Quem é e como se financia a associação de consumidores que visa empresas com “ações populares”?
Os rostos e os planos financeiros da Citizens’ Voice, a associação de defesa dos consumidores que já entregou 120 ações coletivas contra várias empresas e que o Pingo Doce tenta travar nos tribunais.
Fundada em 2021, a Citizens’ Voice, associação de defesa dos consumidores, já entregou 120 ações coletivas nos tribunais contra empresas como a Ryanair, Pingo Doce, Vodafone, Fnac, ActivoBank, Portugal Telecom, Luz Saúde, Galp ou BP. Mas, afinal, que organização é esta que está a avançar com vários processos nos tribunais portugueses e que, como o ECO noticiou, levou o Pingo Doce a avançar com uma providência cautelar — obrigou a retirar da Internet publicações em que imputa ao Pingo Doce “crimes pelos quais não tenha sido condenado” — e a avisar que “outras se seguirão”?
Sem fins lucrativos, a Citizens’ Voice surgiu com o propósito de defender os direitos dos consumidores da União Europeia. A associação é presidida por Octávio Viana, que conta com mais de 20 anos de experiência também nos setores da banca, análise financeira, mercado de capitais e coaching — e que lidera há quase duas décadas a associação de defesa dos investidores (ATM).
Octávio Viana tem no currículo os cargos de consultor financeiro do BCP, consultor sénior do conselho de administração do Dif Broker, fez parte do comité permanente de Finanças Corporativas (CWG) da Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) e especialista no Financial Services User Group (FSUG). Tem ainda vários artigos publicados sobre mercado de capitais e é o autor do livro “Estudos no Mercado de Capitais”, publicado em 2009.
Numa assembleia geral realizada a 6 de novembro, a Citizens’ Voice, que diz contar atualmente com 18 colaboradores (que são também associados) e mais de 1.500 associados portugueses, mexeu nos órgãos sociais e anunciou “planos de expandir a sua influência na União Europeia, com intenções de liderar conferências internacionais em cidades como Madrid, Barcelona, Roma, Milão e Bruxelas”.
Além de Octávio Viana, na direção desta organização está agora como vice-presidente Sandra Cristina de Faria Ramos (professora universitária de Matemática), que renunciou ao cargo de vogal do conselho fiscal, enquanto Federica Sandri, que é apresentada como “CEO de uma empresa Italiana”, ocupa o cargo de secretária-geral.
Já a assembleia geral é presidida por Joaquim José Marques Cardoso (juiz desembargador jubilado) e os secretários Rui Madureira Ferrás (advogado) e Cláudia Brito Alves Gil (técnica de contabilidade) O conselho fiscal tem como presidente Rui Alexandre dos Santos Sá Carrilho (revisor oficial de contas) e como vogais Ana Cristina Teixeira Meireles (empresaria da hotelaria) e Paulo Alexandre Marques Pinto (reformado, fundador da ATM e atualmente dedicado à hotelaria, à agricultura e à Alti Wine Exchange, que fundou), que renunciou à vice-presidência e assumiu como vogal do conselho fiscal.
Octávio Viana indica ao ECO que a entidade sediada em Vila Nova de Gaia funciona como “satélite” da associação de defesa dos investidores ATM, fundada em 1998, e que existem duas atividades associativas que requerem fundos. “O funcionamento da associação, que é financiado pelos seus membros, e as ações populares que já requerem um maior investimento — em que é preciso pagar os honorários dos advogados, as taxas de justiça ou as traduções de documentos, ou seja, serviços externos que são necessários pagar”, detalha.
Questionado sobre a forma como essa atividade é financiada, Octávio Viana responde que isso é feito “através de doações ou empréstimos dos membros da associação e de associados; ou por via de financiamento contencioso por terceiros — e existem empresas especializadas que só fazem isso”. “Financiam litígios em várias jurisdições e temos estado a negociar com essas empresas, embora ainda não tenhamos nenhuma ação financiada nestes termos. Andamos a negociar com várias empresas”, acrescenta.
O responsável frisa que essas empresas especializadas em financiar este tipo de ações “demoram muito tempo a decidir, entre seis meses a um ano“. Octávio Viana considera que é “muito tempo”, tendo em conta que precisam desse dinheiro logo que as ações dão entrada nos tribunais. E “existem muitos não querem financiar esse tipo de ações porque pode demorar muito tempo até os processos chegarem ao fim, até uma decisão judicial seja ela qual for”.
