O sistema está em défice há mais de duas décadas e tem uma dívida implícita no longo prazo que supera 250% do PIB, afirmou o professor Jorge Bravo em entrevista ao ECO.
Em 2015, o relatório de sustentabilidade da Segurança Social, um anexo ao Orçamento de Estado para 2016, apontava para a entrada do sistema no vermelho em 2019. No Orçamento de Estado para 2017, o ponto de rutura do sistema foi revisto para 2023 e, no Orçamento de Estado de 2023, o Governo previa um saldo negativo do sistema Previdencial da Segurança Social em 2030.
No entanto, as últimas projeções do Governo apontam para que os primeiros saldos negativos do sistema Previdencial da Segurança Social só surjam 2033, três anos mais tarde face às anteriores previsões, e que o Fundo de Estabilização Financeiro da Segurança Social (FEFSS) terá um saldo positivo durante pelo menos 30 anos.
Olhando para estas novas projeções, a Segurança Social está longe de estar numa situação problemática. No entanto, os números dizem outra coisa. Revelam, por exemplo, que há várias décadas que o sistema não se autofinancia, como regula a Lei de Bases da Segurança Social, com as contribuições contributivas e quotizações (receita corrente do sistema) a não serem suficientes para garantir as prestações sociais.
Os números mostram também que todos os anos o Estado é obrigado a injetar entre 7 mil milhões e 7,5 mil milhões de euros na Segurança Social para evitar que o sistema entre em rutura, como salienta o Jorge Bravo, professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa – Information Management School (Nova IMS), numa grande entrevista ao ECO partida em três partes – pode ler as outras duas partes aqui e aqui.
Jorge Bravo foi membro externo da Comissão Interministerial da Reforma do Sistema da Segurança Social, entre 2014 e 2015, durante o governo de Pedro Passos Coelho, e atualmente integra o observatório da Segurança Social e Demografia da Sedes, e é consultor científico do INE e de grandes seguradoras nas áreas de gestão de risco e sistema de pensões.
Assumindo-se como independente, Jorge Bravo faz duras críticas ao tratamento dos dados do sistema da Segurança Social por parte do atual Governo, sublinhando a “falta de transparência dos dados” divulgados pelo Executivo e para a “falta de credibilidade das projeções”, em relação à sustentabilidade da Segurança Social apresentadas todos os anos num anexo ao Orçamento do Estado.
Tem constantemente chamado a atenção para a falta de credibilidade dos números apresentados pelo Governo sobre a Segurança Social. Porquê?
Porque não podemos olhar para o sistema da Segurança Social analisando o sistema Previdencial de forma individualizada como faz o Governo, quando desde 1 de janeiro de 2006 que a Caixa Geral de Aposentação (CGA) foi encerrada. Esta mudança fez com que todos os subscritores, todos os funcionários públicos que entraram a partir dessa altura, ou seja, cerca de metade da atual função pública, estejam hoje no sistema geral. No entanto, o Governo só divulga as contas do sistema Previdencial, num anexo ao Orçamento de Estado.
Porque acha que o Governo não divulga as contas do sistema todo mas apenas do Sistema Previdencial?
É uma estratégia que o Governo tem usado há muito tempo de ocultação da realidade do quadro geral da Segurança Social. É muito fácil apresentar números bons da Segurança Social mostrando apenas os números do sistema Previdencial, porque é como se tivesse criado um sistema novo dentro do sistema velho. Ora, num sistema novo de proteção social só tenho praticamente receita, não há despesa. É uma mentira completa do sistema.
O sistema da Segurança Social como um todo está falido?
Os dois sistemas (CGA e Previdencial) funcionam exatamente com os mesmos princípios de adequação seletiva das fontes de financiamento, em que ambos deviam-se autofinanciar com contribuições e quotizações. Mas isso não acontece. Diria que não acontece há 15 ou 20 anos. Se juntarmos todas as prestações contributivas, atualmente deveremos ter um défice corrente que rondará entre os 20% e 25%.
