Tanzânia nos meus ouvidos
Hoje, na viagem de catorze horas de autocarro até Dar es Salaam (que nome delicioso para uma cidade à beira-mar), aproveitei para analisar sem rigor nem vontade, os conteúdos da música em voga.
Música leia-se videoclipe. Porque além de se ouvir até à surdez, a música africana vê-se até à insanidade. Tampões para os ouvidos e venda para os olhos são tão importantes para o viajante de agora, como a bússola era para o viajante de outrora. Só quem aqui anda de autocarro é que percebe realmente como o som pode ter volume!
O chinfrim escolhido para nos entreter cai em dois grandes grupos: a música moral e a amoral, e a grande questão é perceber qual é qual.
Por um lado, os ecos do gueto americano, made in Angola, com os três principais objetos de consumo que qualquer gangster precisa: a casa, o carro e a mulher. Óculos de sol e boné são um requisito fundamental para o protagonista. As mulheres em poses cubistas variam em número, conforme o budget.
Por outro lado, as odes a Deus, que nos ensinam coisas tão importantes como perdoar a um marido que nos arreia com o cinto, como ser bom filho não vendendo droga, que se casarmos com uma prima temos filhos aleijados e a variações sobre a derradeira questão: será que os albinos também são gente?
As imagens têm a importância da pintura medieval: mesmo que não se perceba a letra, o videoclip ilustra bem a história.
As montagens são o derradeiro efeito especial e são tão más que são hipnotizantes. Aliás, ao contrário de tudo o resto no Universo, nestes videoclipes, quanto pior, melhor. E o pior é de uma originalidade sem limites.
Lá fora o espetáculo é outro. Monkey Bay, Nkhata Bay e Cape Mclear parecem já um sonho distante. Do Malawi deixei para a próxima viagem, as cidades de Blantyre e Lilongwe e a incrível reserva de Liwonde. Já aprendi há muito tempo, que se deve arranjar boas desculpas para voltar a um sítio. O Malawi (calorosamente chamado The Warm Heart of Africa) será sempre um prazer.
Entretanto a Tanzânia acontece à minha volta. A paisagem é estonteante. Já não via uma natureza tão invencível desde as Honduras. Com a benesse que aqui o homicídio não é desporto nacional. Na Tanzânia as explosões são verdes. As estradas são bem simpáticas e, não fosse esta música infernal, eu não me importava de fazer disto um futuro deja vu.
Até agora, o único sítio que vi foi uma terriola chamada Mbeya. Mbeya não foi onde Judas perdeu as botas mas foi onde Judas calçou as meias. Pela primeira vez nesta viagem tive frio, dormi com dois edredões e bebi chazinho. De Mbeya levo também a viagem de táxi mais curta da minha vida, quando chegámos a meio da noite a nenhures e o hotel mais próximo era do outro lado da rua. O taxista nem resmungou e cobrou a tarifa máxima, com um Hakuna Matata de recibo.
Consta também que em Mbeya há um asteroide gigantesco. Mas prefiro ficar a imaginá-lo, aqui do assento do autocarro. Pode ser que o veja num destes videoclipes.
A estrada onde vamos atravessa o país de uma ponta à outra. E vem com um bónus. Passa pelo meio do Mikumi National Park. Nós chamamos-lhe o Safari dos pobres. Com um simples bilhete de autocarro e alguma destreza visual, vemos elefantes, antílopes e girafas a passar ao nosso lado. Pareço uma criança a dar gritinhos excitados, enquanto aprendo as minhas primeiras palavras em Swahili. Tembo para elefante (como a marca de papel higiénico), Simba para leão (como eles chamam ao Vico), Twiga para girafa, Tumbili para macaco, Matako Mzuri para grande rabo, rabo? Mas onde é que…?
E então olho para o Sahid (que nos estava a ensinar) e para o resto da malta local, absolutamente vidrados na moça roliça do videoclipe, esparramada em cima de um carro. Para eles, o verdadeiro animal exótico!
Respiro fundo, empurro os tampões até ao cérebro e colo o nariz na janela. Já só faltam nove horas.
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Crónicas africanas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO vai publicar as melhores histórias da viagem, que pode ir acompanhando também aqui e aqui.
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