Inadjetivável (ou Carta para um Homem Bom)

  • Diogo Costa Seixas
  • 17 Abril 2023

Onde esperava distância, encontrei afeto e onde esperava condescendência, encontrei uma imensa generosidade. Enquanto o acompanhava, observava a elegância dos gestos e das palavras.

Havia qualquer coisa de profundamente cinematográfico e pictórico nas horas passadas com o Dr. José Manuel Galvão Teles, dignas de serem captadas. Tanto quanto sei, Júlio Pomar fê-lo melhor que ninguém. Outros tantos poderiam inspirar-se. Quando, em 1957, Billy Wilder encarna a escrita de Agatha Christie em Witness for the Prosecution, recorrendo a Marlene Dietrich e Charles Loughton, este último, no papel do notável advogado Sir Wilfrid Robarts, poderia ter fixado alguém que ascendeu ao raro posto de mito. Os segundos iniciais confrontam-nos com a abertura de uma audiência – temos drama, personagens e cenário. Um Tribunal não é assim tão diferente do cinema… No entanto, estes segundos são abruptamente interrompidos pela imagem de um homem, Sir Wilfrid, que regressa do hospital acompanhado por uma enfermeira. Aquele Tribunal é, saberemos mais tarde, preâmbulo e destino. A invalidez meramente aparente. Cedo nos apercebemos da resistência à doença, com discussões inflamadas com a enfermeira; ela que, nos últimos momentos do filme, reconhece não ser possível silenciar a vocação daquele homem. Em ambos, Dr. José Manuel e Sir Wilfrid, realidade e ficção, o amor pela advocacia, a acutilância, o apelo do confronto e da dialética. É certo que Sir Wilfrid foi enganado por Dietrich – Quem é que pode não vacilar?, como escreveu João Bénard da Costa, saudoso amigo do Dr. José Manuel, ao referir-se à atriz – e o homem que defendeu com sucesso era, afinal, culpado. Mas a perfeição não é necessariamente virtude. No caso do Dr. José Manuel, a realidade ultrapassou a ficção e o que dela se conte ficará sempre aquém de como foi. Felizmente, essa história, real e verdadeira, foi testemunhada – e será lembrada – por muitos.

Entrei pela primeira vez no gabinete do Dr. José Manuel convicto que olharia para mim como um estagiário, com muito para aprender, forçosamente levado até ali pelo empurrão de quem lhe tinha pedido ajuda. No entanto, onde esperava distância, encontrei afeto e onde esperava condescendência, encontrei uma imensa generosidade. Enquanto o acompanhava, observava a elegância dos gestos e das palavras, o cuidado com o próximo, a noção de serviço e o notável raciocínio jurídico. Estética, ética e técnica, demasiadas vezes relegadas para figuras distantes ou lendas, reuniam-se com um singular vigor, a que raramente se assiste. No seu caso, nenhuma poderia viver sem a outra, faziam parte de si.

No meio de tantas dificuldades, o Dr. José Manuel encarnou as belíssimas palavras de Jorge de Sena, demonstrando que “[h]ouve sempre infinitas maneiras de prevalecer, / aniquilando mansamente, delicadamente, / por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.” A (aparente) incapacidade da doença tornou-se lugar de vida, resistência e dignidade. As verdadeiras vocações ardem em permanência. Essa chama com muitos nomes – com liberdade e justiça à cabeça… – nunca desapareceu. Quando nos apercebemos que uma peça omitia um facto – omissão que nos favorecia – a reação foi imediata: retifique-se imediatamente. A verdade acima de tudo.

Não pode existir mentira onde reina a poesia. Confesso que não foram raros os momentos em que escapei do gabinete para ler com o Dr. José Manuel – quem só sabe de Direito nem Direito sabe… O Direito – aquele Direito que o Dr. José Manuel transformou em modo único de ser – era intercalado por histórias com Sophia de Mello Breyner Andresen, Nuno Teotónio Pereira, Júlio Pomar, Alexandre O’Neill e tantos outros… Com efeito, não seria possível separar o que na sua vida se uniu. O mais notável foi ter tornado essas figuras admiradas à distância, em pessoas de carne e osso, tão próximas e tangíveis. Recordo-me como nos rimos quando me contou que João Bénard da Costa e Alberto Vaz da Silva discutiram furiosamente uma carta que Agustina Bessa Luís, no seu notável – e ligeiramente perverso – sentido de humor, dirigiu ao primeiro, apesar de ter endereçado o sobrescrito ao segundo.

Estes momentos regressam em lugares inesperados… Recentemente, voltei a vê-lo no cinema (o cinema, sempre o cinema)… Em Um Corpo que Dança, belíssima obra de Marco Martins, observamos a evolução política, social e económica de Portugal, a partir do percurso do Ballet da Gulbenkian. A história da Companhia é intercalada por imagens de arquivo. A certa altura, observa-se a libertação dos presos de Caxias após o 25 de abril e, por breves segundos, o Dr. José Manuel abraçado a Maria da Conceição Moita, a sorrir para a madrugada que esperavam, onde emergiram da noite e do silêncio. Este acaso – ou talvez não… a Providência tem destas coisas… – que se revelou uma belíssima homenagem, ilustrava na perfeição a vida que me deu a conhecer. Sophia – de quem tanto falámos – afirmava-o, pouco depois, em 1975, que toda a cultura real trabalha para a libertação do homem e que a cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. Também eu pude testemunhar que o seu caminho, mesmo quando se deparava com tantas dificuldades, viveu dessa singular comunhão entre arte e política, liberdade e cultura, que se tornou num dos mais belos retratos de uma existência plena.

Assim, apesar da inevitabilidade do tempo e da nossa condição, para quem tanto amou a beleza das coisas, por força da memória, da presença e do exemplo que nos são legados, não desaparece. Como num maravilhoso haiku de Tolentino Mendonça, talvez se possa dizer, Dr. José Manuel,

Agora só resta

tornares-te

o poema

O rasto, esse poema, em que se torna a vida que nos deixou.

  • Diogo Costa Seixas
  • Jurista

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