Recorde de aposentações até 2030 pressiona SNS
Para esta década, prevê-se um volume médio de aposentações anuais superior a 450. As regiões de Lisboa e Norte, com maior número de profissionais de saúde, serão as mais afetadas.
Há mais trabalhadores no Serviço Nacional de Saúde do que há dez anos, mas isso não significa melhor prestação de cuidados médicos. Salários dos profissionais perderam competitividade e até 2023 vamos assistir a um número recorde de aposentações: 24% dos médicos inscritos na Ordem dos Médicos tinham mais de 65 anos, em dezembro de 2021. Atrair novos talentos para o Sistema Nacional de Saúde (SNS) é crítico, e competir com as entidades privadas não pode cingir-se à dimensão salário. As conclusões são do relatório “Recursos Humanos em Saúde”, da Nova SBE Health Economics & Management Knowledge Center, divulgado esta terça-feira.
“A reconhecida ‘vaga de aposentações’ obriga, para que não haja interrupção significativa nos serviços disponibilizados à população, a que sejam pensadas diversas vias complementares: recrutamento de quem substitua quem passa à situação de aposentado, a contratação desses aposentados durante algum tempo enquanto se processa o recrutamento de mais longo prazo, alguns serviços poderão ter que repensar as equipas que são usadas e os circuitos pelos quais passam os doentes”, recomenda Pedro Pita Barros, da Nova SBE Health Economics & Management Knowledge Center, e coautor do relatório juntamente com Eduardo Costa, ao ECO Trabalho.
Na parte do recrutamento, o SNS terá de pensar forma diferente de “lançar a pesca de arrastão”, continua o docente, referindo-se à abertura de concursos gerais. “É necessário conhecer melhor cada novo candidato, e procurar oferecer ao leque de condições presentes e de evolução.”
Em 1996, cerca de 11% dos médicos inscritos na Ordem dos Médicos tinham mais de 65 anos. Os dados mais atuais, referentes a dezembro de 2021, colocam esta percentagem nos 24%.
Em 2019, na região de Lisboa, cerca de um em cada quatro médicos tinha mais de 65 anos. A situação é igualmente preocupante na região do Alentejo e Algarve, com um em cada cinco médicos com mais de 65 anos. A região do Norte e Centro, bem como as regiões autónomas, têm, por sua vez, uma proporção de médicos com mais de 65 anos inferior à média nacional.
As estimativas do Serviço Nacional de Saúde apontam para um recorde de aposentações que será verificado na década de 2020 – 2030. Para esta década, prevê-se um volume médio de aposentações anuais superior a 450. As regiões de Lisboa e Norte, com maior número de profissionais de saúde, serão as mais afetadas.
Por outro lado, espera-se que década de 2030 seja marcada por um volume de aposentações anuais substancialmente inferior: em média, menos de 250 aposentações por ano deverão ser verificadas entre 2030 e 2040, antevê o relatório.
A reconhecida ‘vaga de aposentações’ obriga, para que não haja interrupção significativa nos serviços disponibilizados à população, a que sejam pensadas diversas vias complementares: recrutamento de quem substitua quem passa à situação de aposentado, a contratação desses aposentados durante algum tempo enquanto se processa o recrutamento de mais longo prazo, alguns serviços poderão ter que repensar as equipas que são usadas e os circuitos pelos quais passam os doentes.
O problema do envelhecimento não é exclusivo do SNS português. Uma das principais recomendações da Estratégia de Recursos Humanos em Saúde da Comissão Europeia e da Organização Mundial de Saúde prende-se precisamente com a necessidade de campanhas e reformas para atrair e formar profissionais de saúde mais jovens.
E à vaga de aposentações junta-se, ainda, um saldo migratório que continua a ser negativo. Nos últimos anos, o número de pedidos de certificado para trabalhar no estrangeiro para médicos e enfermeiros é muito superior ao número de profissionais estrangeiros a trabalhar em Portugal.
“A hipótese de saldo migratório nulo não parece ter sido verificada. Um saldo migratório negativo e significativo coloca maior pressão na evolução do número de médicos e enfermeiros em Portugal”, alertam os autores.
