Eleições antecipadas em Espanha “roubam” foco da presidência do Conselho da UE
Pedro Sánchez assume a presidência semestral da UE a poucas semanas das eleições legislativas espanholas. Analistas e eurodeputados rejeitam que vitória da direita altere as prioridades de Madrid.
A Espanha assume, a partir deste sábado, a presidência rotativa semestral do Conselho da União Europeia (UE), apenas três semanas antes das eleições legislativas, que foram antecipadas pelo primeiro-ministro Pedro Sánchez após a pesada derrota dos partidos da coligação governamental de esquerda, liderada pelo PSOE, nas regionais de maio.
As sondagens mostram fortes probabilidades de o cenário se repetir nas legislativas, o que pode colocar em causa o avanço dos importantes dossiês europeus que Madrid terá em mãos nos próximos seis meses, naquela que é a última presidência em pleno antes do final do atual mandato das instituições da UE.
“A democracia nunca é um problema“, declarou Sánchez, em meados de junho, defendendo o próximo escrutínio nacional ao mesmo tempo que anunciava os planos da presidência espanhola. “Não é a primeira vez que se realizam eleições durante uma rotação. Também houve mudanças de Governo”, acrescentou o primeiro-ministro espanhol.
De facto, não é a primeira vez que se realizam eleições no país que assume a presidência rotativa. O caso mais recente aconteceu em França, que presidiu ao Conselho da UE durante a primeira metade de 2022 e teve eleições presidenciais e legislativas nesse período. Dois anos antes, fora a Croácia a ir às urnas eleger o próximo Governo. Em nenhuma destas situações houve uma mudança do partido no poder, como agora existe a séria possibilidade de acontecer em Espanha.
“As eleições de julho em Espanha podem ser, obviamente, o início de um novo ciclo. O Partido Popular (PP) está neste momento, aparentemente, à frente nas sondagens. Será uma alternativa de direita com extrema-direita: do PP com o Vox”, afirma, cauteloso, o especialista em assuntos europeus Paulo Sande, em declarações ao ECO.
Embora reconheça que a mudança de Governo complicaria a gestão da presidência espanhola, o também professor no Instituto de Estudos Políticos (IEP) da Universidade Católica identifica algumas vantagens que facilitam as negociações dos vários dossiês europeus diante de um cenário eleitoral no país que lidera as reuniões entre os 27 Estados-membros do bloco.
A primeira é o cargo de presidente do Conselho Europeu — ocupado atualmente pelo belga Charles Michel –, uma alteração implementada desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 2009. “Acaba por ser o rosto formal do Conselho, portanto dos chefes de Estado e de Governo. Desse aspeto, não é tão grave como seria antes, em que o primeiro-ministro espanhol teria um papel muito mais importante e imprescindível do que agora“, explica.
Não é decisivo, não é dramático para o processo europeu. É obviamente um incómodo, um problema, uma situação que não devia existir. Mas a democracia é assim e a Espanha decidiu fazer eleições agora em vez de dezembro. Mesmo em dezembro, estaríamos a aproximar-nos do fecho do ano e de um Conselho Europeu importantíssimo, que é normalmente o do final do ano, portanto, desse ponto de vista, também acaba por não ser muito diferente.
Outra vantagem, segundo Paulo Sande, é o facto de, após as semanas de campanha eleitoral e o dia das eleições espanholas em julho, haver um período de férias: “Agosto é sempre um período morto na Europa – apesar da incerteza da guerra na Ucrânia –, mas depois só em meados de setembro começa mais a sério“. Foi por isso, aliás, que Sánchez adiou o discurso no Parlamento Europeu sobre as prioridades da presidência espanhola, que estava agendado para o dia 13 de julho, para a sessão plenária de setembro.
Apesar de um primeiro mês praticamente perdido, há também o fator do funcionamento por trílogos. “Os programas das presidências funcionam de 18 em 18 meses”, pelo que “há uma continuidade”, nota o especialista em assuntos europeus. Espanha, neste caso, dá início a um novo trio de presidências, do qual fazem parte a Bélgica e a Hungria.
Além disso, “é evidente que a Espanha tem muito treino, tem uma administração forte, tem uma experiência a nível de gestão muito grande, a sua REPER (Representação Permanente de Espanha em Bruxelas) vai continuar a funcionar“, características necessárias para agendar reuniões e gerir os dossiês, aponta.
Paulo Sande considera, nesse sentido, que as consequências das eleições espanholas “não são assim tão graves como seriam noutras circunstâncias antes do Tratado de Lisboa”. “É obviamente um incómodo, um problema, uma situação que não devia existir, mas a democracia é assim e Espanha decidiu fazer eleições agora em vez de dezembro”, realça, notando que, mesmo em dezembro, há “um conselho europeu importantíssimo”, pelo que “desse ponto de vista também acaba por não ser muito diferente”.
Para o eurodeputado Paulo Rangel, uma mudança no Governo espanhol também “não seria altamente dramático”. O parlamentar do PSD dá o exemplo da presidência sueca, que terminou na sexta-feira e foi preparada pelo Executivo anterior, liderado pela social-democrata Magdalena Andersson, tendo o Governo do liberal-conservador Ulf Kristersson herdado a presidência.
