O futuro da Segurança Social exige uma mudança estrutural do sistema, que passa obrigatoriamente pela revisão da fórmula de cálculo das pensões e do papel do FEFSS, alerta o professor Jorge Bravo.
O sistema da Segurança Social assenta num princípio de repartição, em que as contribuições e as quotizações dos atuais trabalhadores são utilizadas para pagar as pensões do presente. Porém, o sistema dá sinais de estar obsoleto, apresentando constantemente saldos deficitários.
Há vários anos que a OCDE chama a atenção para a necessidade de se realizarem reformas no sistema de pensões, alertando para que ao adiá-las “poderá pôr-se em risco o bem estar dos pensionistas”.
Isso é bem visível nas últimas projeções da Comissão Europeia, publicadas no “The 2021 Ageing Report”, que apontam para que o valor das reformas pagas pelo Estado vá cair para metade entre 2030 e 2050, passando de um valor equivalente a 84,5% do último vencimento em 2025, para 43,5% em 2050.
Nesta segunda parte de uma grande entrevista concedida ao ECO (poderá ler a primeira parte aqui e a terceira aqui), Jorge Bravo, professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa – Information Management School (Nova IMS), sublinha a necessidade para se promover uma reforma estrutural a todo o sistema da Segurança Social.
Segundo Jorge Bravo, que em 2013 fez uma avaliação atuarial do regime de pensões da Caixa Geral de Aposentações e dois anos depois ao sistema Previdencial, refere que essa mudança passa não apenas por rever a fórmula de cálculo das pensões mas também o processo contributivo e a própria utilidade do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) que, segundo Jorge Bravo “nunca cumpriu com o papel para o qual foi criado”.
Em 2007, quando foi publicada a Lei de Bases da Segurança Social, muitos avisaram que as soluções apresentadas só comprariam tempo. O tempo parece estar a dar razão as essas vozes. Estamos verdadeiramente em risco de assistir a uma crise profunda da Segurança Social como atualmente a conhecemos?
Os fatores estruturais que afetam a nossa sustentabilidade e a adequação permanecem e alguns até foram agravados. Um desses elementos é a demografia. Por termos um sistema de repartição em que as gerações ativas financiam as pensões das gerações dependentes, o sistema depende muito do equilíbrio demográfico entre os financiadores e os beneficiários das prestações. Isso significa que, no fundo, o país deveria ter uma estrutura etária mais equilibrada.
Se em 1980 contavam-se 6 trabalhadores para um reformado, em 2007 esse rácio já estava abaixo dos 4 e até 2050 continuará a cair até cerca de 2 trabalhadores por um reformado. O problema da Segurança Social é, acima de tudo, um problema demográfico?
O rácio está a agravar-se e até estamos numa situação do mercado de trabalho anormalmente favorável, se bem que não é com base nesta circunstância que se avalia a sustentabilidade do sistema no longo prazo. Mas a demografia é, com certeza, um dos fatores mais penalizadores do nosso sistema, tanto do ponto de vista da sustentabilidade como da adequação.
Mas a demografia não é o único desafio do sistema.
Não, a demografia não é o único problema. A fórmula como são calculadas as prestações, particularmente as prestações por velhice, invalidez e sobrevivência, não tem uma correspondência atuarial, ou seja, é atribuído um direito que não está suportado por contribuições. E um dos momentos críticos para garantir a sustentabilidade é garantir que a promessa de benefício definido tem correspondência atuarial com a capacidade das gerações atuais e futuras de cumprir com esse benefício. Algo que não acontece hoje.
Não podemos continuar neste paradigma de empurrar o problema com a barriga, desde logo quando o pagamento das prestações sociais está ancorado no Orçamento do Estado.
Isso significa que é imperativo mudar a fórmula de cálculo das pensões?