Há mais profissionais de saúde do que há dez anos. Mas falar em reforço é “abusivo”
Embora os dados indiquem que, desde 2010, o número de profissionais de saúde a trabalhar no SNS tem vindo a aumentar, esse reforço não está traduzir-se num verdadeiro aumento da prestação de cuidados de saúde. O aumento do número de profissionais em trabalho parcial e as alterações nos horários de trabalho anulam os possíveis efeitos resultantes.
Em 2010, o SNS tinha cerca de 130 mil profissionais. Número que aumentou para mais de 150 mil profissionais em 2021. Atualmente, com 33%, os enfermeiros representaram o principal grupo profissional, seguido, com 21%, dos médicos (especialistas e internos), e dos assistentes operacionais e os assistentes técnicos, que representam 21% e 12% da força de trabalho do SNS, respetivamente. Os restantes 13% são referentes a outros grupos profissionais, nomeadamente técnicos superiores, técnicos superiores de saúde, técnicos de diagnóstico e terapêutica, farmacêuticos, informáticos, entre outros.
“Entre 2014 e 2022 não se verificaram alterações substanciais no mix de profissionais de saúde no SNS. Entre dezembro de 2014 e julho de 2022, verificou-se um aumento global de 29% no número de profissionais. Este aumento verificou-se de forma relativamente homogénea entre os principais grupos profissionais. O número de médicos internos e especialistas aumentou 35% e 25% respetivamente. O número de enfermeiros no SNS também aumentou 35%”, pode ler-se no relatório.
Contudo, o reforço global no número de profissionais esconde diversas realidades, quer na composição dos diferentes grupos profissionais, quer na evolução real do número de horas trabalhadas. O aumento do número de profissionais de saúde, por si só, não garante um aumento da prestação de cuidados de saúde.
O efeito decorrente do aumento do número de profissionais pode ser anulado por um aumento do número de profissionais em trabalho parcial, ou por alterações nos horários de trabalho. Parte deste reforço, portanto, é utilizada para compensar a diminuição dos horários de trabalho, sugere o relatório.
“Ao mesmo tempo que houve um aumento do número de profissionais, houve outras alterações, nomeadamente a alteração dos horários de trabalho. E também não é por vezes claro se todas as contratações são em regime de tempo completo. Ambos os aspetos podem fazer com que não haja um tão grande reforço de capacidade como se poderá pensar a partir dos valores em bruto”, explica Pedro Pita Barros.
Ao mesmo tempo que houve um aumento do número de profissionais, houve outras alterações, nomeadamente a alteração dos horários de trabalho. E também não é por vezes claro se todas as contratações são em regime de tempo completo. Ambos os aspetos podem fazer com que não haja um tão grande reforço de capacidade como se poderá pensar a partir dos valores em bruto.
“E, se algumas das contratações corresponderem a redução do uso de contratação de serviços externos, então o efeito em termos de capacidade de resolução de situações é muito menor, pois será sobretudo alteração da relação jurídica associada ao serviço desses profissionais de saúde (sendo, provavelmente, melhor a situação de contratação)”, completa.
Os autores concluem, por isso mesmo, que a interpretação do aumento do número de profissionais como reforço da capacidade do sistema é “abusiva”. “A capacidade assistencial do SNS depende, entre outros fatores, do número de horas trabalhadas – e não do número de profissionais”, pode ler-se no documento.
Salários, uma ‘pedra no sapato’ da atração e retenção de talentos
Antecipar e preparar o impacto que as aposentações terão na gestão de recursos humanos na saúde, contrariar o saldo migratório e atrair novos profissionais para o SNS é absolutamente crítico. E, pelo menos numa fase de transição, poderá ser necessário contratar os profissionais aposentados.
Mas como é que se melhorar a atratividade do setor da saúde em Portugal? Como é que se retêm os profissionais que se formam nas escolas portuguesas? E como é que se atraem os melhores profissionais estrangeiros?
“A resposta simples é ‘encher um cubo’, que tem altura (as condições remuneratórias têm que ser atrativas), largura (têm que ser oferecidas opções diversas, como tempo completo, exclusividade, diferentes tipos de tempo parcial, tempo partilhado, etc.) e profundidade (pensamento de evolução ao longo do tempo futuro, cobrindo momentos de mais ou menos envolvimento, momentos de desenvolvimento profissional e momentos de diferentes equilíbrios vida profissional e vida pessoal)”, defende Pedro Pita Barros.
