A reciprocidade nunca é num só sentido
A cessão do acordo de reciprocidade com os advogados brasileiros, para os advogados portugueses e para os advogados europeus, é, antes de mais, uma questão de justiça.
As ordens profissionais são associações de classe, que auxiliam ao funcionamento administrativo do Estado, tutelando o exercício de algumas profissões. Através de normas técnicas e deontológicas chamadas regulamentos se fiscaliza quem cumpre as suas funções e, caso tal não se verifique, aplicam-se sanções disciplinares aos que apresentam condutas indevidas
Em 2008 é assinado um acordo de reciprocidade entre a Ordem dos Advogados Portugueses (AOP)e a sua congénere do Brasil, a fim de permitir aos advogados daquele país a possibilidade de exercício da sua profissão no nosso e, inversamente, os advogados portugueses poderem exercer a sua no Brasil, sem, em ambos os casos, terem de passar por um período de estágio e, por testes de aptidão nos respetivos países de acolhimento.
Com esta medida foi-se gradualmente instalando a confusão na profissão, assistindo-se à chegada de centenas de advogados brasileiros a solicitar (e a conseguir) reciprocidade de direitos. E, como seria de esperar, passaram, de forma automática, a estar habilitados ao exercício do seu múnus em Portugal, sem conhecerem, porque não o estudaram, o normativo jurídico português, nem fazendo a mínima ideia sobre as normas que se aplicam na União Europeia (UE).
O acordo de reciprocidade não permite que um advogado, de nacionalidade europeia e inscrito na Ordem dos Advogados Brasileira (OAB), possa beneficiar do mesmo acordo, e inscrever-se na OAP, porque, se o fizer, fica-lhe a faltar o requisito da nacionalidade brasileira.
O fator nacionalidade permite a um advogado brasileiro, com nacionalidade brasileira e europeia, e inscrito na OAB , possa: 1) numa primeira fase, inscrever-se na OAP, com base no acordo entre os dois países, ou seja, pela nacionalidade brasileira e pelo título de «advogado» do Brasil; e 2) graças ao acordo bilateral Brasil-Portugal sobre a advocacia ir para qualquer outro Estado-membro da UE, inscrever-se na respetiva Ordem dos Advogados como advogado europeu estabelecido no país que o acolheu, sob o título de «advogado português», com base na sua pertença à Europa e de acordo com a Diretiva n.º 98/5/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro, e, sem que seja necessário passar por exames, fica com acesso livre a todo o mercado da União.
Os advogados europeus em geral (exceto os portugueses), não têm acesso direto ao mercado brasileiro, porquanto, para exercerem a profissão de advogados no Brasil e poderem inscrever-se na respetiva Ordem, têm, obrigatoriamente, de obter um diploma ou um certificado de conclusão, estudar Direito numa escola oficialmente autorizada e passar no exame da Ordem.
Esta vantagem ilegítima a favor dos advogados brasileiros (e até dos advogados portugueses, ainda que com menor abrangência) viola o princípio da não discriminação com base na nacionalidade constante do artigo 18.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE, no qual se proíbe «qualquer discriminação com base na nacionalidade», Aliás, na mesma linha, a Diretiva (UE) 2018/958 do Parlamento Europeu e do Conselho de 28 de junho de 2018 estabelece que: «[a]o introduzir novas disposições legislativas, regulamentares ou medidas administrativas que limitem o acesso a profissões, os Estados-membros assegurarão que essas disposições não sejam discriminatórias com base na nacionalidade » (cf. artigo 5.º).
Portugal, enquanto parte integrante da UE, tem de respeitar todos os direitos e obrigações relativos ao estatuto de Estado-membro e, evitar «qualquer discriminação em razão da nacionalidade», inclusive quando este Estado celebra acordos com países terceiros (Brasil).
As ordens profissionais de França e de Itália receberam inúmeras queixas, tendo já iniciado os procedimentos para reposição da legalidade junto das instâncias europeias. Em particular, no dia 30 de dezembro de 2022, em Itália, a Associazione Giuristi Iure Sanguinis, apresentou uma queixa ao Consiglio Nazionale Forense (órgão italiano equivalente ao Conselho Geral da nossa Ordem), a fim de que se tomem providências em relação às discriminações sofridas pelos advogados italianos em decorrência do referido acordo Brasil-Portugal. Na mesma linha, no dia 22 de fevereiro, em França os advogados franceses apresentaram uma queixa ao Conseil National des Barreaux (órgão equivalente ao Conselho Geral da nossa Ordem) para que sejam tomadas providências por causa de discriminações sofridas pelos advogados franceses, em decorrência do referido acordo de reciprocidade Brasil-Portugal, salientando o prejuízo criado por este instrumento.
o acordo Brasil-Portugal põe ainda em risco todo o mercado europeu da advocacia, cria prejuízos aos seus jurisdicionados e constitui um precedente extremamente perigoso no âmbito da UE, mormente para Portugal, pois que – de acordo com as informações disponibilizadas pela própria OAB no Brasil há cerca 1.300.000 advogados em exercício, sendo o país com a maior proporção de causídicos por habitante do mundo.
No final de 2022, 9,3% dos advogados inscritos eram brasileiros, com um aumento de 482% em relação a 2017. Uma boa parte dos advogados brasileiros utilizam Portugal apenas como uma plataforma de apoio: fazem o registo na nossa Ordem, mas não têm nenhuma real e concreta atuação aqui, pois que, logo após a sua inscrição, emigram para outros países da UE.
O acordo Brasil-Portugal provoca não apenas uma concorrência desleal no mercado da advocacia europeia, como coloca em risco os próprios jurisdicionados, porque atribui, no âmbito da UE, a capacidade postulatória a profissionais extra-europeus, que não possuem nenhuma formação e capacitação jurídica ao nível das exigências requeridas na Europa.
A cessão do acordo de reciprocidade com os advogados brasileiros, para os advogados portugueses e para os advogados europeus, é, antes de mais, uma questão de justiça. A reciprocidade, para efetivamente o ser, nunca é num só sentido.
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