Sim, é necessário rever a fórmula de cálculo das pensões. Há vários modelos que devem ser considerados. Os franceses e os alemães têm um sistema que funciona por pontos. Os suecos, os noruegueses e os italianos têm um sistema de contas individuais nacionais. Neste caso, a Segurança Social continua a ser um sistema de repartição, mas em que há uma individualização, no sentido de que há registos numa conta-corrente de todo o esforço contributivo e, no momento da reforma, é convertido esse esforço contributivo como se fosse uma conta de aforro virtual numa pensão por velhice, mantendo a neutralidade atuarial. Ou seja, cada um vai receber exatamente aquilo que contribuiu ao longo da vida, capitalizado, de forma individual.
Este é o sistema que deveríamos adotar?
Este sistema tem enormes vantagens do ponto de vista da transparência porque permite automaticamente saber em cada momento quais são as responsabilidades já acumuladas: basta somar as contas individuais de todos. Permite também calcular automaticamente a pensão no momento da velhice, tendo em conta a esperança média de vida à idade de reforma. Ou seja: garante transparência, equilíbrio e neutralidade atuarial, e garante que o sistema não acumula dívida para as gerações futuras.
Garante a tão almejada equidade intergeracional?
Exato. Incorpora princípios de equidade intergeracional, algo que não temos atualmente. Além disso, tem um conjunto de incentivos muito fortes a acabar com uma coisa muito significativa como é a economia informal, que acontece muito em Portugal. Neste sistema, como as prestações são estreitamente ligadas ao esforço contributivo, aquele trabalhador que estava a equacionar declarar metade daquilo que recebe talvez pense duas vezes.
Em 2013, num trabalho focado na sustentabilidade da CGA, estimava que a Taxa Social Única (TSU) teria de aumentar progressivamente até aos 42% para restabelecer o equilíbrio atuarial. É fundamental aumentar a TSU para garantir a sustentabilidade do sistema?
Temos já uma carga tributária e fiscal das mais elevadas da Europa. Aumentar esse esforço condicionaria ainda mais a competitividade das empresas e do próprio mercado de trabalho.
Em vez de aliviar a carga fiscal sobre as gerações atuais e reduzir a dívida a pública, o Governo tem preferido acumular um envelope financeiro.
Qual é a solução?
Primeiro, o governo tem de entregar informação fidedigna para que se possa discutir seriamente o sistema. Depois, é necessário corrigir os mecanismos de atribuição e de atualização das pensões e das prestações em pagamento, para incorporar princípios atuariais. Nos últimos 20 anos, desde a publicação do Livro Branco da Segurança Social, no final dos anos da década de 1990, que se tem optado sempre por ajustes paramétricos e sempre mal desenhados e estruturados. E têm sido feitos sempre sem a aplicação de princípios atuariais, sem garantir condições de equidade entre gerações e sempre, na maior parte das vezes, por imposição externa e com remendos para as dificuldades conjunturais de financiamento do sistema.
É preciso fazer uma mudança estrutural do sistema da Segurança Social?
Não estamos a falar na privatização da Segurança Social nem na criação de plafonamentos. Estamos, simplesmente, a mudar o paradigma com base no qual há um contrato social que é um esforço contributivo e que se convertem em prestações sociais para garantir princípios de igualdade, equidade intergeracional e intrageracional dentro da mesma geração e entre gerações. Estamos a procurar salvaguardar a não acumulação de dívida e a implementação de mecanismos tendencialmente automáticos de ajustamento para evitar manipulação política do sistema. Isto significa que não há rutura do modelo de financiamento da proteção social que é o contrato geracional, nem temos nenhum período de transição.
Mas partimos de uma situação muito deficitária.
Não vamos ter ilusões: não eliminaremos esse défice de um dia para o outro. E aqui temos de ser muitos claros: temos uma dívida histórica, geracional, que temos de financiar e que temos financiado ao longo do tempo com impostos, porque o sistema não se autofinancia há décadas. Mas não podemos continuar neste paradigma de empurrar o problema com a barriga, desde logo quando o pagamento das prestações sociais está ancorado no Orçamento do Estado, ou seja, na saúde das finanças públicas.
O Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), criado em 1989 com o intuito de estabilizar o saldo do regime geral da Segurança Social, poderia ser utilizado para corrigir este défice?
Nos termos da Lei de Bases da Segurança Social, o FEFSS deveria ser usado sempre que o sistema Previdencial e a Caixa Geral de Aposentações (CGA) entrassem em défice. Ora, o sistema, que agrega os dois sistemas (Previdencial e a CGA) está em défice desde sempre.
Porque é que não se usa o fundo em vez de se aumentar a dívida pública ou retirar fundos do Orçamento de Estado para assegurar as contas da Segurança Social?
Porque ao aumentar o fundo de reserva financeira é um argumento político para dizer aos portugueses que não há nenhum problema com a Segurança Social, mostrando para isso uma almofada financeira que permite financiar durante não sei quantos anos. É muito fácil eu ter um fundo que, basicamente só tem retornos, não tem qualquer tipo de despesa. Portanto, o FEFSS nunca cumpriu com o papel para o qual foi criado, nem sequer foi capaz de assegurar a cobertura das despesas previsíveis com pensões por um período mínimo de dois anos, como está estabelecido na lei.
As últimas projeções do Governo apontam para que o saldo do FEFSS seja de 48 mil milhões em 2060 (mais do dobro do que em 2021). Estas previsões também não têm credibilidade?
Essas estimativas de que o fundo cobre “x” meses de pagamento das pensões são falsas, porque as projeções não incluem os dados da CGA. Só para este ano estamos a falar de pensões na CGA na ordem dos 10,7 mil milhões de euros, sem a aplicação da fórmula de atualização das pensões. Portanto, os cálculos [do Governo] são todos errados, não têm qualquer tipo de fundamento.
Considera que o FEFSS podia ser utilizado de forma mais eficaz?
O que acontece é que, em vez de aliviar a carga fiscal sobre as gerações atuais e reduzir a dívida a pública, o Governo tem preferido acumular um envelope financeiro que tem sido usado, essencialmente, como instrumento de gestão de dívida pública e que, do ponto de vista das políticas de investimento, nem adota boas práticas: não diversifica a sua carteira de investimentos, chegando a ter, numa altura, quase 90% da carteira em dívida pública.
Mas os resultados da gestão do FEFSS são claramente superiores à média dos fundos de pensões: nos últimos 10 anos, o fundo público teve uma rendibilidade média anual de 5,43%, mais do dobro dos 2,34% dos fundos de pensões abertos e 1,5 vezes acima do desempenho dos fundos de pensões fechados (3,66%).
Nos últimos dois anos, a composição da carteira foi sendo balanceada. No entanto, não creio que seja recomendado por nenhuma das boas práticas internacionais de gestão de carteiras de ativos o fundo continuar com uma concentração excessiva em determinadas classes, em determinados emitentes e, em particular, do emitente que é a República Portuguesa. Se há coisa recomendável era o fundo ficar o mais imune possível à evolução do ciclo económico em Portugal, que terá sempre reflexos na dívida pública, nas taxas de juro que a República emite e, por isso, sou claramente crítico da atual política de investimento.
Como deveria ser a política de investimento do FEFSS?
Deve haver um equilíbrio entre ativos de dívida, ativos no mercado acionista, produtos estruturados e ativos de longo prazo. Temos agora, orientações até dos reguladores do setor financeiro para a alocação de investimentos nos projetos de longo prazo alinhados com as metas de desenvolvimento sustentável, com as metas ESG. Não há nenhuma razão para que o fundo público não alinhe a sua política de investimento e os seus padrões de gestão pelos mesmos princípios.
(Para ler a primeira parte da entrevista, em que Jorge Bravo faz um quadro preocupante do sistema da Segurança Social, carregue neste link. E para ler a terceira parte da entrevista, em que o professor da Nova IMS explica que a responsabilidade pela proteção social tem de ser tripartida, carregue neste link.)
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