Mas a fórmula começa logo a mostrar debilidade no fator “altura”. Será que as condições remuneratórias são atrativas o suficiente? “O mercado de trabalho para profissionais de saúde, médicos em particular, é caracterizado por algum nível de competição entre os diferentes prestadores de cuidados de saúde. A possibilidade de trabalhar simultaneamente em mais do que um setor, aliada à elevada procura por profissionais de saúde, coloca uma pressão acrescida sobre o Serviço Nacional de Saúde”, lê-se no relatório.
“Os diferentes prestadores de cuidados de saúde podem utilizar uma combinação de fatores para atrair e reter profissionais de saúde. Um desses fatores prende-se com a remuneração dos profissionais. Os últimos anos têm sido marcados por uma crescente preocupação com as condições remuneratórias dos profissionais de saúde. A comparação com os restantes funcionários públicos, profissões alternativas, e oportunidades de trabalho no setor privado de saúde, têm acentuado o descontentamento entre os profissionais de saúde. Entre muitos outros fatores, tal pode contribuir para a dificuldade de atração e retenção de alguns profissionais de saúde.”
A evolução negativa das remunerações dos profissionais de saúde no SNS contribui para a deterioração da atratividade do SNS. O período de recuperação registado antes da pandemia não foi suficiente para recuperar significativamente as dificuldades sentidas durante a crise financeira e para fazer face à dinâmica recente de preços.
No caso dos médicos, em 2011, registava-se um ganho médio mensal de 3.729 euros. Entre 2011 e 2022, este valor reduziu na ordem dos 5%, para 3.558 euros. Em 2022, a remuneração base representou 76% do ganho médio destes profissionais, acima do registado em 2011 (72%). A redução do ganho médio mensal ao longo do tempo pode ser explicada por diversos efeitos, nomeadamente através do elevado volume de aposentações, que contribui para reduzir o ganho médio, uma vez que os profissionais com maiores níveis de senioridade têm também remunerações mais elevadas.
“Adicionalmente, verifica-se no início da série o efeito da quebra de remunerações associadas à intervenção da troika em 2011/2014. Durante esse período, verificou-se uma redução expressiva do peso dos suplementos no ganho total destes profissionais. Contudo, desde 2016 o peso desses suplementos tem estado a aumentar ligeiramente.”
No caso dos enfermeiros, entre 2011 e 2022 verifica-se um aumento de 14% no ganho médio mensal. Este aumento foi particularmente expressivo nos anos de 2018 e 2019, com taxas de crescimento de cerca de 6%. O peso dos suplementos representa uma menor parte do ganho total, quando comparado com o caso dos médicos. Contudo, desde 2016, verifica-se também um aumento da importância relativa destes suplementos: em 2016, a remuneração base representava 87% do ganho, tendo este valor descido para 82% em 2022.
“A evolução negativa das remunerações dos profissionais de saúde no SNS contribui para a deterioração da atratividade do SNS. O período de recuperação registado antes da pandemia não foi suficiente para recuperar significativamente as dificuldades sentidas durante a crise financeira e para fazer face à dinâmica recente de preços”, mostra o relatório.
“Para além disso, nos últimos anos, os suplementos remuneratórios têm ganho peso na remuneração total dos profissionais. O recurso a estes suplementos (associados a horas extraordinárias, remuneração variável,…) tem sido utilizados para atenuar as perdas de poder de compra associadas à lenta evolução da remuneração base. Apesar disto, face ao trabalhador médio português, os profissionais de saúde registam deteriorações – ou pelo menos, crescimentos inferiores – do seu poder de compra.”
Assim, competir com as entidades privadas, se os salários forem a única dimensão considerada, torna-se extremamente “complicado”, assume o autor. “Mas há outras dimensões do SNS, incluindo o sentido de missão, que podem ser usadas na criação de uma maior atratividade do SNS enquanto empregador. Atualmente, não será a tecnologia de ponta, que cada vez mais aparece primeiro no setor privado“, defende.
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