“David contra Golias”. Jovens portugueses acusam 32 países por inação climática em tribunal europeu
Processo liderado por seis jovens portugueses tornou-se no primeiro relacionado com alterações climáticas a ser apresentado no mais alto tribunal europeu. Portugal é um dos 32 arguidos.
O combate à inação climática chega esta quarta-feira ao tribunal europeu. Um procedimento inédito e que está a ser liderado por seis jovens portugueses.
Na bancada dos réus estão 32 países — entre eles Portugal — acusados de não fazer o suficiente para cortar as emissões de gases com efeitos estufa (GEE), e consequentemente, violar os direitos humanos individuais numa altura em que a meta para a neutralidade carbónica está cada vez mais próxima. A acusação será debatida na Grande Câmara (grande chambre) do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), em Estrasburgo, fazendo deste o primeiro caso climático a ser presente a juízes daquele tribunal.
Os seis jovens estarão presentes, suportados por cerca de 20 advogados da Global Legal Action Network (GLAN), entidade que tem feito o acompanhamento jurídico do caso. Um dos jovens, André Oliveira, conta ao Capital Verde que este grupo estará sobretudo a assistir — será o corpo jurídico a intervir. Do outro lado da barricada, esperam mais de 80 advogados, em representação dos países acusados.
Gearóid Ó Cuinn, diretor da GLAN, descreveu o caso como “sem precedentes” detalhando que está a ser preparada “toda uma máquina legal” contra o grupo de jovens. “Este é verdadeiramente um caso de David contra Golias. não tem precedentes em termos de escala, nem de consequências“, considerou o responsável durante uma conferência de imprensa que decorreu em a 11 de setembro, via Zoom. “Nunca antes tantos países tiveram de se defender perante um tribunal, em qualquer parte do mundo“, reiterou.
A audiência deverá estender-se o dia todo, entre as 8h30 da manhã e as 16h30, continua André Oliveira. Irá começar com a apresentação das provas de que os países não estão a agir de acordo com os direitos humanos, e os juízes terão a oportunidade de fazer perguntas. Depois de almoço, será a vez dos advogados de defesa dos Estados-membros questionarem a acusação.
“Nunca fomos a tribunal”, nota o jovem. Mas o grupo está preparado para desempenhar o seu papel: serem “as caras do caso”. Tiveram sessões de preparação para falar com os meios de comunicação social e darem o respetivo depoimento, de como se sentem afetados pelas alterações climáticas e pela inação dos governos neste campo. É isso que planeiam continuar a fazer, nos cerca de 12 a 18 meses que contam que se sigam até haver uma decisão.
A queixa alega que os inquiridos violaram os direitos humanos ao não tomarem medidas suficientes em matéria de alterações climáticas, e solicitam uma ordem que os obrigue a tomar medidas mais ambiciosas. Os queixosos exigem aos estados uma redução de 65% das emissões poluentes até 2030.
Se tudo correr a favor dos jovens, descreve o advogado Gerry Liston, da equipa legal da GLAN, esta decisão pode funcionar como “um tratado vinculativo imposto pelo tribunal aos Estados, obrigando-os a acelerar rapidamente os seus esforços de atenuação das alterações climáticas”. Em termos jurídicos, afirma, poderá ser um gamechanger — uma mudança das regras do jogo. “Acredito realmente que este caso vai mudar o mundo“, afirmou Cláudia Agostinho.
Nem todos partilham do mesmo otimismo quanto ao desfecho. Armando Rocha, professor na Universidade Católica portuguesa, é também responsável pelo Climate Litigation Lab desta instituição, dentro do qual procura encontrar a melhor forma de apresentar um caso climático perante os tribunais. E este professor aponta algumas fragilidades que vê no caso que os jovens portugueses levam a Estrasburgo.