Claramente o sistema da Segurança Social não é sustentável. Juntando a CGA e o regime geral, o sistema tem uma dívida implícita (valor dos ativos que teríamos de ter de reserva para cobrir todos os défices futuros) que facilmente ultrapassaria os 250% do PIB até por volta de 2080. E o Governo não diz isso e fá-lo de forma deliberada.
Porquê?
Porque não quer que se discuta o sistema e assim pode utilizá-lo como instrumentalização política, como se vê com a criação de prestações, com a aplicação ou não aplicação da forma de atualização das pensões em pagamento. O ponto essencial é que um sistema de proteção social moderno, transparente e sustentável tem de garantir, nos termos da lei portuguesa, que o conjunto das prestações contributivas tem de ser autofinanciado com contribuições e quotizações e, se for necessário, com o fundo de estabilização financeira. E isso não acontece em Portugal.
Não atribuo qualquer tipo de credibilidade às projeções do Governo. Elas são instrumentalizadas. Nem sequer são só mal feitas. São cientificamente desprovidas de qualquer fundamento e são manipuladas.
Em 2013 publicou um trabalho sobre a sustentabilidade do sistema da CGA em que chamava a atenção para, já nessa altura, a existência de um défice superior a 200 mil milhões de euros, cerca de 122% do PIB. Desde então não houve nenhuma mudança de fundo do sistema. Acredita que estamos numa situação muito pior?
As conclusões desse trabalho são que o sistema já estava em défice e deveria agravar-se, a menos que o sistema reduzisse benefícios ou corrigisse parâmetros, ou aumentasse fortemente a taxa contributiva. Em 2013, estimámos que a Taxa Social Única (TSU) teria de aumentar progressivamente para cima dos 42% (hoje é de 34,75%, repartido em 11% pelos trabalhadores e 23,75% pelas empresas) para restabelecer o equilíbrio atuarial.
Hoje, o sistema da Segurança Social no seu conjunto (Previdencial e CGA) já recebe de fontes de financiamento não próprias, à margem do princípio de adequação seletiva das fontes de financiamento, do Orçamento de Estado à volta dos 7.500 milhões de euros. Só que isso não aparece nas contas do sistema Previdencial, aparece apenas uma pequena parte.
As últimas projeções do Governo apontam para que o primeiro défice do Sistema Previdencial da Segurança Social ocorra em 2033, três anos mais tarde do que o que estimava em outubro do ano passado. Que valor confere a estas projeções?
Essas projeções não têm a mínima credibilidade. E digo-o com conhecimento de causa. Primeiro porque fiz uma avaliação totalmente autónoma e as conclusões são totalmente diferentes; e segundo porque vi como os cálculos são feitos e manipulados. Este ano assistiu-se a uma evidência muito clara dessa circunstância, quando foi o episódio da não aplicação da lei de indexação das pensões a pagamento.
Dois meses antes, o Governo tinha apresentado com o Orçamento de Estado para 2023 um anexo em que dizia que o sistema era sustentável com o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social até 2055. Passados dois meses vem dizer que não aplica a fórmula de atualização das pensões, com o argumento da sustentabilidade a Segurança Social. E, pouco tempo depois, vem dizer que já era possível.
Isto mostra que as contas estavam mal feitas ou revela mais alguma coisa?
Não atribuo qualquer tipo de credibilidade às projeções do Governo. Elas são instrumentalizadas. Nem sequer são só mal feitas. São cientificamente desprovidas de qualquer fundamento e são manipuladas. Ponto final. Aquele documento é um papel fabricado para veicular uma mensagem sobre o sistema.
(Para ler a segunda parte da entrevista, em que Jorge Bravo sugere algumas medidas para garantir a sustentabilidade da Segurança Social, carregue neste link. E para ler a terceira parte da entrevista, em que o professor da Nova IMS explica que a responsabilidade pela proteção social tem de ser tripartida, carregue neste link.)
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“O sistema da Segurança Social não é sustentável”, alerta Jorge Bravo
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