Ao ECO, o eurodeputado do Partido Popular Europeu (PPE), a maior família política em Bruxelas, constata que “a máquina política de Espanha, desde logo a do Governo e a diplomática, está totalmente voltada para as eleições” de julho. Daí que somente a partir de setembro “haverá capacidade de decisão política por parte das autoridades espanholas”, diz.
As instituições europeias têm, por isso, acautelado alguns preparativos para “manter a máquina a funcionar”, independentemente de quem estiver no Governo. “Fizemos um calendário para adiantar o mais possível tudo o que é do ponto de vista técnico“, estando a decorrer “imensas negociações” — até porque não vão haver grandes propostas legislativas novas tendo em conta a existência de eleições europeias em 2024 — e, portanto, “muitas coisas já estão mais do que adiantadas“, conta.
Contudo, o eurodeputado avisa para um aspeto “preocupante” na presidência espanhola. “O PP e o PSOE, que são os partidos que alternam normalmente no poder, têm ambos um problema muito sério: não dialogam. É sabido que o primeiro-ministro Pedro Sánchez não teve uma reunião com (o líder da oposição) Alberto Núñez Feijóo para lhe dar nota da presidência espanhola“.
“Se houver continuidade do PSOE, os objetivos que foram traçados são os mesmos. Senão, o que vai acontecer é que o novo Governo espanhol virá com uma agenda que não será exatamente a que tinha sido anunciada – embora hoje em dia as agendas das presidências semestrais sejam ajustadas em trios”, antecipa Paulo Rangel.
Mas Javier Moreno Sánchez, que preside à delegação socialista espanhola em Estrasburgo, está convencido de que as prioridades espanholas “não estão em perigo”. Em declarações ao ECO, o eurodeputado espanhol do PSOE diz esperar que, a 23 de julho, seja renovada “a maioria progressista que permitiu a Espanha melhorar as condições de vida das classes média e trabalhadora”.
Há, no entanto, um aspeto que é preocupante na presidência espanhola. O PP e o PSOE, que são os partidos que alternam normalmente no poder, têm ambos um problema muito sério: não dialogam. É sabido que o primeiro-ministro Pedro Sánchez não teve uma reunião com o Alberto Núñez Feijóo para lhe dar nota da presidência espanhola.
Neste âmbito, o consultor de assuntos públicos Javier Garrido escreveu, num artigo publicado no website do SEC Newgate EU, que as eleições espanholas “poderão constituir um problema mais para as posições e interesses de Espanha do que para a própria presidência e para os outros parceiros da UE”.
“Embora o PP e o PSOE tenham posições divergentes sobre algumas questões que serão debatidas durante a presidência espanhola, como a Lei da Restauração da Natureza que foi rejeitada pelos conservadores no Parlamento Europeu, é pouco provável que uma mudança no Executivo espanhol altere a agenda da presidência. O PSOE e o PP estão de acordo sobre as questões fundamentais, pelo que a abordagem da presidência será semelhante”, argumentou Garrido.
Já o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes, assume que Portugal tem “plena confiança” de que, independentemente do resultado eleitoral no país vizinho, as autoridades espanholas conduzirão “de forma empenhada, profissional e responsável” os trabalhos da presidência ao longo do próximo semestre.
“Portugal apoia as principais prioridades identificadas pela Espanha para a sua presidência e confia que as autoridades espanholas serão bem-sucedidas na respetiva concretização”, afirma ainda o governante, num comentário enviado ao ECO.
Entre essas prioridades, Tiago Antunes destaca o apoio à Ucrânia, o debate sobre o alargamento e o futuro da UE, o reforço da autonomia estratégica do bloco, as relações com a América Latina e a Vizinhança Sul e a reforma da governação económica.
Um dos momentos altos da presidência espanhola é uma cimeira entre a UE e a América Latina (UE-CELAC), que decorrerá em Bruxelas já nos dias 17 e 18 de julho, no qual se espera que seja dado um sinal significativo quanto à conclusão dos acordos comerciais com o México, com o Chile e também com o Mercosul.
Como primeiro ato oficial da presidência espanhola, Pedro Sánchez desloca-se sozinho a Kiev este sábado. A visita, que pretende simbolizar o apoio político, humanitário, económico e militar da UE à Ucrânia, prevê um encontro do primeiro-ministro espanhol com o Presidente ucraniano e um discurso no Parlamento. Na segunda-feira, o Colégio de Comissários realiza a habitual visita a Madrid para a apresentação das prioridades para o próximo semestre.
Por sua vez, o PP, que segue à frente nas sondagens para as legislativas de 23 de julho, apelou ao Governo espanhol e às instituições europeias para que todos os eventos da presidência previstos acontecer em território espanhol durante o período de campanha eleitoral sejam alterados para Bruxelas.
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A lista de dossiês legislativos para fechar ou “dar passos significativos” na presidência espanhola é longa: a reforma do mercado da eletricidade; o pacto sobre migração e asilo; os acordos comerciais com o Mercosul (Mercado Comum do Sul, formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), o Chile e o México; a reforma das regras de governação económica da UE; a reforma intercalar do quadro financeiro plurianual; a lei sobre a recuperação da natureza; a diretiva sobre a qualidade do ar; o apoio à Ucrânia; entre outros.
Resta saber se será Pedro Sánchez a assumir a “batuta europeia” durante os próximos seis meses.
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