A dificuldade das empresas do setor da água em cobrir os custos da sua atividade com meios próprios está muitas vezes associada a maiores perdas deste recurso. A falta de investimento das redes pesa.
Quase um quarto da água perde-se ainda antes de chegar à torneira dos consumidores portugueses, algures no caminho que percorre, deteta a entidade reguladora. E este problema de desperdício parece estar relacionado com a sustentabilidade económica das entidades gestoras, já que, quando esta não é assegurada, verificam-se maiores perdas, indica a associação ambientalista Zero.
A análise da Zero, a propósito do Dia Mundial da Água, que se assinala esta quarta-feira, tem por base o Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (RASARP), apresentado em fevereiro deste ano, e que apresenta dados relativos ao ano de 2021. A autora deste relatório é a Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR).
Ora, o que a Zero assinala é que, quando o indicador “cobertura de gastos” está abaixo dos 100%, isto é, quando a entidade gestora não consegue cobrir os custos da sua atividade com meios próprios, o indicador “água não faturada” tem, paralelamente, uma avaliação “insatisfatória”, isto em 80% dos municípios.
Em 2021, não foram faturados 234 milhões de metros cúbicos de água, dos quais a esmagadora maioria, 174 milhões (74%), dizem respeito a perdas de água no sistema, lê-se no RASARP. O resto, está relacionado com falhas na medição e outras questões. A Zero calcula que este nível de água não faturada em 2021 representou perdas económicas de cerca de 347 milhões de euros, tendo em conta o preço médio do serviço de abastecimento de água.
No relatório, a entidade reguladora aponta que, em 2021, 197 milhões de metros cúbicos (m3) de água, ou seja 23,9% do total de água que entrou no sistema, foram perdidos. A maior parte, 174 milhões de m3, dizem respeito aos serviços em baixa, isto é, à parte da distribuição. Em alta, a parte do serviço relacionada com a captação e tratamento na origem, perderam-se 23 milhões de m3 – corresponde a 1,5 vezes o volume de armazenamento da albufeira de Odeleite, no Algarve, o que permitiria servir 2,9 milhões de habitantes em Portugal.
Em 2021, 197 milhões de metros cúbicos de água – 23,9% do total de água que entrou no sistema – foram perdidos.
Ao ECO/Capital Verde, o antigo secretário de Estado do Ambiente e professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Joaquim Poças Martins, aponta que “as perdas de água são um reflexo da falta de eficiência das entidades gestora e estão avaliados em mais de 100 milhões de euros por ano [ao setor]“. Além deste valor, acrescenta o responsável, perdem-se mais de 150 a 200 milhões por outras ineficiências, como por exemplo, pela falta de boa gestão, indo assim ao encontro da estimativa avançada pela Zero.
“O setor do abastecimento de água vale 1.500 milhões por ano e é possível geri-lo de maneira a ter ganhos [extra com eficiência] de 200 a 300 milhões de euros”, estima Poças Martins.
Condutas não são reabilitadas como deviam
Uma das justificações para as perdas de água que se verificam atualmente é a falta de manutenção das condutas de abastecimento, o que potencia mais roturas e mais perdas de água. A falta de manutenção decorre, muitas vezes da falta de capacidade de investimento, esta que é dificultada na ausência de sustentabilidade económica.
A entidade reguladora calcula que as condutas de abastecimento de água só estejam a ser reabilitadas ao ritmo de 0,6% ao ano, em média, o que significa que demorariam 180 anos a ser reabilitadas, quando o tempo de vida útil das condutas está estimado nos 50 anos. O suposto era existir uma reabilitação de 2% ao ano, tal como noticiou o Capital Verde.
Joaquim Poças considera que o envelhecimento das infraestruturas, que valem 15 mil milhões de euros, representa “uma bomba-relógio” e por isso sublinha a urgência de estas condutas serem substituídas. “Estas infraestruturas foram feitas depois dos anos 90, com a entrada na União Europeia, estão perto do seu fim de período de vida e precisam de ser substituídas”, alerta.
“A recuperação dos gastos pelas entidades gestoras pela via tarifária e o consequente e significativo aumento das tarifas imputadas aos consumidores, é uma medida que a Zero vê como absolutamente necessária, pese embora tenha de ser aplicada com garantias da existência de tarifários que discriminem positivamente os cidadãos mais desfavorecidos e as entidades da economia social”, defende a associação.
Mas para Joaquim Poças Martins, as entidades gestoras podem alcançar ganhos de eficiência. “A média portuguesa está nos 30%, e temos empresas [com perdas] abaixo os 10%. Mas temos entidades gestoras com perdas de 80%.”. Segundo o responsável, existem 30 entidades gestoras com ganhos elevados e que se situam “ao nível das melhores do mundo” e cerca de 200 que, há mais de 10 anos, “não melhoram e que estão com níveis de eficiência muito baixos”. “Não é razoável“, considera.
