Península Ibérica, a energia eólica era quatro vezes mais cara do que o preço médio da energia e a solar era 20 vezes mais cara. Atualmente, as renováveis põem Portugal e Espanha com o preço mais baixo do megawatt-hora da Europa, mais barato do que o gás, o carvão e o nuclear. Isto apenas é possível graças à evolução tecnológica: a energia eólica foi buscar tecnologia dos materiais para as turbinas à eletrónica, aos comboios elétricos, à indústria automóvel, ao espaço e aos aviões. Uma pá de uma turbina eólica hoje em dia é maior do que a asa do maior avião do mundo. Foi preciso ir buscar conhecimento a outros setores que investiram milhares de milhões de euros. A rentabilidade e eficiência dos sistemas chegou ao ponto de já não ser necessária ajuda do Estado, por competir com as soluções fósseis.

Isso dependeu muito da inteligência.

Claro. As eólicas têm tecnologia de controlo sofisticados, como sensores que medem o vento e o controlo das pás. Foi este conhecimento e sofisticação que tornou as renováveis muito competitivas.

Para a autonomia industrial de Portugal vai contribuir mais a exploração de matérias-primas como o lítio ou a inteligência para fazer a transformação?

A nossa inteligência.

No passado, muitos países construíram a riqueza com base na exploração de matérias-primas.

Há países que têm essa riqueza de forma sustentável e barata. A Universidade do Texas tem financiamento num poço de petróleo: basta fazer um buraco de 20 ou 30 metros e já encontram alguma coisa. Não precisam de ir ao pré-sal do mar [camada mais profunda]. Não somos um país intensivo em recursos. Temos que ter mais inteligência do que recursos. O lítio tem problemas de custo e ambientais.

Depois disso, também temos características próprias, como o improviso, a energia e a ousadia, que nos distinguem dos alemães ou dos neerlandeses. Isso conduz-nos, no entanto, à nossa aversão ao planeamento.

Condiciona o nosso desenvolvimento?

Sim. Os melhores grupos e empresas nacionais não têm esse problema. No entanto, não é sistemático haver capacidade de planeamento, no público e no privado, ao contrário do que acontece no norte da Europa.

Temos características próprias, como o improviso, a energia e a ousadia, que nos distinguem dos alemães ou dos neerlandeses. Isso conduz-nos, no entanto, à nossa aversão ao planeamento.

O que o Estado podia aprender com as empresas no planeamento e gestão de projetos?

A primeira coisa que podia aprender é que as empresas têm de apresentar perante os acionistas.

No caso do Estado, são os contribuintes.

O Estado tem mandatos de três ou quatro anos e as empresas têm de apresentar contas todos os trimestres. No entanto, há uma estratégia de médio e longo prazo. São pactos de regime, muito complicados de fazer. O Estado também pode aprender a lidar com o tempo das decisões. O tempo não é relevante para a máquina pública. Estou à espera de uma resposta porque dizem-nos que não há recursos. Numa empresa, o tempo pode fazer perder um negócio e capital. Se for bem ou mal usado, é uma diferença abismal.

O INESC TEC continua a ser uma instituição muito focada em criar protótipos ou cada vez mais há protótipos transformados em negócio?

A nossa capacidade de sermos diferentes implica ter um conhecimento científico avançado, domínio de tecnologias em fases em que as empresas não estão lá e formar jovens curiosos. Se houver empresas no mercado que precisem daquilo que a gente sabe e queiram fazer projetos connosco e sejam sólidas, nós passamos o conhecimento (patentes e saber fazer). Não vamos meter-nos em nenhuma aventura empresarial se no mercado não houver quem o seja capaz de fazer. Por isso a aposta no calçado, por exemplo. Não havendo recetividade e tendo uma patente, tentamos perceber se fora de Portugal alguém está interessado. Recentemente, vendemos uma patente para os Estados Unidos. Agora compete a eles fazer um negócio ruinoso ou multiplicar por um milhão.

Muitas vezes, há investigadores que nos dizem que querem começar uma startup. E nós ajudamos. Já lançámos mais de 20 startups desde o final da década de 1980. Atualmente, temos seis ativas. Quanto às outras, vendemo-las ou fechámo-las. Isso faz parte da dinâmica.

Todos os meses nascem dezenas de protótipos nas universidades e politécnicos portugueses. O que Portugal faz com eles?

Há muito tipo de protótipos. Uns são para teses de mestrado e de doutoramento e servem para demonstrar conceitos e testes, para fazer artigos. Nestes casos, alguém os pega e lhes dá uns passos. Foi o que aconteceu com o meu doutoramento: peguei em algumas ideias, desenvolvi-as e quando as acabei foram continuadas e desenvolvidas por outras pessoas.

Já lançámos mais de 20 startups desde o final da década de 1980. Atualmente, temos seis ativas. Quanto às outras, vendemo-las ou fechámo-las. Isso faz parte da dinâmica.

Pelo menos teve uma continuidade.

É importante que haja uma visão e estratégia contínuas, de médio prazo. Caso contrário, cada projeto tem um resultado, publica-o, faz uma tese, deita aquela cangalhada fora e parte para outro. O processo científico e tecnológico tem dessas coisas. Alguns desses protótipos transformam-se em coisas a sério, dão origem a patentes, vão ser testados em empresas e depois são tomados por empresas de bens de equipamento. Foi o que fizemos para a Efacec, empresas de calçado e muitas outras áreas. Não é o primeiro protótipo que vai resolver o problema.

Há 30 anos, quando comecei como investigador, não havia em muitas áreas estes fornecedores de bens de equipamento e empresas tecnológicas. Íamos diretamente para as fábricas do grupo Amorim, para a Somafic (componentes automóveis)…

Batiam à porta de cada uma das fábricas?

Começava a haver conhecimento e os protótipos iam para a fábrica trabalhar. Quando avariavam, ou nós os consertávamos ou alguém da empresa aprendia. Não havia fornecedores de bens de equipamento. A Efacec, pelo contrário, conseguia pegar nos nossos equipamentos, incluí-los nos seus produtos e vendê-los pelo mundo fora.

Hoje em dia, já trabalhamos com empresas de bens de equipamento. Passámos-lhes a tecnologia e o saber fazer para incorporarem os seus produtos e serviços, aumentando o nível de inovação e depois eles é que vão para o mercado. Nós não queremos ir para o mercado para competir com empresas. Só se for para experimentar soluções porque não há mais ninguém.

Já não há o cenário em que chegava ao gabinete com um telefone e pouco mais.

Tinha um gabinete, uma linha de telefone para o exterior e uma secretária. De resto, caía uma chamada e estava uma hora à espera de se fazer alguma coisa porque ficava no PBX. Agora, a diferença é galáctica.

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