Não fazemos isto pelo retorno financeiro, até porque não temos nenhum. Todos nós temos despesas com isto.
“Não fazemos isto pelo retorno financeiro, até porque não temos nenhum. Todos nós temos despesas com isto. O que nos motiva é que todos somos consumidores e já nos vimos em situações em que dizemos ‘isto não pode ser assim e alguém tem que fazer alguma coisa’. Em vez de esperar que seja alguém a fazer alguma coisa pelos consumidores, vamos ser nós a fazê-lo“, resume o presidente da Citizens’ Voice, notando que intervêm quando “o public enforcement, as autoridades como a ASAE, por exemplo, não conseguem [resultados] porque estão limitadas ou isso não é suficiente”.
A sentença relativa à providência cautelar do Pingo Doce, assinada a 7 de novembro pela juíza Ana Cristina Guedes da Costa, menciona que são “[desconhecidas] as fontes de financiamento” da Citizens’ Voice e, citando as palavras da própria contabilista na assembleia geral realizada a 9 de junho deste ano, “no ano de 2022 não tinha existido movimentos contabilísticos para além do saldo inicial para a abertura da conta no banco em Bruxelas, na Bélgica”.
Assinala ainda o mesmo documento judicial, consultado pelo ECO, que “até junho de 2023, nenhuma assembleia geral teve lugar para aprovação de contas ou plano de atividades” e que a requerida nesse processo “é uma associação sem receitas e sem ativo, para além de créditos litigiosos emergentes da instauração das ações populares em Tribunal“. Refere ainda que a Citizens’ Voice “pretende exercer a sua atividade mediante o recurso a contratos de financiamento dos custos das ações por terceiros alheios aos litígios” e que tem “interesses económicos na multiplicação de ações judiciais” contra a empresa retalhista do grupo Jerónimo Martins.
Fundo de investimento vai financiar ações populares
Na última assembleia geral, Paulo Pinto, que é agora vogal do conselho fiscal, apresentou a Justice4All, uma nova iniciativa focada no suporte financeiro de ações coletivas em defesa dos consumidores. E explicou a importância do Third Party Litigation Funding para o avanço de “litígios importantes que frequentemente não se desenvolvem devido a limitações de recursos”. Ou, como resumiu ao ECO o responsável máximo, “para que os processos possam ser decididos pelos seus méritos e não por quem tem os ‘bolsos mais fundos'”.
Concebida com um capital social “modesto” de 6.000 euros e com “robustez financeira assegurada por financiamento externo e suprimentos dos sócios”, como se lê na ata da reunião magna, a Justice4All irá “evoluir para um fundo de investimento fechado e, mais tarde, um fundo de investimento aberto”. Permitindo, assim, “a qualquer um, incluindo os consumidores, pequenos investidores, fazerem parte desta revolução e investir em fundos que financiam ações populares na defesa dos consumidores em toda a União Europeia”.
“Estamos aqui para garantir que entidades como a Citizens’ Voice possam empunhar a bandeira da justiça sem que a falta de recursos seja um obstáculo. Lutar em várias ações ao mesmo tempo e assegurar que os interesses dos consumidores sejam sempre a prioridade máxima sem que pressões externas desviem nosso curso. Esta é a essência da nossa missão”, resumiu Paulo Pinto, na assembleia geral.
A Justice4All aspira tornar-se uma referência no mercado, evoluir para um fundo de investimento fechado e, mais tarde, um fundo de investimento aberto. Este último passo permitirá a qualquer um, incluindo os consumidores, pequenos investidores, fazerem parte desta revolução e investir em fundos que financiam ações populares na defesa dos consumidores em toda a União Europeia.
Nesta última reunião magna foi ainda anunciado o plano de lançar uma campanha de angariação de fundos e uma ação de sensibilização sobre resultados de ações judiciais contra o Pingo Doce, “com o intuito de educar os consumidores sobre os seus direitos e fortalecer a imagem da Citizens’ Voice como defensora dos consumidores”. De acordo com a súmula desse encontro, Viana falou em aumentar o número de juristas a trabalhar na retaguarda para apoiar as ações judiciais da associação e sobre modelos de inteligência artificial que estarão já a ser utilizados na elaboração de algumas peças processuais.
A associação de consumidores que já entregou um total de 120 ações populares. Em declarações ao ECO, Octávio Viana volta a sublinhar que “os custos das ações têm sido suportados pelos membros ou por pessoas que simpatizam com a associação”. O retorno é “zero”, insiste o presidente da Citizens’ Voice. “É como alguém fazer um donativo para os bombeiros voluntários da vila”, ilustra.