“Em abstrato, não é nada claro que os seis jovens portugueses venham a ganhar o caso”, mas “o processo já é uma vitória”
“Um dos grandes problemas deste caso é a sua escala: é mais fácil pequenos casos, referentes a obrigações de pequena escala e de prova simples“, indica. Neste caso, pode faltar a prova científica, de causalidade ou a prova de condição de vítimas. Sobre o resultado, o este jurista entende que o TEDH não pode identificar uma meta em concreto (sob pena de violar os princípios da subsidiariedade e da separação de poderes).
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que norteia este tribunal, só permite que o TEDH condene o Estado a pagar uma indemnização ou a declarar a existência de uma violação aos direitos humanos, mas sem condenar o Estado a nenhuma ação em concreto, defende Armando Rocha.
Já para Heloísa Oliveira, investigadora no Lisbon Public Law Research Centre (Centro de Investigação de Direito Público de Lisboa), da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, “a questão é se o Tribunal vai (…) decidir que há um mínimo de redução de gases com efeitos de estufa que necessariamente tem de ser cumprido, sob pena de violação de direitos humanos“, sendo que “qualquer condenação nesta matéria” será o equivalente a dizer que “há um mínimo de redução de gases com efeito de estufa que é legalmente obrigatório, independentemente da decisão política e de outras normas jurídicas, porque, ao não ser cumprido, é sempre uma violação de direitos humanos”.
“Em abstrato, não é nada claro que os seis jovens portugueses venham a ganhar o caso”, vaticina Armando Rocha, mas “o processo já é uma vitória” no que diz respeito a “agitar as águas” e “trazer mediatismo à questão climática”. Rocha considera que este precedente pode encorajar outros particulares a processarem Estados e empresas e, em segundo lugar, que a certa altura será “estranho” se não houver algum tribunal a dar razão aos autores.
“Caso o TEDH venha a decidir o caso a favor dos queixosos, declarando que, ao não reduzirem emissões de gases com efeito de estufa de forma significativa, os Estados europeus não estão a cumprir com as suas obrigações em matéria de direitos humanos, tal não pode deixar de ter impacto nas decisões dos tribunais nacionais de vários Estados, senão mesmo de todos, em casos de litigância climática”, acrescenta Heloísa Oliveira.
Incêndio do Pedrógão espoletou ação
O incêndio de 2017, em Pedrógão Grande, foi o grande gatilho deste caso e o principal motivo que levou Catarina dos Santos Mota, os irmãos Martim, Cláudia e Mariana Agostinho e os irmãos Sofia e André dos Santos Oliveira a aliar-se à GLAN para processar as 32 nações.
Foi na sequência deste evento trágico que marcou o país que Rita Mota, uma portuguesa voluntária na GLAN, teve a ideia de avançar com o processo, conta André Oliveira. Até então, a GLAN lidava sobretudo com casos de direitos humanos no sentido mais estrito, nada relacionado com as alterações climáticas. Foi Rita Mota que uniu os seis jovens, os quais conhecia de contextos diferentes. Depois de dois anos de partilha de ideias, estavam prontos para avançar.
Os países “ainda não fizeram o suficiente. Não estão a haver mudanças suficientes”
Foi a 2 de setembro de 2020 que o grupo apresentou queixa no tribunal, em Estrasburgo, contra 32 países. Dois meses e meio depois, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos acelerou e comunicou o caso aos países arguidos, exigindo-lhes que respondessem às acusações até ao final de fevereiro de 2021. De acordo com a GLAN, apenas uma pequena minoria dos casos apresentados ao tribunal são acelerados.
A decisão não foi encarada de ânimo leve pelos réus, que pediram ao tribunal que anulasse o tratamento prioritário do caso e que ouvisse os argumentos apenas sobre a sua admissibilidade. Os juízes rejeitaram as moções e deram aos réus até 27 de maio de 2021 para apresentar uma defesa, tanto sobre a admissibilidade quanto sobre o mérito do caso. A acusação ia a tribunal. Os governos visados no caso “Duarte Agostinho e outros v. Portugal e 31 outros Estados” são os dos 27 membros da União Europeia, mais os de Reino Unido, Suíça, Noruega, Federação Russa, Turquia e Ucrânia.
