A dança dos números e a realidade dos factos
Calcula-se que na jurisdição fiscal estão parados cerca de 17 mil milhões de euros. E, sabe-se que o Estado obteve vencimento de causa em 33,3% dos processos, o que não deixa de ser revelador.
Só há justiça num Estado de Direito democrático quando os cidadãos têm ao seu dispor meios de reacção judicial que protejam os seus direitos e tribunais que julguem e decidam as causas que lhe são submetidas. E é habitual afirmar-se, de forma propositadamente pleonástica, que uma justiça só é justa se for célere. Contudo, se levarmos esta ideia à letra, teremos certamente como empreitada a reconstrução do conceito de justiça.
E com esta triste constatação dos atrasos na justiça, existe uma tendência conformista para normalizar um mau serviço ao cidadão. Muito se tem falado dos fenómenos de desjudicialização e de privatização da justiça, com alguns sectores a diabolizarem os meios alternativos de resolução de litígios, com especial entusiasmo quando se trata de arbitragens em matérias administrativas ou tributárias.
Vem esta reflexão a propósito da entrada em vigor do regime excepcional e temporário de incentivo à extinção da instância estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 30/2023, de 5 de Maio, que tem em vista reduzir as pendências judiciais na jurisdição administrativa e fiscal, e que vigorará até ao dia 14 de Setembro de 2026.
Se, à partida, esta medida se assemelha a outras tomadas no passado (normalmente, via Lei do Orçamento de Estado), como forma de colocar as estatísticas em forma, desta vez foi decidido direccionar o combate às pendências para os Tribunais Administrativos e Fiscais. Ora, se para os mais distraídos, que olham para a problemática dos atrasos da justiça de forma macro e em formato powerpoint, isto pode parecer uma boa ideia, tal não passará seguramente numa análise mais atenta.
Como facilmente se apreende, trata-se de uma medida que só beneficia o Estado, que, numa demanda judicial que tramita na jurisdição administrativa ou tributária, está habitualmente do lado passivo.
Desde logo, porque o benefício está atreito à redução das taxas de justiça, o que pesa muito mais aos particulares do que à Administração.
Depois, é importante não perder de vista que a Administração está agarrada ao inegociável princípio da legalidade, pelo que não pode transigir conforme lhe seja mais proveitoso. Com efeito, não se vislumbra como se poderá alterar o sentido de um acto administrativo proferido no âmbito de um acção administrativa em matéria de Urbanismo ou de Função Pública, só para compor um litígio.
Ou como poderá a Autoridade Tributária transigir quando está em causa um acto de liquidação de um imposto ou de uma taxa, quando está impedida de reduzir esses valores.
Mais, calcula-se que na jurisdição fiscal estão parados cerca de 17 mil milhões de euros. E, tomando como bitola o relatório anual do funcionamento da arbitragem tributaria de 2021 do CAAD, sabe-se que o Estado obteve vencimento de causa em 33,3% dos processos, o que não deixa de ser revelador.
Deste modo, o regime em análise está dedicado aos particulares que estão cansados de esperar por uma decisão judicial nos tribunais administrativos e fiscais e que decidem deitar a tolha ao chão, desistindo do pleito, e logrando, pelo menos, recuperar uma pequena parte das custas que o processo exige.
Este tipo de justiça não é justa, nem célere e promove, na prática, a obliteração dos direitos dos particulares. É a forma mais fácil de reduzir pendências judiciais e de trabalhar para as estatísticas, o que é inadmissível num Estado de Direito democrático que deveria respeitar os seus cidadãos.
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