A ação popular mais emblemática da Citizens’ Voice envolveu a Vodafone Portugal, com um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com data de 2 de fevereiro de 2022, a obrigar a operadora de telecomunicações a restituir aos clientes os pagamentos que lhes tenham sido cobrados na sequência da ativação automática de serviços adicionais não solicitados.
Já este ano, e depois de a ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica ter decidido instaurar processos-crime contra gasolineiras por cobrarem impostos a mais, sete comercializadores de várias zonas do país foram levados a tribunal por alegados crimes de especulação. Os processos – a decorrer em tribunais cíveis – incluem bombas com insígnias da Prio, Intermarché, Galp, Alves Bandeira e BP, e envolvem situações em que os contadores não começaram no zero, em que o valor do ISP foi adulterado e ainda publicidade enganosa.
Em “guerra aberta” com o Pingo Doce
No caso da cadeia retalhista do grupo Jerónimo Martins, a Citizens’ Voice já entregou 61 ações populares e diz ter mais 22 em preparação. O Pingo Doce acabou por avançar com uma providência cautelar para travar “atentados ao seu bom nome e reputação” e “pôr termo à acusação que esta associação faz em permanência no seu site, da prática pela empresa de crimes contra os [seus] clientes e consumidores”.
Na sequência da decisão relativa à providência cautelar, a Citizens’ Voice e o presidente desta associação de defesa dos consumidores, Octávio Viana, foram proibidos pelo Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia de manter as publicações na página oficial na Internet e nas redes sociais nas quais imputam ao Pingo Doce a “prática de quaisquer crimes, designadamente de especulação de preços e de publicidade enganosa, pelos quais não tenha sido condenada”.
No entanto, a decisão relativa à providência cautelar que tinha sido interposta pela retalhista, a que o ECO teve acesso, não os impede – como pedia a empresa da Jerónimo Martins – de divulgar publicamente as ações populares com que tem avançado e que se encontrem pendentes de decisão, assim como aquelas que estejam em preparação. Nem os condena a retirar as referências que têm feito à disparidade entre os preços anunciados nas prateleiras e os efetivamente cobrados nas caixas em perto de uma centena de produtos, sobretudo alimentares.
Octávio Viana e esta associação foram condenados a pagar mil euros “por cada dia de atraso no cumprimento” desta determinação, “a título de sanção pecuniária compulsória”. Cinco vezes abaixo do valor que tinha sido requerido pelo Pingo Doce. Entretanto, a Citizens’ Voice já retirou da lista de ações publicitadas no site e nas redes sociais todas as menções à palavra “crime”.
Através de fonte oficial, o Pingo Doce mostra “satisfação” pelo facto de a associação e do seu presidente terem sido “intimados judicialmente para cessarem de imediato a imputação nos seus sites e nas redes sociais da prática por Pingo Doce dos crimes de especulação e de publicidade enganosa”. Mas garante ao ECO que não fica por aqui: “Trata-se de uma primeira medida contra a Citizens’ Voice [e] outras se seguirão, tendo em vista impedir a instrumentalização da justiça, através da ação popular, para satisfação de interesses económicos egoísticos e absolutamente obscuros”.
Trata-se de uma primeira medida contra a Citizens’ Voice [e] outras se seguirão, tendo em vista impedir a instrumentalização da justiça, através da ação popular, para satisfação de interesses económicos egoísticos e absolutamente obscuros.
Quando deu entrada a providência cautelar, Octávio Viana queixou-se ao ECO de uma “tentativa de silenciamento” e referiu mesmo que “se algum dia uma providência deste género fosse concedida, seria o fim da democracia e da liberdade de expressão – cujo recurso teria de ser o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”. Conhecida a decisão, a associação destaca que o tribunal “reconheceu a importância fundamental da liberdade de expressão e informação como pilar de uma sociedade democrática e condição essencial para o seu progresso e desenvolvimento”.
“Das várias ações que temos, incluindo a da Vodafone que foi extremamente publicitada — o Pingo Doce foi, até hoje, o único a avançar com um procedimento cautelar para impedir que se informe os consumidores de que existem ações populares“, lamenta Octávio Viana. Argumenta que “as pessoas têm de ser informadas de que existe uma ação popular” e que o que a cadeia de supermercados pretende é que “não seja dado conhecimento da existência dessas ações”.
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