“Os governos de todo o mundo têm o poder de impedir a crise climática, e os governos da Europa estão a optar por não o impedir. Quando os governos não nos protegem, cabe ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem intervir“, indica Catarina Mota, na mesma conferência de imprensa. André Oliveira também é perentório: mesmo com os anúncios que foram sendo feitos em termos de metas climáticas desde 2020, e mesmo a emissão de nova regulação, os países “ainda não fizeram o suficiente. Não estão a haver mudanças suficientes”.
Em declarações ao Capital Verde, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática “rejeita” a acusação, sustentando que as suas ações vão no sentido do cumprimento das suas vinculações internacionais neste âmbito, entre elas, a assinatura do Acordo de Paris. Ainda assim, reconhece que “existe uma interação inegável entre a proteção do ambiente e a proteção dos direitos humanos”.
Litigância climática soma e segue. Mas não em Portugal
O processo liderado pelos jovens portugueses tornou-se o primeiro caso relacionado com alterações climáticas a ser apresentado no mais alto tribunal europeu. Desde então, outros dois processos de inação climática foram iniciados: um deles levantado por uma associação ambiental suíça devido ao impacto da crise climática na saúde e condições de vida dos cidadãos; e o outro iniciado por um cidadão francês, Damien Carême, argumentando que o Estado francês não está a fazer o suficiente para travar o aquecimento global. À semelhança do caso português, estes dois processos também transitaram para a grand chamber do TEDH.
O relatório 2023 Global Trends in Climate Change Litigation Policy Report do Grantham Institute – publicado a 29 de junho de 2023 – indica que cerca de dois terços dos processos relacionados com o clima foram instaurados desde 2015: entre 1986 e 2014, foram instaurados cerca de 800 processos, mas entre 2015 e maio de 2023, foram instaurados cerca de 1.557 processos, notava recentemente Maria Teresa Goulão, num artigo de opinião publicado no Capital Verde. Por exemplo, as “grandes empresas de carbono” estão a ser processadas com base nas emissões de gases com efeito de estufa.
Da mesma forma, os processos contra greenwashing têm aumentado acentuadamente desde 2015, foram instaurados 81 processos contra empresas em todo o mundo, 53 dos quais foram instaurados em 2021 e 2022.
Portugal, no entanto, não tem registos nesta matéria. Por cá, “os números são confrangedores”, considera Armando Rocha. “Basicamente, não há nada. Em parte, porque a sociedade civil não tem fundos para financiar estas formas de litigância, mas também por causa da nossa desconfiança em relação ao funcionamento dos tribunais”, conclui.
Heloísa Oliveira aponta que Portugal é o único país que conhece que atribui o direito ao equilíbrio climático e direitos processuais para o defender, na Lei de Bases do Clima. No entanto, entende que a falta de ações poderá estar relacionada com “uma sociedade civil pouco interventiva e um poder judicial conservador que desencoraja o ativismo ambientalista pela via judicial“.
“Portugal tem regras muito generosas de acesso aos tribunais para defesa do ambiente – qualquer cidadão pode propor uma ação pública para defesa do ambiente”, considera Heloísa Oliveira, que considera “fácil” propor ações contra atos administrativos relacionados com o clima. No entanto, “não será fácil” avançar com o que está em causa em grande parte das ações climáticas, que apontam para omissões ou ação insuficiente por parte de entidades públicas.
No que toca às ações relativas a greenwashing e contra empresas em geral, não esta especialista não identifica obstáculos processuais relevantes, apesar de duvidar que um tribunal português emitisse uma decisão semelhante àquela que o Tribunal de Haia proferiu no caso Milieudefensie contra a Shell, na qual declarou que uma empresa petrolífera tem o dever de redução de emissões de gases com efeito de estufa.
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