É um grande desafio nacional deixar de haver entidades gestoras com mais de 20% de perdas. É mau para o país.
Para o responsável, que geriu os planos de eficiência das entidades gestoras do Porto e de Gaia, “é perfeitamente possível, com boa gestão e profissional, baixar as perdas de água de 50% para 40% em dois meses, num ano para 30% e em dois anos para 20%“, sem recorrer a investimentos.
“Quando as perdas são superiores a 50% há desleixo por parte das entidades gestoras. Não é preciso dinheiro, é preciso uma boa gestão. Uma empresa bem gerida, tem perdas baixas”, aponta o especialista.
E isso, defende, concretiza-se através de estratégias de base, desde logo com a uma sala de comando onde é possível controlar a distribuição da água. A seguir, tem que procurar controlar a quantidade de água que entra nas empresas. “A grande maioria das entidades gestoras no país não tem contadores à entrada das redes que permite saber quanto está a injetar“, explica.
Além disso, é importante reduzir as fugas de água que ocorrem nos espaços públicos.
Por fim, é preciso dar atenção aos consumidores, começando por aqueles que não têm consumos registados, apesar de terem contratos e contadores instalados em casa. “Há entidades que têm muitos clientes parados, ou têm contadores a zeros que não são substituídos”. E, em último caso, “clientes que roubam água” ou que consomem água de poços, prática que confere “alguns riscos para a saúde”, aponta Joaquim Poças Martins.
Fossem implementadas estas medidas, o responsável estima que as entidades gestoras poderiam prestar os serviços de água “cerca de 20% inferior à que praticam“.
Águas de Gaia e EPAL conseguem ganhos relevantes de eficiência
Existem exemplos de resultados positivos que resultaram de um investimento na melhoria dos sistemas de abastecimento. Desde logo, em Vila Nova de Gaia, onde a entidade gestora alocou 5 milhões de euros para concretizar um plano de eficiência hídrica que lhes permitiu poupar mais de dois milhões de metros cúbicos de água em dois anos.
“O plano foi desenhado para ser a cinco anos, e já antecipamos os resultados de toda a totalidade do programa“, revela o Presidente do Conselho de Administração da Águas de Gaia, Miguel Lemos, adiantando que o próximo passo é atingir uma meta de redução de perdas de 10%.
“Hoje temos uma percentagem de água não faturada abaixo dos 18% [28% antes do plano], muito abaixo da média nacional, o que significa que a nível de perdas reais estamos abaixo dos 13%”, explica o responsável.
Para tal, a Águas de Gaia adotou um conjunto de medidas à base da gestão e da tecnologia, entre elas, a substituição de contadores e das condutas mais antigas por nova infraestrutura. A sensorização da rede e a instalação de sistemas à base de inteligência artificial “que nos permitem identificar ruturas”, embora admita, não ser possível prever todas.
A tecnologia também foi uma resposta adotada pela Empresa Portuguesa de Águas Livres (EPAL) que abastece vários concelhos no centro do país, direta ou indiretamente — através das Águas de Lisboa e Vale do Tejo e Águas do Ribatejo, grupos do qual integra.
“Fomos das primeiras empresas que fez uma aposta muito forte no combate às perdas”, explica Marcos Sá, o diretor de comunicação da EPAL, dando conta que a missão começou em 2006, tendo reduzido até à data as perdas de 23% para os 8 a 12%. “Essa tem sido a nossa margem dos últimos anos”, sublinha.
Nesse sentido, através da WONE, um sistema tecnológico desenvolvido pela entidade e que serve para monitorizar e controlar as perdas, a EPAL consegue “identificar as zonas onde ocorrem perdas, e agir de imediato”.
Indústria desperdiça 20% da água que usa
O problema do desperdício não se cinge, contudo, ao caminho até à torneira. De acordo com o Plano Nacional de Gestão de Recursos Hídricos (PNGRH) 2021-2027, estima-se que a indústria portuguesa desperdice 20% da água que utiliza, principalmente devido à falta de monitorização, processos ineficientes e vazamentos, assinala a Eco-Oil, empresa especializada no tratamento de águas contaminadas.
A mesma empresa aconselha a que a indústria responda a este problema de desperdício de água com a reutilização deste recurso. Na indústria, a reutilização da água pode ser feita a partir da utilização de sistemas de tratamento de água, que permitem que a água seja reutilizada várias vezes. Ao mesmo tempo, evita-se a contaminação do solo e das águas do mar, ao evitar o descarte incorreto de águas contaminadas.
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Quase um quarto da água perde-se. É necessário investimento
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